quarta-feira, 31 de março de 2010
A Conspiração Gay lança mais um ataque violento aos pobres e inocentes padres pedófilos
Programas da Sic: a tornar o povo mais ignorante desde mil novecentos e noventa e tal
terça-feira, 30 de março de 2010
Porque é que ontem não escrevi história nenhuma?
Ontem estive demasiado ocupado para escrever. Depois de acordar às tantas, uma vez que estou de férias e isso é uma boa desculpa para ler até tarde e ficar a dormir até à hora do almoço, tive uma série de obrigações para fazer que me impediram terminantemente de escrever qualquer coisa aqui para o blog. Eu sei, eu sei; prometera que nestas férias escreveria uma história por dia, mas ontem simplesmente não consegui. Depois de chegar a casa da dança, extremamente mal disposto e cansado, fui dormir.
Por volta das três da manhã acordei com o som da fechadura a rebentar, e quando me levantei da cama e acendi a luz três homens enormes entraram-me pelo quarto e agarraram em mim.
- Socorro! – gritei, que nem uma menina. Por pouco não cheguei ao telemóvel, para ligar à polícia. Enquanto dois dos homens me sentaram numa cadeira, o terceiro pisava o meu telemóvel com as suas botas número 47.
Atiraram-me contra a cadeira, e um dos homens retirou do bolso interior do casaco um revólver negro e apontou-mo à cabeça.
- Boa noite – disse o dono do revólver. Os outros dois homens reuniram-se à minha volta.
- Boa noite – disse eu, a medo. Tinha de simpatizar com estes dementes se queria sair dali vivo. Olhei bem para eles, procurando alguma característica física que sobressaísse e que me possibilitasse a identificação dos homens mais tarde, quando fosse levado para a esquadra. Todos eles tinham casacos de cabedal pesados. Eram entroncados, de cabeças enormes e ar de italianos. Soube imediatamente que estava a lidar com profissionais.
- Somos profissionais – disse-me um dos homens – Não tentes fazer nenhum disparate senão levas um tiro. Nos cornos.
- Eu não quero levar um tiro – disse eu, choramingando.
- Ninguém quer, habitualmente. Por isso não faças nada estúpido.
- Juro que não me mexo. Levem o que quiserem. Tenho a Playstation 2 na sala e a minha colecção de cartas do Yu-gi-oh naquele armário. Algumas valem dinheiro. Levem tudo.
- Não queremos levar nada – disse o dono do revólver, que parecia ser o líder do grupo – Viemos apenas fazer-te umas perguntinhas. Onde está a história?
- A história?
- Sim. Projecto Xerezade.
- Oh Deus.
- Onde está a história?
- Vão dar-me um tiro por causa de uma história?
- Isto para ti pode ser uma brincadeira, mas para nós não. São negócios, Renato. A história.
- Não escrevi – disse eu. O dono da arma premiu aquela peça na ponta da arma, que os assassinos nos filmes usam sempre para assustar as vítimas. Não me lembro como se chama. Vocês sabem.
Tlic, fez a tal peça cujo nome não me lembro. Por esta altura estava a chorar como uma menina.
- Calma, calma, calma. Eu escrevo-vos a história. EU escrevo.
- Porque não escreveste antes? – perguntou um dos homens.
- Esqueci-me, tive mais que fazer, eu sei lá… Por favor não me dêem um tiro…
- Renato, ouve-me bem. A partir de hoje vais escrever as histórias a horas, todos os dias, senão temos de te vir fazer outra visita.
- Quem vos mandou cá? – perguntei eu.
- Desculpa?
- Porque estão tão interessados na minha história? – perguntei.
- Está calado.
Nesse momento compreendi que quem quer que aqueles homens estivessem a representar, tratava-se de alguém que precisava das minhas histórias. Podiam até estar a lucrar com elas, ou eram apenas grandes fãns que choravam toda a noite por não ter actualizado o blog. Percebi que aquela arma era uma ameaça para me assustar, mas nunca para me tirar a vida.
- Vocês não me vão matar – disse eu com um sorriso trocista.
O tiro foi tremendamente intenso. Comecei a gritar. Tinha visto cenas idênticas nos filmes, mas nunca pensei que um tiro na rótula doesse realmente tanto. O Jack Bauer costumava fazer isto no 24. Comecei a gostar menos do Jack Bauer. A dor era inacreditável, estava a sangrar imenso e mal conseguia abrir os olhos.
- Tu não brincas comigo! – disse-me um dos homens, agarrando-me pelos cabelos e puxando-me a cabeça para trás.
- Traz a tartaruga – disse um dos homens.
Não, pensei eu. Não a minha tartaruga.
Quando abri os olhos o dono da arma estava com a Minhone à frente da arma. A pobre tartaruga, arrancada violentamente do seu aquário, espreguiçava-se e tentava-se soltar, agitando as patas e a cabeça. Recomecei a chorar.
- Não, por favor não. Ouçam-me. Ouçam-me – disse eu por entre a dor – Na terceira gaveta do armário. Ali. Levem tudo o que quiserem.
Um dos homens abriu a gaveta e começou a tirar as folhas de papel que já estavam guardadas. Era toda a minha colecção de contos eróticos secretos protagonizados por Simião, um herói que criara na minha adolescência. Nunca tivera coragem de mostrar aquilo a ninguém, apesar de ter a certeza que eram histórias de qualidade.
- Levem-nas todas – disse eu.
Os três homens largaram-me o cabelo, atiraram a tartaruga para dentro do aquário, que aterrou dentro de água com um chapinhar desesperado e prepararam-se para sair do quarto. Um deles regressou, apontou-me a arma à cabeça.
- Dá-me um autógrafo – disse ele.
- O quê?
- Dá-me uma autógrafo. Eu gosto de ler o teu blog. Dá-me uma autógrafo, porra.
Tentei controlar a dor no joelho. Com certeza não voltaria a andar mais ao pé coxinho apoiado naquela perna.
- Tens papel? – consegui perguntar ao homem, por entre os meus próprios gemidos.
- Não. Espera. Ei! Tens papel? – perguntou o homem a um dos colegas. Um deles tinha.
- E uma caneta? – perguntei.
- E uma caneta? – perguntou o homem. Um dos outros homens tinha uma caneta, sim.
- Escreve aí - ordenou o homem, quase enterrando a arma dentro de um dos meus olhos – “Para o meu fã número um com votos de Boa Páscoa e muitas amêndoas”.
- Ok – disse eu, escrevendo. Sujei o autógrafo com o meu próprio sangue, pedi desculpas e continuei.
- E agora assina – ordenou-me o homem. Eu assinei.
- Obrigado. Continua a escrever, tens jeito – disse-me o homem. Retirou a arma de dentro do meu olho e desapareceu pela porta. Passados alguns segundos regressou, e voltou a apontar a arma à minha cabeça.
- Ah, e a tua próxima história tem de ser sobre nós – disse-me ele – E eu tenho de aparecer. E tens de nos descrever como tipos fortes e assustadores. Ok?
- Ok – prometi. Eles foram-se embora.
O prometido é devido.
.
domingo, 28 de março de 2010
Espelho | ohlepsE
Se eu colocar um espelho à frente do outro, o que acontecerá?, perguntava-se Alice enquanto acordava. Talvez fosse por causa do teste de filosofia, para o qual não estudara. Esquecera-se. Perdera-se no seu mundo de fantasia e filosofia muito pessoal, sem o qual Kant e Locke não pareciam ter interesse por si só.
Alice entrou para a casa de banho, levando consigo a roupa que iria vestir nesse dia. Escolhera-a a olho, sem preocupações quanto a equilíbrios cromáticos ou decotes equilibrados. Olhou-se ao espelho. O seu cabelo louro estava caótico. Estava com cara de sono. Não queria ir para a escola, muito menos fazer aquele teste. Não lhe apetecia sair de casa. Abriu a torneira, e em pouco tempo as paredes da casa de banho estavam cobertas por uma fina camada de vapor de água. A água estava quente, e Alice sentiu-se tão bem dentro da banheira que lavou o corpo, o cabelo, e deixou-se ficar mais cinco minutos sem saber bem o que pensar ou dizer, comendo tempo debaixo do chuveiro relaxante.
Saiu da banheira, enrolou-se na toalha de banho e limpou o espelho à espera de ver a sua cara molhada e os seus olhos mais acordados a olhar para ela. Não estava lá.
Alice piscou os olhos. Não andava a dormir assim tão mal; mas o espelho estava vazio. O reflexo mostrava o cortinado da banheira atrás de si, a pingar, e a um canto a prateleira onde guardava o gel de banho e o shampô; mas Alice desaparecera.
O sono trouxe a Alice um pensamento irracional: o espelho estava avariado. Sorriu, mas retomou a cara séria ao ver que a Alice do espelho regressava, completamente vestida, e olhava agora para ela.
- Bom dia – disse a Alice do espelho, ajeitando a camisola.
- Bom dia – respondeu a Alice, a verdadeira.
- Desculpa se te assustei.
- Isto vai tudo contra aquilo que é… normal – disse a Alice verdadeira. A Alice no espelho deu uma gargalhada, igual à gargalhada que a Alice verdadeira dava quando estava divertida.
- Bem, não conheces muito do mundo, pois não?
- Estou a ter uma alucinação – disse a Alice verdadeira.
- O teu creme está a acabar. O hidratante. Toma – disse a Alice no espelho, procurando por entre o pequeno cestinho com cremes do seu lado do espelho, cesto igual ao que a verdadeira Alice tinha na sua verdadeira casa de banho. A Alice do espelho encontrou o creme, e estendeu-o através do espelho. Alice, a verdadeira, aceitou-o. Tinha agora dois cremes, um no cestinho à sua frente, no lavatório, e outro na sua mão.
- Não queres fazer o teste, pois não? – perguntou a Alice do espelho, cruzando os braços.
- Desculpa? – perguntou a Alice verdadeira.
- O teste. O que achas de ser eu a fazê-lo por ti?
- Tu?
- Sim.
- Tu és o meu reflexo.
- Sou.
- Então tu és eu.
- Não lês muita ficção científica, pois não?
- Isto é a coisa mais estranha que me aconteceu…
- Estou a ver que não. Queres vir aqui? – perguntou a Alice do espelho, estendendo-lhe a mão. A Alice verdadeira estendeu a mão, e sentiu-a atravessar o espelho. Meteu o pé em cima do lavatório, içou-se com a ajuda da Alice do espelho, e atravessou-o para o outro lado. A casa de banho do espelho era absolutamente igual à sua, mas o chão não estava frio nem o aquecedor produzia qualquer calor.
- Bem vinda ao reflexo – disse a Alice do reflexo, que agora era apenas uma Alice uma vez que ambas estavam ali, dentro do reflexo.
- Explica-me como chegar à tua escola – pediu a Alice do reflexo, e a Alice verdadeira explicou-lhe brevemente o caminho. A Alice do reflexo empoleirou-se no lavatório e atirou-se para o outro lado. A Alice do reflexo era agora a Alice real, e a Alice que era real estava agora no espelho, dentro do reflexo, ela era reflexo. Confusa, perguntou:
- Espera. Onde estou? Que lugar é este?
- É o reflexo da tua casa de banho. O que achas?
Alice, a que era real e agora era a do espelho, olhou para a porta da casa de banho.
- Posso sair?
- Da casa de banho? Claro, mas por favor não te metas dentro de outro espelho. Se a tua mãe te descobre dentro do espelho enquanto se penteia ainda se assusta.
- A minha mãe não é tua também? – perguntou a Alice real.
A Alice do espelho riu-se.
- Tem um bom dia. Quando chegar aviso-te. Obrigado por esta oportunidade. Sempre tive curiosidade para saber como era viver no mundo do outro lado do espelho!
A Alice real ia perguntar o que significava isso do “outro” lado do espelho, mas a Alice, a que fora reflexo e agora era real, saiu da casa de banho a correr, a caminho da escola.
Alice ficou parada por alguns momentos. A luz da casa de banho fora desligada, e agora a única fonte de luz era a pequena lâmpada do esquentador, cor de laranja, que indicava que estava ligado. Alice prendeu melhor a toalha à volta do corpo e abriu a porta da casa de banho. Saiu.
Uma réplica perfeita do seu hall de entrada, com as diversas portas para os quartos e cozinha, estava à sua frente. Uma mulher, igual à sua mãe, estava à frente do espelho que a sua família tinha ao lado da porta de casa.
- Alice, pelo amor de Deus. Estás atrasada para a escola! – disse a Mãe real, do outro lado do espelho; ou seria do lado de fora?
- Alice, pelo amor de Deus. Estás atrasada para a escola! – disse a Mãe deste lado do espelho, exactemnte ao mesmo tempo.
- Eu sei! – disse uma voz, que Alice reconheceu como a sua. Uma porta abriu-se, e a voz que era a sua voltou a dizer:
- Adeus, mãe!
A porta fechou-se.
- Adeus, filha –disse a Mãe do lado de lá do espelho.
- Adeus, filha – disse a Mãe do lado de cá do espelho, imitando cada movimento calculado da outra Mãe. A Mãe real desapareceu de frente do espelho em direcção à cozinha, e a Mãe deste lado acompanhou-a, saindo de frente do espelho exactamente pelo mesmo lado. Alguns passos depois, descontraiu e sentou-se numa pequena cadeira a um canto do hall de entrada. Abriu uma garrafa de água, bebeu um gole ou dois, e olhou para Alice.
- Então? Tudo bem?
- Vai-se andando – disse Alice.
A Mãe olhou para a garrafa que estava a beber, e voltou a olhar para Alice com os olhos mais abertos.
- Porque estás de toalha? A Alice saiu de casa vestida!
- Eu… - disse Alice, procurando justificar-se.
- Oh, não acredito. Tu não és a Alice.
- Sou sim – disse Alice.
- Não, não és. Ou pelo menos não és a Alice que deverias ser. Trocaste de lugar com a Alice, não foi? Com a outra Alice. A verdadeira.
- Eu sou a verdadeira. A outra Alice é que é o reflexo meu. Do espelho. Sem eu não haveria ela.
- Essa é boa.
- É a verdade.
- Deixaste-a trocar assim de lugares contigo?
- Porquê?
- Não sei, parece-me confuso e despropositado.
- Apenas fiquei curiosa para saber o que aconteceria deste lado.
- Mas se já tens a tua vida do outro lado, para quê vir para este?
- Queria fugir a um teste.
- Ah, bom. Honestidade.
- A outra Alice ofereceu-se.
- Queres dizer a verdadeira Alice?
Alice não sabia. A sua Mãe sorriu.
- Estava-me a meter contigo.
O seu sorriso desapareceu, largou a garrafa de água e correu para a frente do espelho. Assim que se aproximou dele, e de um segundo para o outro, passou a ter vestido um enorme casaco de pele e uma mala empoleirada no ombro. A Mãe do outro lado do espelho estava igualzinha; ou melhor, esta Mãe é que estava igualzinha à outra. A Mãe de cá imitou a Mãe de lá, milimetricamente, até que aquela saiu da frente do espelho. A porta de casa abriu-se e voltou a fechar-se. A Mãe de cá voltou a afastar-se do espelho, e a sentar-se na cadeira.
- Então é esta a vossa vida? – perguntou Alice.
- Mais ou menos. Vamos saltando de cenário. Agora tenho de ir para o carro, por causa do espelho retrovisor.
- Então esta é uma espécie de dimensão à parte? Com todos os outros lados dos espelhos?
A Mãe olhou para ela com cara séria.
- Não. O outro lado do espelho é que é o outro lado. Nós estamos neste lado, não no outro.
- Isso parece-me incrivelmente subjectivo e parcial.
- Pois a mim que me importa? Tenho de ir, vemo-nos mais logo.
A Mãe caminhou até à porta de casa, abriu-a, saiu e fechou a porta atrás de si. Alice conseguiu ver, de relance e do outro lado da porta, o interior do carro da sua Mãe; o que não fazia sentido, porque a sua porta de casa dava para o terceiro andar do seu prédio, não para o carro que estava estacionado a um quarteirão de distância de casa.
Alice sentou-se na cadeira. A casa estava silenciosa. Esperou durante alguns minutos. Não sabia o que fazer. A vida neste lado do espelho parecia aborrecida.
- Hei! – ouviu, uma espécie de voz omnipresente. Era sua, a voz. Estava a chamar-se a si própria.
- Onde raio estás? – perguntou a voz que era a sua.
- Aqui – respondeu Alice, estupidamente; apesar de, depois daquela manhã, já não saber bem o que significava estar “ali”.
- Abre a porta da rua! Rápido! – pediu a voz. Alice levantou-se da cadeira, atravessou o hall da sua casa e abriu a porta. Do outro lado, à sua frente, estava a casa de banho das raparigas da sua escola. Uma parede coberta de espelhos estava à sua esquerda, por cima dos lavatórios. Alice, de camisa e mala a tiracolo, olhava para este lado do espelho, impacientemente. Quando a viu respirou fundo.
- Onde estavas? Anda cá!
Alice entrou pela casa de banho e colocou-se de frente para a outra Alice; a Alice que, supunha agora, era a Alice real.
- Tens de me seguir para onde quer que eu vá e haja espelhos, sua totó. Não podes deixar que seja apanhada sem reflexo!
- Não sabia como funcionava, desculpa.
- Vou para o teste agora. Em que sala é?
- 26.
- Óptimo. Há espelhos nas escadas? Ou na sala?
- Não.
- Muito bem. Fica aqui e espera por mim. Quando regressar tens de me imitar. Todos os movimentos, todas as nuances; isto se estiver mais alguém na casa de banho. Ok?
- Ok – respondeu Alice.
- Até já.
A Alice, a outra que agora era a Alice, saiu da casa de banho. Alice olhou para si própria, e viu-se de camisa, calças de ganga e mala a tiracolo, igualzinha à Alice que ainda há segundos estava a falar consigo. Percebeu que era a forma que esta estranha dimensão tinha de actualizar os dados, e poder apresentar um reflexo actualizado a toda a hora. Não podia deixar de se sentir tonta com tamanha descoberta. Era a coisa mais estranha que vira na sua vida, e com toda a certeza, a partir de agora, a sua vida seria diferente. A sua maneira de encarar o mundo, depois desta experiência, seria muitíssimo diferente. Escondeu-se debaixo dos lavatórios, e esperou que a Alice, a outra Alice, regressasse.
Passada uma hora e meia a campainha tocou, e Alice entrou na casa de banho.
- Alo? – perguntou.
Alice levantou-se de debaixo dos lavatórios e olhou para a outra Alice.
- Como correu?
- Não muito bem. Quem é esse tal de Platão?
- Filósofo grego.
- Ah. Confundi com o outro.
- O outro?
- O planeta. Ouve, preciso de te perguntar uma coisa. Aquele rapaz. Um de cabelos encaracolados. Ele gosta de ti, não gosta?
Alice ganhou alguma cor nas bochechas.
- Sim, penso que sim, mas…
- Óptimo. É que pela forma como ele olhou para mim na sala também achei. Dei-lhe o teu número de telefone. Aliás, o meu.
- Porquê? Não me perguntaste nada, não acho nada boa ideia…
- Oh Alice, por favor. O rapaz é giríssimo e está muito interessado em mim. Aliás, em ti.
- Mesmo assim. Não te dei autorização para fazeres tal coisa e…
A porta da casa de banho abriu-se; a da casa de banho real, e a do lado de cá do espelho. Duas raparigas, colegas de Alice, entraram a conversar; e neste lado do espelho, os seus dois reflexos entraram na casa de banho a conversar também, imitando os seus movimentos na perfeição.
- O teste era impossível, desculpa lá… - dizia uma das amigas, vestida de vermelho.
- O teste era impossível, desculpa lá… - disse a rapariga de vermelho à esquerda de Alice, do lado de cá do espelho.
- Também achei – comentou a rapariga que vinha com ela, de azul.
- Também achei – comentou, no mesmo tom, a rapariga de azul que era o reflexo da rapariga de azul.
A Alice real, do outro lado do espelho, parou de se mexer. A Alice deste lado do espelho parou na mesma posição, rezando para que a outra Alice se mexesse o menos e mais devagar possível.
- Alice, estás bem? – perguntou a rapariga de vermelho.
- Alice, estás bem? – perguntou o reflexo da rapariga de vermelho.
- Estou pois – respondeu Alice, piscando os olhos.
- Estou pois – disse a Alice deste lado do espelho, imitando a outra o mais rápido que pôde.
- Não pareces nada – disse a rapariga de azul.
- Não pareces nada – disse o respectivo reflexo.
- Não, a sério. Obrigada pela atenção.
- Não, a sério. Obrigada pela atenção.
- Lava a cara, pode ser que ajude – sugeriu a rapariga de vermelho e o seu reflexo ao mesmo tempo.
- Oh, claro, sim – disse Alice. Dobrou-se muito devagar sobre o lavatório, abriu a torneira muito devagar, enrolou as mãos numa concha e encheu-a de água. Esta Alice, deste lado do espelho e que para a Alice que agora era a real era o outro lado do espelho, tentou acompanhar-lhe os movimentos. Conseguiu-o com bastante cuidado e atenção até à parte em que a Alice real mergulhou a cara nas mãos molhadas. Alice teve de a imitar, mas sem saber quando podia levantar a cabeça acabou por fazê-lo mais cedo do que era suposto. O reflexo no espelho, portanto, levantou a cabeça mais cedo do que a Alice real. A Alice real levantou finalmente a cabeça, viu que a outra Alice já estava com a cabeça levantada e abriu os olhos preocupadamente.
- Bem, vamos andando – disse a rapariga de vermelho.
- Bem, vamos andando – disse o seu reflexo.
As duas raparigas saíram da casa de banho, assim como os seus reflexos, cada par pela sua porta.
- Oh meu Deus – disse Alice, a real.
- Enganei-me. Desculpa. Será que me viram? – perguntou Alice.
- Acho que não. Espero que não.
A porta da casa de banho deste lado do espelho, ou seja, o reflexo da porta real, abriu-se novamente; mas não a porta real. O reflexo das duas raparigas entraram na casa de banho.
- O que raio se passou aqui? – perguntou o reflexo da rapariga de vermelho.
- Porque te enganaste?
- Calma, ela só começou hoje – disse a Alice real.
- Como assim, hoje? – perguntou o reflexo da rapariga de azul.
- Espera. Vocês trocaram de lugares? – perguntou o reflexo da rapariga vermelha.
- O que é que tem? – perguntou a Alice real.
- Tu és doida. Iam sendo apanhadas!
- Não quero arranjar problemas – disse a Alice deste lado do espelho.
- Não arranjas problemas nenhuns – disse a Alice real. O seu telemóvel tocou, e o telemóvel da Alice deste lado do espelho também. Ambas procuraram o telemóvel e o encontraram ao mesmo tempo, como a imagem espelhada uma da outra.
A mensagem recebida dizia “Encontramo-nos no bar?”. Estava assinada pelo rapaz do cabelo encaracolado.
- Bem… vou andando! – disse a Alice real, sorrindo ligeiramente e apressando-se a sair.
- Hei! – disse a Alice deste lado do espelho, vendo a outra Alice desaparecer pela porta da casa de banho – Volta aqui! Eu não te autorizei a fazeres isso!
- Vocês as duas são loucas – disse o reflexo da rapariga de vermelho, saindo atrás do reflexo da rapariga de azul pelo reflexo da porta da casa de banho. Alice estava agora sozinha. A outra Alice, aliás, ela própria, andava pela escola a arranjar namoros mal fundamentados. Aquilo não podia estar a acontecer. Aquela Alice não era ela. Aliás, até podia ser, mas não era ela. Certo?
Alice tirou o telemóvel da mala e enviou uma mensagem dizendo “Não posso, tenho de ir para casa. Não esperes por mim”. Enviou a mensagem ao rapaz. Esperou, decidindo o que ia fazer. Ficou à escuta; nada. Já tocara, e toda a gente tinha ido para as aulas. Alice trepou pelo lavatório acima, empoleirando-se sobre ele com os pés, e atravessou o espelho para o outro lado. Voltou a descer, desta vez sentando-se no lavatório cujo reflexo a ajudara a subir. Atravessou a casa de banho, enfiou-se num cubículo, esperou. Recebeu uma mensagem, do rapaz, que dizia, “Azar, fica para outro dia”.
Minutos depois a outra Alice entrou pela casa de banho.
- Onde estás? Onde estavas com a cabeça? Ele estava à minha espera!
A Alice olhou para o espelho, mas não viu o seu reflexo.
- Alice? – perguntou Alice. A porta do cubículo atrás de si abriu-se de rompante, e Alice caiu-lhe em cima. Agarrou-a pelos cabelos, e arrastou-a para dentro do cubículo. A outra Alice gritou, e tentou debater-se. Alce puxou-lhe os cabelos, agarrou-lhe os braços de maneira a imobilizá-la, mas não conseguiu. A outra Alice soltou-se, puxou-a contra os lavatórios, empurrou-a contra o espelho e deu-lhe um estalo. Alice desequilibrou-se, escorregou na superfície molhada do lavatório e bateu com a nuca na torneira, perdendo os sentidos.
Quando voltou a si, estava deitada no chão da casa de banho mas não sabia de qual. Supunha que era a casa de banho real, a não ser que a outra Alice tivesse tido força para a içar até à altura do espelhoe a tirado para o outro lado. Levou a mão à cabeça, e sentiu os cabelos despenteados. Sangrara um pouco, e estava tonta. Meteu-se de joelhos no chão da casa de banho, e à medida que retomava os seus sentidos reparou que o chão não estava frio como era costume. Estava do lado de cá do espelho, do lado de dentro. Olhou em volta, procurando o espelho, mas viu que não havia nenhum. A parede onde antes estivera pendurado o espelho estava agora vazia, e apenas um pedaço de espelho partido parecia ter sobrevivido, a um canto, preso por um suporte metálico. Alguém partira o espelho, pensou Alice.
O seu telemóvel apitou. Alice procurou-o, e leu a mensagem recebida. “Ok, então encontramo-nos no café. Até já”. Era o rapaz do cabelo encaracolado encaracolado.
Levantou-se. Não podia regressar de onde viera através do espelho; o resto de espelho que sobrara não era suficiente para conseguir passar. Tinha de arranjar outra solução. Abriu a porta da casa de banho, esperando encontrar o próximo cenário, o que quer que fosse, mas em vez disso um ruído ensurdecedor rodou-a e por momentos deu por si no centro de uma enorme tempestade de neve. Da porta aberta para a frente não estava um cenário, mas sim uma espessa parede de neve cinzenta que esvoaçava a uma velocidade violentíssima. Alice não conseguia ouvir ou ver nada do que se passava dentro da tempestade. Lutando contra o vento forte, fechou a porta atrás de si e deixou-se deslizar para o chão.
Minutos depois, a porta abriu-se e a sua Mãe entrou.
- Hei, andava à tua procura. Onde estiveste?
- Ainda bem que apareceu, Mãe.
- Eu não sou a tua Mãe. Não tecnicamente.
- Seja. Preciso da sua ajuda. A Alice está descontrolada.
- A Alice?
- Sim.
- Ou seja, tu?
- Sim. A outra eu. Preciso de a encontrar. Preciso de regressar à normalidade.
- A última vez que a vi ela estava a entrar em casa com um rapaz. Mas parece-me que estão ocupados.
- Oh Deus. Posso ir até casa?
- Claro, passa, passa – disse-lhe a Mãe, abrindo-lhe a porta.
- Há pouco tentei fazer isso e só me apareceu uma tempestade de neve à frente.
- Oh, é natural – disse-lhe a Mãe – acontece quando a outra pessoa, do outro lado do espelho, não está em nenhum lugar onde possa ser reflectida. Só podes saltar de cenário em cenário em que essa pessoa tenha um espelho à frente. Eu sei, é limitante, mas vais habituar-te.
Do outro lado da abertura estava agora a sua casa de banho; ou melhor, sabia-o Alice, o reflexo da sua casa de banho. Entrou, fechou a porta, empoleirou-se no lavatório, e tentou passar através do espelho. Conseguiu, desceu pelo seu lavatório do outro lado e abriu a porta da casa de banho. À sua frente estava a sua mãe.
- Então, encontraste-a?
- Mãe?
- Já te expliquei que não sou a tua mãe, não tecnicamente.
- Não estou no lado de fora do espelho?
- Não me parece, minha querida. Já experimentaste atravessar o espelho? – perguntou a mãe, apontando para o espelho.
- Acabei de vir de lá – expicou Alice, frustrada.
- Oh, aqui está o problema – disse a Mãe, semicerrando os olhos e apontando para o espelho outra vez. Alice olhou para onde a Mãe apontava. Reparou agora que o reflexo no espelho tinha uma pequena moldura à volta, de madeira.
- Alguém pôs um espelho à frente do outro lado do espelho – explicou a Mãe.
- O quê?
- Foi inteligente, por acaso. Assim o reflexo que vês neste espelho é, na verdade, o reflexo de ti própria. O outro lado do espelho é este lado do espelho.
Alice olhava para o reflexo do espelho, e pode finalmente reconhecer a moldura de madeira como sendo a moldura do espelho que estava no quarto da sua mãe, perto da cama.
- Não sei se percebeste bem, desculpa se não me sei explicar melhor – disse a Mãe – Ups, a tua mãe está a chegar – a Mãe deu meia volta e saiu da casa de banho. Do hall de entrada vinha o som das chaves a abrirem a porta e uma voz a dizer “Alice? Já estás em casa?”
Alice olhou para o reflexo do espelho outra vez, sem querer acreditar.
- Alice? Onde está o espelho do meu quarto? Alice? – perguntava a sua mãe. Alice saiu da casa de banho e entrou no hall de entrada, exactamente na altura em que o reflexo da sua mãe se metia em frente ao espelho, imitando a sua mãe verdadeira a tirar o casaco e a deixar a mala em cima da cómoda.
- Alice, não me ouves? – perguntava a sua mãe, do outro lado do espelho.
- Alice, não me ouves? – perguntava o reflexo da sua mãe, imitando a original.
- Mãe! – chamou Alice, deste lado do espelho, colocando-se à frente do espelho.
- Alice?
- Alice? – repetiu o reflexo da sua mãe.
- Mãe, estou aqui! Dentro do espelho!
O reflexo da sua mãe imitava a mãe original com toda a precisão, enquando a mãe original se aproximava do espelho e semicerrava os olhos, icrédula. Olhou para trás, mas atrás de si não estava ninguém. Voltou a olhar para o espelho.
- Estou dentro do espelho, Mãe! – gritou Alice.
A outra Alice, a Alice real e quem em tempos fora reflexo, apareceu vinda do seu quarto. Vinha enraivecida.
- Alice, não estou a perceber… O que se passa aqui? – perguntou a sua mãe, olhando para dentro do espelho e depois para a Alice real.
- Ela não é a Alice! Eu sou! – gritou Alice. Empurrou o reflexo da sua mãe para o lado, agarrou-se às bordas do espelho e preparava-se para o atravessar quando a outra Alice agarrou num candeeiro que estava em cima de uma cómoda e o atirou contra o espelho. O candeeiro atravessou o hall e foi embater na cabeça da sua mãe, que caiu para frente e bateu com o queijo no espelho. O reflexo da sua mãe fez o mesmo, atirando-se de forma ridícula para frente e batendo com o queijo no lado de cá do espelho. Houve um som assustador, saído do pescoço da mãe, e o espelho partiu-lhe em pedaços que caiam pela parede como gotas de água.
Alice gritou; uma das Alices, pelo menos. A outra Alice, a real, aproximou-se de um dos bocados de espelhos e sorriu para Alice, o seu reflexo. Depois disto, desapareceu. Alice podia ver, através de um pequeno estilhaço, a porta da rua a ser aberta e depois fechada. Levantou-se do chão, correu pelos estilhaços caídos e abriu a porta. A tempestade de neve cuspiu-lhe uma golfada de vento para a cara. Alice chegou a abrir a boca, mas o som da tempestade engoliu-lhe o grito.
Horas depois, Alice estava a chorar, a um canto do hall. Podia ver, através de um pequeno estilhaço que tinha aos seus pés, uma equipa de polícias a tapar o corpo da sua mãe com um plástico branco e um homem vestido com um fato impermeável a tirar fotografias ao candeeiro.
- Já encontraram a filha da vítima? – perguntou um homem de fato, que parecia detective.
- Infelizmente não. Vamos fazer correr a sua fotografia pelas patrulhas, não pode ter ido muito longe.
- E o rapaz?
- Já ligámos para a família, vão reconhecer o corpo mais logo na morgue.
Alice viu através do estilhaço um flash de luz, enquanto o homem de impermeável tirava uma fotografia ao espelho partido. Ao fundo do hall, para lá do reflexo quieto do cadáver da sua mãe, a porta aberta continuava a mostrar uma densa tempestade de neve.
- Não fiques assim – disse o reflexo da sua mãe, deitado numa posição estranha, com o pescoço dobrado a noventa graus. A sua boca estava coberta por pequenos vidros.
- Como posso regressar ao outro lado? – perguntou Alice, por entre os olhos gordos e vermelhos do choro.
- Acho que as possibilidades são bastante diminutas, minha querida. Não quero ser desmancha prazeres, mas a Alice sabe bem o que faz e com certeza nunca mais voltará a entrar numa sala com espelhos. Ela sabe que a queres apanhar. Ou melhor, que tu te queres apanhar a ti própria. Sabes, até tu chegares nunca tinha pensado sobre o paradoxo inerente a toda esta situação – disse o cadáver, de vidros na boca.
Alice continuou a chorar, inconsolável, até adormecer.
Quando acordou, olhou para a porta aberta e reparou que a tempestade desaparecera. Levantou-se de um salto. Através da porta aberta conseguia agora ver uma sala de interrogatórios rectangular e acinzentada. Alice estava sentada a uma mesa, em frente a um espelho. Alice, levantou-se do canto onde estivera a dormir, atravessou o hall pisando os estilhaços de vidro e despediu-se do reflexo da sua mãe.
- Vou ficar por aqui. Duvido que a tua mãe volte a estar de frente a um espelho – comentou o cadáver torto – Mas desejo-te felicidades.
Alice, sem saber bem o que dizer, atravessou a porta aberta e fechou-a atrás de si. Saltou para o outro lado do espelho, indo cair na sala de interrogatórios.
- Foste apanhada – disse ela. A Alice real, ou melhor, uma das Alices reais, pois agora havia duas, olhou para ela impavidamente.
- Tu foste apanhada, por outras palavras.
- Não tinhas o direito de estragar assim a minha vida.
- Eu não estraguei a tua vida, estraguei a minha. Certo? – esta Alice real sorriu sarcasticamente, e com isto deu um salto na cadeira de plástico, atirando-a para o chão. Subiu para a mesa com toda a agilidade e atirou-se para a frente, para a parede da sala coberta por um enorme vidro espelhado. A outra Alice real deu um grito, agarrou na cadeira, arremessou-a, tentando desesperadamente acertar na outra Alice que fugia. A cadeira era estranhamente leve e frágil, mas voou com força suficiente. Assim que a outra Alice atravessou o vidro espelhado e caiu no outro lado, no reflexo da sala dos interrogatórios, a cadeira embateu no vidro e despedaçou-o eficientemente.
Choveram estilhaços. Alice gritou, e dois polícias entraram de rompante pela porta. Um terceiro homem entrou na sala, enquanto os dois polícias tentavam agarrar em Alice, a Alice real, a única Alice na sala. Esta Alice reconheceu o homem; era o detective. Esta Alice procurou os estilhaços do espelho, procurando um reflexo fugaz da sua cara, um reflexo fugaz da outra Alice que agora deixava de ser real, mas não a encontrou. O espelho partido estava espalhado pelo chão e pela superfície da mesa, reflectindo um tecto falso com nódoas de tabaco e os esforços de dois polícias gordos a esbracejar sozinhos desesperadamente, como se tentassem agarrar uma criatura invisível.
.
Os argumentos para a existência de Deus
Depois de ver um debate bastante interessante entre quatro cristãos e um ateu, retive um pormenor interessante. Os cristãos falaram de uma enorme quantidade de argumentos para a existência de Deus, que são não só argumentos extremamente atraentes como, à primeira vista, razoavelmente pensados.
O argumento da causa primordial, que defende que deverá haver uma causa primordial para a existência do Universo, e que essa causa será Deus. O argumento do design inteligente, que nos diz que os seres vivos e o Universo são tão complexos e bem organizados que esta organização só pode ser explicada com a existência de um Deus que a tenha supervisionado. O argumento da moralidade, que defende que se há um código moral é por causa da existência de Deus e porque esse Deus nos ensina e transmite esse mesmo código moral, sem o qual é impossível construir sequer a noção de Bom e Mau. O argumento da contingência, segundo o qual se diz que a razão porque existe qualquer coisa ao invés de não existir nada é Deus. O argumento transcendental, que defende que se há absolutos lógicos (regras lógicas que são verdade independentemente do sítio no Universo onde nos encontramos, ex: a lei da identidade, segundo a qual algo é “A” ou “não A”, sendo estas as únicas possibilidades), e se estes absolutos lógicos são conceptuais e verdadeiros em todo o Universo, deve haver uma mente infinita que os tenha definido previamente, e essa mente é Deus.
Este tipo de argumentos, maioritariamente filosóficos, caem em diversas falácias lógicas (por exemplo, se o argumento da causa primordial nos diz que algo teve de criar o Universo porque este não pode existir desde sempre, e que essa primeira causa é Deus, então de onde apareceu Deus?); mas uma das maneiras mais rápidas de perceber a falta de utilidade destes argumentos ao tentar provar que determinado Deus existe é a seguinte. Experimentem reler o parágrafo anterior, substituindo cada referência a “Deus” por “uma equipa de goblins infinitamente poderosos”.
Reparam agora como todos estes argumentos não perdem a sua lógica. Com isto acabei de provar, conclusiva e cientificamente, a existência de uma equipa omnipotente de goblins exteriores ao nosso Universo.
E vós, queridos leitores? Conseguirão provar também, com estes argumentos para a existência de Deus, a vossa criatura mitológica imaginária? Haverá um prémio monetário para aquele que o conseguir fazer com maior criatividade.
.
sábado, 27 de março de 2010
Projecto Xerezade
O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar
quinta-feira, 25 de março de 2010
O respeito pelo Papa
segunda-feira, 22 de março de 2010
A Cebola
domingo, 21 de março de 2010
sábado, 20 de março de 2010
Reportagem sobre a IURD
terça-feira, 16 de março de 2010
Creatiologista no Saldanha
domingo, 14 de março de 2010
Evolução a uma voz (e a uma segunda voz que lá aparece por acaso mas que não sabe muito bem do que está a falar)
Terminei ontem de madrugada de ler o livro “Evolução a Duas vozes”, que por si só é uma ideia interessante. Alguém se lembrou de convidar dois lados opostos da discussão criacionismo/evolução e dividir o livro em duas partes, dedicando 90 páginas a cada um dos lados. Do “lado” da Evolução estava Teresa Avelar, bióloga especialista em biologia evolutiva e um nome constante na literatura portuguesa publicada sobre o assunto; do “lado” do criacionismo, um nome conhecido de todos mas visivelmente fora do contexto: Padre Carreira das Neves, o maior especialista português em teologia bíblica mas, como veremos mais à frente, ignorante em relação a aspectos básicos da evolução.
Teresa Avelar surpreendeu-me; não é por concordar com ela que a vou elogiar, mas sim porque a sua metade do livro é um resumo equilibrado, bem argumentado e escrito de forma simples e facilmente perceptível ao grande público. Começa por nos apresentar Charles Darwin, descrevendo a sua biografia em paralelo com a história da “ideia” da selecção natural e respectivas repercussões no pensamento da época. Segue-se um brilhante resumo, em apenas 16 páginas, das provas existentes que comprovam e acrescentam às ideias de Darwin a quase garantia que a evolução aconteceu. Por fim, Teresa Avelar concentra-se nos argumentos muitas vezes apresentados pelos criacionistas CONTRA a evolução e contra Darwin, explicando sucintamente o porquê do falhanço intelectual de todas essas tentativas (incluindo o meu favorito, “Evolução leva a racismo, fascismo e comunismo”).
Do outro lado, o que esperamos? Os argumentos criacionistas? Seria interessante; mas como alguém se lembrou de convidar um especialista na Bíblia, Padre Carreira das Neves, o “lado” contrário ao da evolução perde toda a capacidade argumentativa. Apesar de ser visível que Carreira das Neves percebe muito da Bíblia (basta ler as 3500 páginas dedicadas a descrever verbo a verbo e frase a frase a criação bíblica de Adão e Eva), é também visível que a sua visão sobre a evolução é ignorante e superficial. Repete incessantemente que a evolução trata da “evolução do Universo”, e que (e esta fez-me rir) o evolucionismo não tem “qualquer capacidade cientifica para falar em pecado ou em aliança”. Isso é suposto demonstrar o quê? Que uma teoria no campo da biologia que procura explicar a variedade das espécies e a sua respectiva evolução ao longo de escalas de tempo geológico não explica um particular ramo da crença cristã? Ei, a evolução também não explica como funciona o meu microondas; isso deve querer dizer alguma coisa!
Carreira das Neves possui todas as características de quem é inteligente (uma vez que não tenta por um momento defender o literal criacionismo bíblico, que aliás repudia, sendo esse o único elemento com o qual concordo nas suas 90 páginas e, para mim, a sua melhor mensagem a transmitir ao leitor sobre o tema que deveria estar a tratar), mas ao mesmo tempo perde-se em curtas referências à ciência que só lhe ficam mal. No meu parágrafo favorito, Carreira das Neves explica que Deus não pode ser limitado pelas actuais teorias da relatividade e física quântica, uma vez que Deus está FORA do tempo e espaço! Que coincidência. Que criatura é esta, então, que existe fora do espaço e do tempo, indefinível por definição, exterior a qualquer escrutínio científico ou intelectual?
Tristemente, Carreira das Neves não perde nem um parágrafo a definir Deus, muito menos a explicar-nos que justificação tem para acreditar em tal entidade; em vez disso, apresenta todas as suas teses e opiniões (que vão saltando entre temas como pecado original, São Paulo, Criacionismo Bíblio e o “fundamentalista ateu Richard Dawkins” sem qualquer fio condutor) com o óbvio pressuposto que esse Deus existe, criando no leitor um sentimento de vazio intelectual. Cita inúmeras obras com grande frequência, curiosamente escritas por Padres, católicos ou teólogos mas nunca por pessoas que não concordam com ele; numa das suas citações, a qual, diz “em meu entender, diz tudo o que também eu gostaria de dizer como conclusão”, lê-se:
“Deus é Absoluto, não precisa de nenhuma coisa, de nenhuma relação exterior a Si, para ser Quem é. Deus acompanha cada uma das criaturas, mas permanece igual a si mesmo. Deus é”.
Ora, o que podemos extrair desta citação? A meu ver, absolutamente nada. Deus é, Deus é infinito, Deus é isto, Deus faz aquilo; sem nunca haver uma única definição de Deus apresentada ao leitor.
A mensagem geral de Carreira das Neves é a de que, ao contrário do que é defendido (e muito bem) por Teresa Avelar, a ciência e a religião devem manter um diálogo aberto e democrático, porque ambas procuram responder às interrogações do Homem. Ora, isto é impossível. Não pode haver “diálogo” entre duas áreas do conhecimento humano tão diferentes. Enquanto que a ciência reúne dados e chega a conclusões, a religião tira conclusões e depois vai escolher os dados que a comprovam; basta ver a interpretação completamente arbitrária do Padre Carreira das Neves em relação ao Génesis, defendendo que aquela sua interpretação é que é a correcta porque ele sabe ler em aramaico e era isto ou aquilo que o autor que escreveu o Génesis queria dizer.
Diz Teresa Avelar: “O facto de existirem pessoas que conseguem conciliar uma actividade científica com crenças religiosas não implica que os dois sistemas de pensamento sejam logicamente conciliáveis: significa apenas que as pessoas conseguem funcionar com contradições. Os cientistas excluem o sobrenatural da ciência que praticam – ou seja todos os cientistas, crentes ou não-crentes, tornam-se “operacionalmente ateus” no laboratório.
Resumindo. Será esta uma boa introdução ao debate “Criacionismo e Evolução”? Sim, se quiserem saber mais sobre apenas um dos lados do combate. Eu, que comprei o livro EXACTAMENTE por apresentar uma oposição à evolução e selecção natural, vi-me desapontado ao terminar a minha leitura. Li primeiro a parte de Teresa Avelar e só depois Carreira das Neves, mas talvez seja mais engraçado ler ao contrário para melhor compreender o abismo que os separa, e o contraste na qualidade da prosa, capacidade de comunicação e conteúdo. Vale a pena espreitar as 90 páginas de Teresa Avelar e tentar ler por entre a aborrecida e confusa prosa de Carreira das Neves. Todas as oportunidades para aprender devem ser aproveitadas, certo?
.