quinta-feira, 3 de junho de 2010

Fui ver “A Sagração da Primavera” (e divago sobre a arte contemporânea)

Antes de opinar sobre o que vi, permitam-me deixar bem claro que me considero, no que toca a música erudita e dança contemporânea, o mais profundo inculto que conheço. Não acredito que conheça alguém com menos sensibilidade para a dança, se bem que cresci (obrigado avô) a ouvir música clássica e por isso aprendi a apreciá-la. Nada se compara, a meu ver, a uma orquestra a tocar uma peça como as que constroem este “Sagração da Primavera”; por isso nem que fosse pela música teria gostado do espectáculo. No entanto, esta versão do famoso bailado foi coreografada por Olga Roriz, uma espécie de Madonna da dança contemporânea. Achei que ia ver a mais topo de gama dança contemporânea, acompanhada pela brilhante música de Stravinsky; e por isso esperava uma coisa realmente espectacular.
O problema, como já disse, é que sou um inculto; e por isso os 33 minutos de dança contemporânea foram alguns dos mais aborrecidos que já experimentei dentro de uma sala de espectáculos. Os dançarinos, ainda que muito bons (assim me foi dito), interpretavam personagens com movimentos que oscilavam entre os de um morto vivo e os de um orangotango com distúrbios neurológicos. Só depois de uma pesquisa na Internet é que descobri que o espectáculo tinha uma história, a qual não percebi na altura e que nunca, nunca poderia inferir da dança que vi.
Para mim, é um fracasso absoluto quando se propõem a contar uma história que o espectador só percebe se ler o programa do espectáculo ou fizer uma pesquisa prévia. Gosto de histórias, pelo que nada me traz mais angústia do que perceber que alguém me está a tentar transmitir uma mensagem sem o conseguir. Do ponto de vista narrativo, ver o espectáculo de Olga Roriz foi como assistir a um monólogo dito por alguém que acabou de ser operado às cordas vocais. Não percebo qual o sentido de carregar uma coreografia com enormes significados escondidos que apenas chegam ao espectador através de um folheto distribuído no início do espectáculo. Para quê contar uma história, então?
E o pior de tudo está na forma como, no fundo, o artista tem sempre razão. Quando alguém cria uma obra que não faz o mínimo sentido, a culta não é da incongruência ou fracasso de quem cria, é da ignorância artística de quem vê a obra. Assim, para o espectador que não percebeu nada (e tenho a certeza que nem o maior especialista poderia alguma vez compreender, só através do espectáculo, toda a história e mensagens escondidas) o que acabou de ver é uma oportunidade de tirar as suas interpretações, e assim criar na sua imaginação uma “Sagração da Primavera” só sua. O espectador sai do espectáculo a sentir-se um intelectual de primeira, e vai para casa com a sensação indistinta de que experienciou algo mágico. Isto funciona em todo o tipo de instalações artísticas, pinturas abstractas ou outras formas de arte. O nome do artista e o que está escrito no folheto é muito mais importante do que o espectáculo em si, e por isso a obra de arte em si torna-se secundária: o espectador sente-se intelectualmente estimulado, acha que as suas interpretações fazem todo o sentido e adormece com um sorriso nos lábios. Deu dinheiro para se poder sentir mais inteligente, e é feliz.
Um exemplo deste tipo de arte contemporânea é a inacreditável Joana Vasconcelos, uma artista portuguesa contemporânea que ganhou fama e respeito internacionais por empilhar objectos do dia-a-dia e por decorar prédios com lombrigas feitas de pano. A população em geral olha para estas obras, esboça um sorriso, diz “que bonito” ou “isto tem piada” e contenta-se em achar que, por trás daquilo, deve haver uma espécie de dimensão intelectual muito superior a eles. Não há. Um sapato feito com tampas de panelas (para usar um exemplo de Joana Vasconcelos) é um sapato feito com tampas de panelas; e qualquer interpretação pessoal pode ser retirada por qualquer pessoa da maneira mais selvagem e descabida, e será com certeza aceite se devidamente fundamentada com palavreado artístico bonito e impressionante.
Prova disso é a forma como, testando os limites da escola que frequento, experimentei fazer dois trabalhos (uma peça em cerâmica e outra em ourivesaria) totalmente de forma aleatória. A peça que fiz para ourivesaria, por exemplo, era a cópia perfeita da forma que um pedaço de papel adquiriu quando o amachuquei aleatoriamente e sem qualquer objectivo. Na apresentação final, inventei uma profunda justificação para aquelas formas e aquelas linhas, e fiz a ponte entre as minhas peças e o objectivo do trabalho da forma mais descabida e intelectual possível. Obtive as duas melhores classificações do meu 10 ano.
Felizmente, não preciso de um curso superior para apreciar uma catedral gótica (apesar de não gostar de arquitectura), a pintura da Capela Sistina (apesar de ser ateu e de não gostar de pintura) ou as brilhantes “poesias” para piano de Chopin (apesar de não gostar de piano); da mesma forma que ninguém precisa de ser um especialista em estudos queirosianos para apreciar “Os Maias” ou estudar literatura inglesa para delirar ao ler Dickens. Eu acredito que as mais belas formas de arte são universais. Ter de tirar um curso superior para poder compreender uma obra parece-me uma ideia grotesca, e não admira que muita gente ainda ache que há “uma arte” intelectual e fora do alcance da população em geral. O problema está na ignorância do povo, claro, mas também na forma como grande parte dos artistas sabe que se toda a gente os compreendesse a sua aura de superioridade artística e intelectual seria evaporada, e toda a gente compreenderia a falta de conteúdo que impera nas suas obras.
( sobre A Sagração da Primavera e respectiva história e significados: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Rite_of_Spring )

4 comentários:

What disse...

duas coisas a apontar:

a característica primária da arte contemporânea é ser autoreferencial. ou seja, perde o referente exterior, como na arte clássica, em que, por exemplo, uma pintura em que aparecia um cão, representava o cão. A arte contemporânea vive mesmo de o único referente que tem ser ela própria. Na entrevista, work in progress, fernando calhau, um pintor contemporâneo portugues, um bom exemplo da arte contemporânea, fala dos seus quadros verdes (procura na net), dizendo que são quadrados e que são verdes, não tendo nenhum significado místico inerente.
em trabalhos mais recentes, como por exemplo, a obra de andreas gursky, que é um fotografo alemão, a preocupação no seu trabalho é fotografar momentos caracteristicos da sociedade actual mas procurar abstractizar a imagem, ou seja, usar, por exemplo, as manchas de multidão para formar manchas compositivas, e nunca representar a multidão.

a segunda coisa é que a joana vasconcelos não pode, sob circunstancia nenhuma ser considerada artista contemporânea por ninguém que saiba o que é a arte contemporanea. até porque em arte, aquilo que ela faz chama-se Kitsch, e é o total oposto do que a arte contemporânea pretende.

Renato Rocha disse...

Então o que estás a dizer é que na arte contemporânea um cão não é um cão, é uma coisa qualquer que o próprio quadro define. Ou seja, é absolutamente inútil no que toca a representar o que quer que seja, e necessitas de conhecer previamente a história por detrás do quadro para perceber o que ele significa. Além disso, já que percebes tanto de arte, permita-me relembrar-te que nem toda a arte clássica ou mais "antiga" funciona dessa forma. Os quadros ( como os que representam santos, por exemplo) necessitam de um conhecimento prévio para serem analisados, porque objectos do dia a dia ou figuras animais tinham significados distintos.

Quanto à Joana Vasconcelos, é irrelevante onde a sua obra se enquadra. A minha opinião mantém-se independentemente do nome que lhe quiseres dar.

What disse...

Não, na arte contemporânea um cão que aparece na fotografia é um cão, mas muito raramente ou nunca a arte contemporânea quer representar o cão, e usa a imagem do cão para propósitos abstractos, como por exemplo, explorar a forma, a cor, a linha que a imagem do cão possa trazer à obra.

E o que eu disse ou queria dizer à pouco é que a arte clássica era figurativa, a imagem do santo era o santo e acabou a historia. Quando o miguel angelo pinta o adão e deus, ele quer mesmo representar o nascimento do adão, e é claro que é preciso perceber do que é que se está ali a tratar.

Na arte contemporânea não tens que perceber o que se está ali a tratar, porque na maioria das vezes não há uma história como a história dos santos em causa. Os quadrados verdes são quadrados verdes porque o fernando calhau achava que o quadrado era uma forma harmónica e equilibrada, e porque gostava de verde. O gursky tirou a fotografia da bolsa de tóquio daquele angulo e naquele momento porque lhe interessou a exploração da prespectiva, das linhas, das manchas de cor, que naquele momento a imagem lhe permitia explorar. Tanto que assim que passou a ser possível, o Gursky começou a tirar partido da manipulação digital das fotografias para conseguir explorar esses pontos mais a fundo.

Quanto à Joana Vasconcelos o que eu queria dizer é que é normal que qualquer pessoa que perceba o que é o que não é arte saiba que aquilo é uma merda. Por isso concordo plenamente cntg nesse aspecto.

Renato Rocha disse...

Ou seja, a arte contemporânea é aquilo que o artista quiser, sem necessariamente ter uma utilidade ou conteúdo?