segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tenho um monstro debaixo da cama

A sério, não estou a brincar. Eu já andava desconfiado depois de ter encontrado aquela gosma verde nojenta por entre os meus lençóis, e na sola dos chinelos. Além disso, bem tinha dito à minha mãe que o roncar que eu ouvia de noite não era o meu próprio ressonar. Tenho um monstro debaixo da cama, está mais que garantido. Foi preciso ele sair e engolir a avó para que a mãe acreditasse em mim, mas há males que vêem por bem. Continuaremos a receber o cheque da reforma, até que alguém dê pelo sucedido.

Já chamei a linha de controlo de pestes e epidemias, para ver se me resolvem o problema. Meteram-me em espera, e agora estou com o telefone ao ouvido e a escrever isto só com uma mão. A minha mãe fechou-se no quarto com o meu irmão pequeno, porque ele é um medricas. Eu cá estou no hall de entrada, sem tirar os olhos da porta do meu quarto. Tranquei a porta, e meti-lhe à frente uma arca pesadíssima que a minha mãe tinha no quarto para guardar a roupa de inferno. Duvido que o monstro consiga descobrir como rodar a maçaneta, mas nunca é demais investir na segurança.

Não o cheguei a ver, se é isso que vão perguntar a seguir. Só lhe vi uma sombra, e talvez a cauda. Ou seria a língua? Não sei, nem me interessou. Fechei logo a porta atrás de mim, e ainda ouvi os últimos gritos suplicantes da minha avó. Eu juro que a tentei salvar, mas foi tarde demais. Ela insistiu em aspirar-me o quarto, e em mudar a cama de sítio para poder aspirar debaixo da cama. Olha, azar.

Agora consigo ouvir o monstro do outro lado da porta, já não está debaixo da cama. Acho que acabou de me partir o candeeiro da mesinha de cabeceira. O meu irmão mais novo está a chorar, provavelmente porque sabe que se o monstro se soltar ele será pequeno o suficiente para ser a primeira vítima. Magrinho, fácil de engolir e a cheirar a amaciador.

Os da linha de controlo de pestes e epidemias atenderam-me, agora estou a falar com um senhor que me pergunta se estive a fumar. Eu digo-lhe que não, que tenho mesmo um monstro debaixo da minha cama mas não digo que me engoliu a avó, porque senão lá se vai o cheque da reforma. Grito à minha mãe para deixar de ser medricas e se comportar como uma figura maternal protectora que deve ser, sair do quarto e vir atender o telefone. Ela ignora-me, diz que não quer que o meu irmãozinho seja comido. O homem do controlo das pestes e epidemias aconselha-me a procurar o meu encarregado de educação e pedir-lhe que me leve a um médico, e começa numa ladainha sobre um sobrinho seu que também se metia na droga e que lhe levou o televisor e a torradeira de casa para poder pagar o produto. Eu insisto que não estou maluco, nem pedrado, e que o monstro que tinha debaixo da cama me está agora a tentar abrir a porta do quarto e devorar o meu irmãozinho. O homem do controlo de pestes e epidemias desligou.

Agora vim até à cozinha, agarrei na faca do pão e prendi-a ao cinto, só para o caso de a arca que encostei à porta do quarto não ser pesada o suficiente. Vou sair de casa e bater à porta da vizinha.

A vizinha abriu-me a porta, que simpática. Perguntou o que estava a fazer com a faca do pão. Respondi que precisava da sua ajuda urgentemente, porque o meu irmãozinho tinha caído na banheira. Ela veio a correr, e assim que entrámos em minha casa apanhei a minha mãe a correr porta fora e as pernas do meu irmãozinho a desaparecerem pela boca do monstro dentro. A minha mãe está a gritar, agora, e agarrou-se à vizinha como a uma bóia salva-vidas. Vou tentar salvar o meu irmãozinho.

Voltei. Não cheguei a tempo, mas o monstro cuspiu um pé mal mastigado, que agora é a única recordação do meu irmãozinho. A minha mãe fechou-se na casa de banho a chorar, e eu estou a limpar o sangue da minha vizinha. A seguir tenho de ir apanhar os restos dos braços dela ao hall de entrada, e talvez ir com uma esfregona escada abaixo lavar o sangue. O monstro arrastou-a até à rua, e desapareceu pela esquina abaixo. Escrevo-vos com o braço que tenho disponível, porque o outro está a despejar Betadine na ferida infectada que o monstro abriu na minha anca. Dói bastante, e está coberta por um pus verde que cheira mal. Já chamei uma ambulância, mas em vez de lhes explicar quem monstro verde que vivia debaixo da minha cama atacou e devorou a minha avó e o meu irmãozinho, bem como a minha vizinha do lado, inventei que tinha caído das escadas e partido o pé.

Espero conseguir desinfectar isto a tempo de ir a banco amanhã; é o dia da minha avó receber a reforma.
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