quarta-feira, 31 de março de 2010

A Conspiração Gay lança mais um ataque violento aos pobres e inocentes padres pedófilos

O Bispo de Beja, um pequeno monstrinho chamado António Dantas, acusou os “lobbies anti-igreja” de serem os responsáveis por uma campanha de descredibilização.
"Sabemos que existem vários lobbies, uns ocultos e outros mais claros, que usam a comunicação social porque querem descredibilizar aqueles que lhes fazem sombra", disse, em declarações à agência Lusa.
O bispo de Beja identificou ainda, como um dos "lobbies de poderes anti-igreja", os homossexuais: "Não é o único, mas o lobbie dos gays, apesar de representar uma minoria, tem muita força e não tenta defender a sua causa, apenas denegrir os outros".
Claro, claro; foi a Conspiraçção Gay que colocou todos os miúdos que foram violados nas últimas décadas nas dioceses dos pobres e inocentes padres, para os seduzir e levar para maus caminhos.
O ódio da igreja pelos homossexuais passou de uma simples aversão injustificada para mania da perseguição. Acusar “os lobbies anti-igreja” (quem serão? António Dantas não o revela) e, em específico, os homossexuais, de denegrir a imagem da igreja é irónico, vindo de um representante de uma organização que, durante a discussão sobre o casamento homossexual, tantas vezes declarou que os homossexuais não eram naturais, e que a sua união não merece o mesmo tratamento que qualquer outro casamento. Quem está a denegrir a imagem de quem? A meu ver, é a Igreja se denegriu a sua própria imagem, ao permitir que todos estes abusos fossem abafados e escondidos durante tanto tempo.
Isto, claro, se considerarmos que “descredibilizar” é acusar a Igreja de irresponsabilidade e crime quando milhares de casos aparecem todos os dias, alguns deles, sabe-se, tendo sido desviados cirurgicamente da atenção do mundo exterior.
Não, Senhor Bispo. Ignorando a homofobia e o ódio gratuito que as suas palavras deixam transparecer, quem quer que sejam os lobbies de que fala estão a fazer o seu trabalho; aliás, o trabalho de qualquer pessoa realmente honesta e preocupada com os outros: denunciar e levar à justiça (nã às vossas “terapias”, ou para outras congregações) os responsáveis por tamanhas atrocidades.
"Por isso os católicos portugueses devem preparar-se para acolher com alegria" a visita do Papa Bento XVI, que se desloca a Portugal entre 11 e 14 de maio, "abafando as vozes discordantes e contestatárias com a oração, o canto e a festa".
Não, Senhor Bispo. Os católicos portugueses deviam era parar para pensar por si próprios. Será realmente moral e aceitável receber com honras e bandeirinhas o representante de uma instituição com os pés tão metidos na poça? Será aceitável receber com tamanha pompa e circunstância um homem que, é sabido, esteve pessoalmente envolvido em ocultar padres pedófilos?
Suponho que abafar as vozes discordantes sem as ouvir ou tentar compreender é a melhor forma que a Igreja encontrou, desde tempos imemoriais, para lidar com as situações mais bicudas. Acontece que o mundo avançou, as fogueiras já não pegam, e as pessoas começam cada vez mais a ouvir quem discorda de vós religiosos e a desenvolver uma estranha e irritante capacidade: pensamento livre, ao perceber que vocês não têm nem o poder com que modestamente se vestem, muito menos razão para dizer tais barbaridades.
Portanto, a todos os católicos portugueses: “Calem-se, tapem os ouvidos quando alguém vos disser mal do Nosso Santo Padre, e ignorem uma coisa chamada realidade”.

(notícia original em: http://www.destak.pt/artigo/58824 )
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Programas da Sic: a tornar o povo mais ignorante desde mil novecentos e noventa e tal

O programa de Fátima Lopes, “Vida Nova”, tem uma convidada que por lá aparece a fazer uam rubrica muito própria. Chama-se Christiane Águas, e é uma senhora redonda responsável por uma série destas ideias New Age que ganham terreno e chupam o dinheiro à malta mais impressionável.
Não tenho nada contra o New Age, uma vez que tudo o que é ignorância alheia inofensiva e divertida faz bem à alma; no entanto, foi com surpresa que liguei hoje a TV e espreitei a rubrica de Christiane Águas.
Entre outras coisas, Christiane Águas estava a defender (ou melhor, afirmar com toda a confiança), que as constipações e ataques de alergias são condições emocionais. Dizia ela que se tratam de sintomas de insegurança.
Isto é simplesmente perigoso. Não é só ignorante, porque dizer que constipações são resultado de instabilidade emocional; é malévolo. Espero, com toda a sinceridade, que alguém morra por causa deste disparate; e que a história atinja os jornais. “Mulher morre de pneumonia sem atendimento médico por achar que estava era triste com a vida”.
Tal aconteceu na América, na altura em que Oprah Winfrey, a mulher mais irresponsável da televisão mundial, transformou o livro “The Secret” num best-seller nacional ao levar a autora e seus amigos “especialistas” ao seu programa. Assim que uma mulher, vítima de um cancro terminal, lhe enviou uma emocionada carta a dizer que trocara os tratamentos médicos pelo “pensamento positivo”, Oprah veio esclarecer que a Lei da Atracção (a ridícula noção de que pensar em algo torna-o real) “não é a solução para tudo”.
Este tipo de irresponsabilidade levado pela Sic às casas dos portugueses é perigoso, e potencialmente letal para alguém que, numa situação de fragilidade física ou emocional, se veja tentado a experimentar tais ideias.
Voltando a Christiane Águas. No seu site é possível ler divertidos PFD’s sobre a “Ordem cronológica do processo de construção da doença”. Ao que parece, a infelicidade leva a stress, que leva a depressão, que leva ao aparecimento dos sintomas da doença. No fantástico novo mundo da New Age, não existem bactérias, vírus ou micróbios. Para quê levar essa coisa da medicina convencional a sério quando uma mulher gorda e a Fátima Lopes me dizem que o meu problema de saúde é emocional?
Christiane Águas tem, no entanto, a consciência da fraude que é. Na sua “ordem cronológica do processo de reconstrução de saúde”, o que virá primeiro? O Pensamento Positivo? A Estabilidade Emotiva?
Nem por isso. Primeiro vem o diagnóstico médico, a medicina convencional as quimioterapias; depois sim é possível a cura, através de meditação, técnicas de relaxamento e reprogramação linguística e celular (que raio?).
Christiane Águas sabe perfeitamente que nenhum pensamento positivo salva alguém de nenhuma constipação, porque as doenças físicas são FÍSICAS. Não é necessária uma causa emotiva para explicar o porquê de uma gripe; no entanto, muita gente vai nesta conversa.
Não estará já na altura de ser criado um organismo governamental que controle estas coisas? Uma vez que a ASAE anda tão preocupada com as colheres de pau e a distância em metros depois da qual se pode fumar fora de um teatro, não seria útil criar um organismo responsável por fiscalizar devidamente estas fraudes? Quando digo estas falo de todos estes gurus do Pensamento Positivo, bem como cartomantes, tarólogos, Professores Karambas, videntes e bruxos.
Mas suponho que não. As pessoas preferem viver na ignorância. Compreender que há coisas fora do seu raio de acção, e perceber que se calhar não há uma cura milagrosa para ultrapassar a vida sem dificuldades ou tristezas, é simplesmente demais para elas. Aceitar que as doenças acontecem não porque devíamos ser mais felizes e interiorizar frases estúpidas sobre pensamento positivo mas porque simplesmente acontecem parecerá cruel? Será assim tão difícil não ter o controlo total sobre as nossas vidas? E não será o preço a pagar por esta ignorância, nomeadamente acreditar e gastar dinheiro em todas estas fantochadas potencialmente perigosas, um preço demasiado alto?
Felizmente nunca precisei de nenhum livro de auto-ajuda nem de nenhum tipo de estimulação espiritual. Assumo responsabilidade pela minha vida, e não coloco a culpa dos meus erros em desastres kármicos, rebelia a um ser superior ou Leis Espirituais; da mesma forma que tomo crédito pelas minhas vitórias, e não agradeço a nenhuma Harmonia Espiritual pelo favor. E, por incrível que possa pareça, consigo encontrar um sentido para a minha vida e ganhar controlo sobre ela sem precisar de ter uma gorda no Vida Nova a dizer-me como o devo fazer.

terça-feira, 30 de março de 2010

Porque é que ontem não escrevi história nenhuma?

Ontem estive demasiado ocupado para escrever. Depois de acordar às tantas, uma vez que estou de férias e isso é uma boa desculpa para ler até tarde e ficar a dormir até à hora do almoço, tive uma série de obrigações para fazer que me impediram terminantemente de escrever qualquer coisa aqui para o blog. Eu sei, eu sei; prometera que nestas férias escreveria uma história por dia, mas ontem simplesmente não consegui. Depois de chegar a casa da dança, extremamente mal disposto e cansado, fui dormir.

Por volta das três da manhã acordei com o som da fechadura a rebentar, e quando me levantei da cama e acendi a luz três homens enormes entraram-me pelo quarto e agarraram em mim.

- Socorro! – gritei, que nem uma menina. Por pouco não cheguei ao telemóvel, para ligar à polícia. Enquanto dois dos homens me sentaram numa cadeira, o terceiro pisava o meu telemóvel com as suas botas número 47.

Atiraram-me contra a cadeira, e um dos homens retirou do bolso interior do casaco um revólver negro e apontou-mo à cabeça.

- Boa noite – disse o dono do revólver. Os outros dois homens reuniram-se à minha volta.

- Boa noite – disse eu, a medo. Tinha de simpatizar com estes dementes se queria sair dali vivo. Olhei bem para eles, procurando alguma característica física que sobressaísse e que me possibilitasse a identificação dos homens mais tarde, quando fosse levado para a esquadra. Todos eles tinham casacos de cabedal pesados. Eram entroncados, de cabeças enormes e ar de italianos. Soube imediatamente que estava a lidar com profissionais.

- Somos profissionais – disse-me um dos homens – Não tentes fazer nenhum disparate senão levas um tiro. Nos cornos.

- Eu não quero levar um tiro – disse eu, choramingando.

- Ninguém quer, habitualmente. Por isso não faças nada estúpido.

- Juro que não me mexo. Levem o que quiserem. Tenho a Playstation 2 na sala e a minha colecção de cartas do Yu-gi-oh naquele armário. Algumas valem dinheiro. Levem tudo.

- Não queremos levar nada – disse o dono do revólver, que parecia ser o líder do grupo – Viemos apenas fazer-te umas perguntinhas. Onde está a história?

- A história?

- Sim. Projecto Xerezade.

- Oh Deus.

- Onde está a história?

- Vão dar-me um tiro por causa de uma história?

- Isto para ti pode ser uma brincadeira, mas para nós não. São negócios, Renato. A história.

- Não escrevi – disse eu. O dono da arma premiu aquela peça na ponta da arma, que os assassinos nos filmes usam sempre para assustar as vítimas. Não me lembro como se chama. Vocês sabem.

Tlic, fez a tal peça cujo nome não me lembro. Por esta altura estava a chorar como uma menina.

- Calma, calma, calma. Eu escrevo-vos a história. EU escrevo.

- Porque não escreveste antes? – perguntou um dos homens.

- Esqueci-me, tive mais que fazer, eu sei lá… Por favor não me dêem um tiro…

- Renato, ouve-me bem. A partir de hoje vais escrever as histórias a horas, todos os dias, senão temos de te vir fazer outra visita.

- Quem vos mandou cá? – perguntei eu.

- Desculpa?

- Porque estão tão interessados na minha história? – perguntei.

- Está calado.

Nesse momento compreendi que quem quer que aqueles homens estivessem a representar, tratava-se de alguém que precisava das minhas histórias. Podiam até estar a lucrar com elas, ou eram apenas grandes fãns que choravam toda a noite por não ter actualizado o blog. Percebi que aquela arma era uma ameaça para me assustar, mas nunca para me tirar a vida.

- Vocês não me vão matar – disse eu com um sorriso trocista.

O tiro foi tremendamente intenso. Comecei a gritar. Tinha visto cenas idênticas nos filmes, mas nunca pensei que um tiro na rótula doesse realmente tanto. O Jack Bauer costumava fazer isto no 24. Comecei a gostar menos do Jack Bauer. A dor era inacreditável, estava a sangrar imenso e mal conseguia abrir os olhos.

- Tu não brincas comigo! – disse-me um dos homens, agarrando-me pelos cabelos e puxando-me a cabeça para trás.

- Traz a tartaruga – disse um dos homens.

Não, pensei eu. Não a minha tartaruga.

Quando abri os olhos o dono da arma estava com a Minhone à frente da arma. A pobre tartaruga, arrancada violentamente do seu aquário, espreguiçava-se e tentava-se soltar, agitando as patas e a cabeça. Recomecei a chorar.

- Não, por favor não. Ouçam-me. Ouçam-me – disse eu por entre a dor – Na terceira gaveta do armário. Ali. Levem tudo o que quiserem.

Um dos homens abriu a gaveta e começou a tirar as folhas de papel que já estavam guardadas. Era toda a minha colecção de contos eróticos secretos protagonizados por Simião, um herói que criara na minha adolescência. Nunca tivera coragem de mostrar aquilo a ninguém, apesar de ter a certeza que eram histórias de qualidade.

- Levem-nas todas – disse eu.

Os três homens largaram-me o cabelo, atiraram a tartaruga para dentro do aquário, que aterrou dentro de água com um chapinhar desesperado e prepararam-se para sair do quarto. Um deles regressou, apontou-me a arma à cabeça.

- Dá-me um autógrafo – disse ele.

- O quê?

- Dá-me uma autógrafo. Eu gosto de ler o teu blog. Dá-me uma autógrafo, porra.

Tentei controlar a dor no joelho. Com certeza não voltaria a andar mais ao pé coxinho apoiado naquela perna.

- Tens papel? – consegui perguntar ao homem, por entre os meus próprios gemidos.

- Não. Espera. Ei! Tens papel? – perguntou o homem a um dos colegas. Um deles tinha.

- E uma caneta? – perguntei.

- E uma caneta? – perguntou o homem. Um dos outros homens tinha uma caneta, sim.

- Escreve aí - ordenou o homem, quase enterrando a arma dentro de um dos meus olhos – “Para o meu fã número um com votos de Boa Páscoa e muitas amêndoas”.

- Ok – disse eu, escrevendo. Sujei o autógrafo com o meu próprio sangue, pedi desculpas e continuei.

- E agora assina – ordenou-me o homem. Eu assinei.

- Obrigado. Continua a escrever, tens jeito – disse-me o homem. Retirou a arma de dentro do meu olho e desapareceu pela porta. Passados alguns segundos regressou, e voltou a apontar a arma à minha cabeça.

- Ah, e a tua próxima história tem de ser sobre nós – disse-me ele – E eu tenho de aparecer. E tens de nos descrever como tipos fortes e assustadores. Ok?

- Ok – prometi. Eles foram-se embora.

O prometido é devido.

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domingo, 28 de março de 2010

Espelho | ohlepsE

Se eu colocar um espelho à frente do outro, o que acontecerá?, perguntava-se Alice enquanto acordava. Talvez fosse por causa do teste de filosofia, para o qual não estudara. Esquecera-se. Perdera-se no seu mundo de fantasia e filosofia muito pessoal, sem o qual Kant e Locke não pareciam ter interesse por si só.

Alice entrou para a casa de banho, levando consigo a roupa que iria vestir nesse dia. Escolhera-a a olho, sem preocupações quanto a equilíbrios cromáticos ou decotes equilibrados. Olhou-se ao espelho. O seu cabelo louro estava caótico. Estava com cara de sono. Não queria ir para a escola, muito menos fazer aquele teste. Não lhe apetecia sair de casa. Abriu a torneira, e em pouco tempo as paredes da casa de banho estavam cobertas por uma fina camada de vapor de água. A água estava quente, e Alice sentiu-se tão bem dentro da banheira que lavou o corpo, o cabelo, e deixou-se ficar mais cinco minutos sem saber bem o que pensar ou dizer, comendo tempo debaixo do chuveiro relaxante.

Saiu da banheira, enrolou-se na toalha de banho e limpou o espelho à espera de ver a sua cara molhada e os seus olhos mais acordados a olhar para ela. Não estava lá.

Alice piscou os olhos. Não andava a dormir assim tão mal; mas o espelho estava vazio. O reflexo mostrava o cortinado da banheira atrás de si, a pingar, e a um canto a prateleira onde guardava o gel de banho e o shampô; mas Alice desaparecera.

O sono trouxe a Alice um pensamento irracional: o espelho estava avariado. Sorriu, mas retomou a cara séria ao ver que a Alice do espelho regressava, completamente vestida, e olhava agora para ela.

- Bom dia – disse a Alice do espelho, ajeitando a camisola.

- Bom dia – respondeu a Alice, a verdadeira.

- Desculpa se te assustei.

- Isto vai tudo contra aquilo que é… normal – disse a Alice verdadeira. A Alice no espelho deu uma gargalhada, igual à gargalhada que a Alice verdadeira dava quando estava divertida.

- Bem, não conheces muito do mundo, pois não?

- Estou a ter uma alucinação – disse a Alice verdadeira.

- O teu creme está a acabar. O hidratante. Toma – disse a Alice no espelho, procurando por entre o pequeno cestinho com cremes do seu lado do espelho, cesto igual ao que a verdadeira Alice tinha na sua verdadeira casa de banho. A Alice do espelho encontrou o creme, e estendeu-o através do espelho. Alice, a verdadeira, aceitou-o. Tinha agora dois cremes, um no cestinho à sua frente, no lavatório, e outro na sua mão.

- Não queres fazer o teste, pois não? – perguntou a Alice do espelho, cruzando os braços.

- Desculpa? – perguntou a Alice verdadeira.

- O teste. O que achas de ser eu a fazê-lo por ti?

- Tu?

- Sim.

- Tu és o meu reflexo.

- Sou.

- Então tu és eu.

- Não lês muita ficção científica, pois não?

- Isto é a coisa mais estranha que me aconteceu…

- Estou a ver que não. Queres vir aqui? – perguntou a Alice do espelho, estendendo-lhe a mão. A Alice verdadeira estendeu a mão, e sentiu-a atravessar o espelho. Meteu o pé em cima do lavatório, içou-se com a ajuda da Alice do espelho, e atravessou-o para o outro lado. A casa de banho do espelho era absolutamente igual à sua, mas o chão não estava frio nem o aquecedor produzia qualquer calor.

- Bem vinda ao reflexo – disse a Alice do reflexo, que agora era apenas uma Alice uma vez que ambas estavam ali, dentro do reflexo.

- Explica-me como chegar à tua escola – pediu a Alice do reflexo, e a Alice verdadeira explicou-lhe brevemente o caminho. A Alice do reflexo empoleirou-se no lavatório e atirou-se para o outro lado. A Alice do reflexo era agora a Alice real, e a Alice que era real estava agora no espelho, dentro do reflexo, ela era reflexo. Confusa, perguntou:

- Espera. Onde estou? Que lugar é este?

- É o reflexo da tua casa de banho. O que achas?

Alice, a que era real e agora era a do espelho, olhou para a porta da casa de banho.

- Posso sair?

- Da casa de banho? Claro, mas por favor não te metas dentro de outro espelho. Se a tua mãe te descobre dentro do espelho enquanto se penteia ainda se assusta.

- A minha mãe não é tua também? – perguntou a Alice real.

A Alice do espelho riu-se.

- Tem um bom dia. Quando chegar aviso-te. Obrigado por esta oportunidade. Sempre tive curiosidade para saber como era viver no mundo do outro lado do espelho!

A Alice real ia perguntar o que significava isso do “outro” lado do espelho, mas a Alice, a que fora reflexo e agora era real, saiu da casa de banho a correr, a caminho da escola.

Alice ficou parada por alguns momentos. A luz da casa de banho fora desligada, e agora a única fonte de luz era a pequena lâmpada do esquentador, cor de laranja, que indicava que estava ligado. Alice prendeu melhor a toalha à volta do corpo e abriu a porta da casa de banho. Saiu.

Uma réplica perfeita do seu hall de entrada, com as diversas portas para os quartos e cozinha, estava à sua frente. Uma mulher, igual à sua mãe, estava à frente do espelho que a sua família tinha ao lado da porta de casa.

- Alice, pelo amor de Deus. Estás atrasada para a escola! – disse a Mãe real, do outro lado do espelho; ou seria do lado de fora?

- Alice, pelo amor de Deus. Estás atrasada para a escola! – disse a Mãe deste lado do espelho, exactemnte ao mesmo tempo.

- Eu sei! – disse uma voz, que Alice reconheceu como a sua. Uma porta abriu-se, e a voz que era a sua voltou a dizer:

- Adeus, mãe!

A porta fechou-se.

- Adeus, filha –disse a Mãe do lado de lá do espelho.

- Adeus, filha – disse a Mãe do lado de cá do espelho, imitando cada movimento calculado da outra Mãe. A Mãe real desapareceu de frente do espelho em direcção à cozinha, e a Mãe deste lado acompanhou-a, saindo de frente do espelho exactamente pelo mesmo lado. Alguns passos depois, descontraiu e sentou-se numa pequena cadeira a um canto do hall de entrada. Abriu uma garrafa de água, bebeu um gole ou dois, e olhou para Alice.

- Então? Tudo bem?

- Vai-se andando – disse Alice.

A Mãe olhou para a garrafa que estava a beber, e voltou a olhar para Alice com os olhos mais abertos.

- Porque estás de toalha? A Alice saiu de casa vestida!

- Eu… - disse Alice, procurando justificar-se.

- Oh, não acredito. Tu não és a Alice.

- Sou sim – disse Alice.

- Não, não és. Ou pelo menos não és a Alice que deverias ser. Trocaste de lugar com a Alice, não foi? Com a outra Alice. A verdadeira.

- Eu sou a verdadeira. A outra Alice é que é o reflexo meu. Do espelho. Sem eu não haveria ela.

- Essa é boa.

- É a verdade.

- Deixaste-a trocar assim de lugares contigo?

- Porquê?

- Não sei, parece-me confuso e despropositado.

- Apenas fiquei curiosa para saber o que aconteceria deste lado.

- Mas se já tens a tua vida do outro lado, para quê vir para este?

- Queria fugir a um teste.

- Ah, bom. Honestidade.

- A outra Alice ofereceu-se.

- Queres dizer a verdadeira Alice?

Alice não sabia. A sua Mãe sorriu.

- Estava-me a meter contigo.

O seu sorriso desapareceu, largou a garrafa de água e correu para a frente do espelho. Assim que se aproximou dele, e de um segundo para o outro, passou a ter vestido um enorme casaco de pele e uma mala empoleirada no ombro. A Mãe do outro lado do espelho estava igualzinha; ou melhor, esta Mãe é que estava igualzinha à outra. A Mãe de cá imitou a Mãe de lá, milimetricamente, até que aquela saiu da frente do espelho. A porta de casa abriu-se e voltou a fechar-se. A Mãe de cá voltou a afastar-se do espelho, e a sentar-se na cadeira.

- Então é esta a vossa vida? – perguntou Alice.

- Mais ou menos. Vamos saltando de cenário. Agora tenho de ir para o carro, por causa do espelho retrovisor.

- Então esta é uma espécie de dimensão à parte? Com todos os outros lados dos espelhos?

A Mãe olhou para ela com cara séria.

- Não. O outro lado do espelho é que é o outro lado. Nós estamos neste lado, não no outro.

- Isso parece-me incrivelmente subjectivo e parcial.

- Pois a mim que me importa? Tenho de ir, vemo-nos mais logo.

A Mãe caminhou até à porta de casa, abriu-a, saiu e fechou a porta atrás de si. Alice conseguiu ver, de relance e do outro lado da porta, o interior do carro da sua Mãe; o que não fazia sentido, porque a sua porta de casa dava para o terceiro andar do seu prédio, não para o carro que estava estacionado a um quarteirão de distância de casa.

Alice sentou-se na cadeira. A casa estava silenciosa. Esperou durante alguns minutos. Não sabia o que fazer. A vida neste lado do espelho parecia aborrecida.

- Hei! – ouviu, uma espécie de voz omnipresente. Era sua, a voz. Estava a chamar-se a si própria.

- Onde raio estás? – perguntou a voz que era a sua.

- Aqui – respondeu Alice, estupidamente; apesar de, depois daquela manhã, já não saber bem o que significava estar “ali”.

- Abre a porta da rua! Rápido! – pediu a voz. Alice levantou-se da cadeira, atravessou o hall da sua casa e abriu a porta. Do outro lado, à sua frente, estava a casa de banho das raparigas da sua escola. Uma parede coberta de espelhos estava à sua esquerda, por cima dos lavatórios. Alice, de camisa e mala a tiracolo, olhava para este lado do espelho, impacientemente. Quando a viu respirou fundo.

- Onde estavas? Anda cá!

Alice entrou pela casa de banho e colocou-se de frente para a outra Alice; a Alice que, supunha agora, era a Alice real.

- Tens de me seguir para onde quer que eu vá e haja espelhos, sua totó. Não podes deixar que seja apanhada sem reflexo!

- Não sabia como funcionava, desculpa.

- Vou para o teste agora. Em que sala é?

- 26.

- Óptimo. Há espelhos nas escadas? Ou na sala?

- Não.

- Muito bem. Fica aqui e espera por mim. Quando regressar tens de me imitar. Todos os movimentos, todas as nuances; isto se estiver mais alguém na casa de banho. Ok?

- Ok – respondeu Alice.

- Até já.

A Alice, a outra que agora era a Alice, saiu da casa de banho. Alice olhou para si própria, e viu-se de camisa, calças de ganga e mala a tiracolo, igualzinha à Alice que ainda há segundos estava a falar consigo. Percebeu que era a forma que esta estranha dimensão tinha de actualizar os dados, e poder apresentar um reflexo actualizado a toda a hora. Não podia deixar de se sentir tonta com tamanha descoberta. Era a coisa mais estranha que vira na sua vida, e com toda a certeza, a partir de agora, a sua vida seria diferente. A sua maneira de encarar o mundo, depois desta experiência, seria muitíssimo diferente. Escondeu-se debaixo dos lavatórios, e esperou que a Alice, a outra Alice, regressasse.

Passada uma hora e meia a campainha tocou, e Alice entrou na casa de banho.

- Alo? – perguntou.

Alice levantou-se de debaixo dos lavatórios e olhou para a outra Alice.

- Como correu?

- Não muito bem. Quem é esse tal de Platão?

- Filósofo grego.

- Ah. Confundi com o outro.

- O outro?

- O planeta. Ouve, preciso de te perguntar uma coisa. Aquele rapaz. Um de cabelos encaracolados. Ele gosta de ti, não gosta?

Alice ganhou alguma cor nas bochechas.

- Sim, penso que sim, mas…

- Óptimo. É que pela forma como ele olhou para mim na sala também achei. Dei-lhe o teu número de telefone. Aliás, o meu.

- Porquê? Não me perguntaste nada, não acho nada boa ideia…

- Oh Alice, por favor. O rapaz é giríssimo e está muito interessado em mim. Aliás, em ti.

- Mesmo assim. Não te dei autorização para fazeres tal coisa e…

A porta da casa de banho abriu-se; a da casa de banho real, e a do lado de cá do espelho. Duas raparigas, colegas de Alice, entraram a conversar; e neste lado do espelho, os seus dois reflexos entraram na casa de banho a conversar também, imitando os seus movimentos na perfeição.

- O teste era impossível, desculpa lá… - dizia uma das amigas, vestida de vermelho.

- O teste era impossível, desculpa lá… - disse a rapariga de vermelho à esquerda de Alice, do lado de cá do espelho.

- Também achei – comentou a rapariga que vinha com ela, de azul.

- Também achei – comentou, no mesmo tom, a rapariga de azul que era o reflexo da rapariga de azul.

A Alice real, do outro lado do espelho, parou de se mexer. A Alice deste lado do espelho parou na mesma posição, rezando para que a outra Alice se mexesse o menos e mais devagar possível.

- Alice, estás bem? – perguntou a rapariga de vermelho.

- Alice, estás bem? – perguntou o reflexo da rapariga de vermelho.

- Estou pois – respondeu Alice, piscando os olhos.

- Estou pois – disse a Alice deste lado do espelho, imitando a outra o mais rápido que pôde.

- Não pareces nada – disse a rapariga de azul.

- Não pareces nada – disse o respectivo reflexo.

- Não, a sério. Obrigada pela atenção.

- Não, a sério. Obrigada pela atenção.

- Lava a cara, pode ser que ajude – sugeriu a rapariga de vermelho e o seu reflexo ao mesmo tempo.

- Oh, claro, sim – disse Alice. Dobrou-se muito devagar sobre o lavatório, abriu a torneira muito devagar, enrolou as mãos numa concha e encheu-a de água. Esta Alice, deste lado do espelho e que para a Alice que agora era a real era o outro lado do espelho, tentou acompanhar-lhe os movimentos. Conseguiu-o com bastante cuidado e atenção até à parte em que a Alice real mergulhou a cara nas mãos molhadas. Alice teve de a imitar, mas sem saber quando podia levantar a cabeça acabou por fazê-lo mais cedo do que era suposto. O reflexo no espelho, portanto, levantou a cabeça mais cedo do que a Alice real. A Alice real levantou finalmente a cabeça, viu que a outra Alice já estava com a cabeça levantada e abriu os olhos preocupadamente.

- Bem, vamos andando – disse a rapariga de vermelho.

- Bem, vamos andando – disse o seu reflexo.

As duas raparigas saíram da casa de banho, assim como os seus reflexos, cada par pela sua porta.

- Oh meu Deus – disse Alice, a real.

- Enganei-me. Desculpa. Será que me viram? – perguntou Alice.

- Acho que não. Espero que não.

A porta da casa de banho deste lado do espelho, ou seja, o reflexo da porta real, abriu-se novamente; mas não a porta real. O reflexo das duas raparigas entraram na casa de banho.

- O que raio se passou aqui? – perguntou o reflexo da rapariga de vermelho.

- Porque te enganaste?

- Calma, ela só começou hoje – disse a Alice real.

- Como assim, hoje? – perguntou o reflexo da rapariga de azul.

- Espera. Vocês trocaram de lugares? – perguntou o reflexo da rapariga vermelha.

- O que é que tem? – perguntou a Alice real.

- Tu és doida. Iam sendo apanhadas!

- Não quero arranjar problemas – disse a Alice deste lado do espelho.

- Não arranjas problemas nenhuns – disse a Alice real. O seu telemóvel tocou, e o telemóvel da Alice deste lado do espelho também. Ambas procuraram o telemóvel e o encontraram ao mesmo tempo, como a imagem espelhada uma da outra.

A mensagem recebida dizia “Encontramo-nos no bar?”. Estava assinada pelo rapaz do cabelo encaracolado.

- Bem… vou andando! – disse a Alice real, sorrindo ligeiramente e apressando-se a sair.

- Hei! – disse a Alice deste lado do espelho, vendo a outra Alice desaparecer pela porta da casa de banho – Volta aqui! Eu não te autorizei a fazeres isso!

- Vocês as duas são loucas – disse o reflexo da rapariga de vermelho, saindo atrás do reflexo da rapariga de azul pelo reflexo da porta da casa de banho. Alice estava agora sozinha. A outra Alice, aliás, ela própria, andava pela escola a arranjar namoros mal fundamentados. Aquilo não podia estar a acontecer. Aquela Alice não era ela. Aliás, até podia ser, mas não era ela. Certo?

Alice tirou o telemóvel da mala e enviou uma mensagem dizendo “Não posso, tenho de ir para casa. Não esperes por mim”. Enviou a mensagem ao rapaz. Esperou, decidindo o que ia fazer. Ficou à escuta; nada. Já tocara, e toda a gente tinha ido para as aulas. Alice trepou pelo lavatório acima, empoleirando-se sobre ele com os pés, e atravessou o espelho para o outro lado. Voltou a descer, desta vez sentando-se no lavatório cujo reflexo a ajudara a subir. Atravessou a casa de banho, enfiou-se num cubículo, esperou. Recebeu uma mensagem, do rapaz, que dizia, “Azar, fica para outro dia”.

Minutos depois a outra Alice entrou pela casa de banho.

- Onde estás? Onde estavas com a cabeça? Ele estava à minha espera!

A Alice olhou para o espelho, mas não viu o seu reflexo.

- Alice? – perguntou Alice. A porta do cubículo atrás de si abriu-se de rompante, e Alice caiu-lhe em cima. Agarrou-a pelos cabelos, e arrastou-a para dentro do cubículo. A outra Alice gritou, e tentou debater-se. Alce puxou-lhe os cabelos, agarrou-lhe os braços de maneira a imobilizá-la, mas não conseguiu. A outra Alice soltou-se, puxou-a contra os lavatórios, empurrou-a contra o espelho e deu-lhe um estalo. Alice desequilibrou-se, escorregou na superfície molhada do lavatório e bateu com a nuca na torneira, perdendo os sentidos.

Quando voltou a si, estava deitada no chão da casa de banho mas não sabia de qual. Supunha que era a casa de banho real, a não ser que a outra Alice tivesse tido força para a içar até à altura do espelhoe a tirado para o outro lado. Levou a mão à cabeça, e sentiu os cabelos despenteados. Sangrara um pouco, e estava tonta. Meteu-se de joelhos no chão da casa de banho, e à medida que retomava os seus sentidos reparou que o chão não estava frio como era costume. Estava do lado de cá do espelho, do lado de dentro. Olhou em volta, procurando o espelho, mas viu que não havia nenhum. A parede onde antes estivera pendurado o espelho estava agora vazia, e apenas um pedaço de espelho partido parecia ter sobrevivido, a um canto, preso por um suporte metálico. Alguém partira o espelho, pensou Alice.

O seu telemóvel apitou. Alice procurou-o, e leu a mensagem recebida. “Ok, então encontramo-nos no café. Até já”. Era o rapaz do cabelo encaracolado encaracolado.

Levantou-se. Não podia regressar de onde viera através do espelho; o resto de espelho que sobrara não era suficiente para conseguir passar. Tinha de arranjar outra solução. Abriu a porta da casa de banho, esperando encontrar o próximo cenário, o que quer que fosse, mas em vez disso um ruído ensurdecedor rodou-a e por momentos deu por si no centro de uma enorme tempestade de neve. Da porta aberta para a frente não estava um cenário, mas sim uma espessa parede de neve cinzenta que esvoaçava a uma velocidade violentíssima. Alice não conseguia ouvir ou ver nada do que se passava dentro da tempestade. Lutando contra o vento forte, fechou a porta atrás de si e deixou-se deslizar para o chão.

Minutos depois, a porta abriu-se e a sua Mãe entrou.

- Hei, andava à tua procura. Onde estiveste?

- Ainda bem que apareceu, Mãe.

- Eu não sou a tua Mãe. Não tecnicamente.

- Seja. Preciso da sua ajuda. A Alice está descontrolada.

- A Alice?

- Sim.

- Ou seja, tu?

- Sim. A outra eu. Preciso de a encontrar. Preciso de regressar à normalidade.

- A última vez que a vi ela estava a entrar em casa com um rapaz. Mas parece-me que estão ocupados.

- Oh Deus. Posso ir até casa?

- Claro, passa, passa – disse-lhe a Mãe, abrindo-lhe a porta.

- Há pouco tentei fazer isso e só me apareceu uma tempestade de neve à frente.

- Oh, é natural – disse-lhe a Mãe – acontece quando a outra pessoa, do outro lado do espelho, não está em nenhum lugar onde possa ser reflectida. Só podes saltar de cenário em cenário em que essa pessoa tenha um espelho à frente. Eu sei, é limitante, mas vais habituar-te.

Do outro lado da abertura estava agora a sua casa de banho; ou melhor, sabia-o Alice, o reflexo da sua casa de banho. Entrou, fechou a porta, empoleirou-se no lavatório, e tentou passar através do espelho. Conseguiu, desceu pelo seu lavatório do outro lado e abriu a porta da casa de banho. À sua frente estava a sua mãe.

- Então, encontraste-a?

- Mãe?

- Já te expliquei que não sou a tua mãe, não tecnicamente.

- Não estou no lado de fora do espelho?

- Não me parece, minha querida. Já experimentaste atravessar o espelho? – perguntou a mãe, apontando para o espelho.

- Acabei de vir de lá – expicou Alice, frustrada.

- Oh, aqui está o problema – disse a Mãe, semicerrando os olhos e apontando para o espelho outra vez. Alice olhou para onde a Mãe apontava. Reparou agora que o reflexo no espelho tinha uma pequena moldura à volta, de madeira.

- Alguém pôs um espelho à frente do outro lado do espelho – explicou a Mãe.

- O quê?

- Foi inteligente, por acaso. Assim o reflexo que vês neste espelho é, na verdade, o reflexo de ti própria. O outro lado do espelho é este lado do espelho.

Alice olhava para o reflexo do espelho, e pode finalmente reconhecer a moldura de madeira como sendo a moldura do espelho que estava no quarto da sua mãe, perto da cama.

- Não sei se percebeste bem, desculpa se não me sei explicar melhor – disse a Mãe – Ups, a tua mãe está a chegar – a Mãe deu meia volta e saiu da casa de banho. Do hall de entrada vinha o som das chaves a abrirem a porta e uma voz a dizer “Alice? Já estás em casa?”

Alice olhou para o reflexo do espelho outra vez, sem querer acreditar.

- Alice? Onde está o espelho do meu quarto? Alice? – perguntava a sua mãe. Alice saiu da casa de banho e entrou no hall de entrada, exactamente na altura em que o reflexo da sua mãe se metia em frente ao espelho, imitando a sua mãe verdadeira a tirar o casaco e a deixar a mala em cima da cómoda.

- Alice, não me ouves? – perguntava a sua mãe, do outro lado do espelho.

- Alice, não me ouves? – perguntava o reflexo da sua mãe, imitando a original.

- Mãe! – chamou Alice, deste lado do espelho, colocando-se à frente do espelho.

- Alice?

- Alice? – repetiu o reflexo da sua mãe.

- Mãe, estou aqui! Dentro do espelho!

O reflexo da sua mãe imitava a mãe original com toda a precisão, enquando a mãe original se aproximava do espelho e semicerrava os olhos, icrédula. Olhou para trás, mas atrás de si não estava ninguém. Voltou a olhar para o espelho.

- Estou dentro do espelho, Mãe! – gritou Alice.

A outra Alice, a Alice real e quem em tempos fora reflexo, apareceu vinda do seu quarto. Vinha enraivecida.

- Alice, não estou a perceber… O que se passa aqui? – perguntou a sua mãe, olhando para dentro do espelho e depois para a Alice real.

- Ela não é a Alice! Eu sou! – gritou Alice. Empurrou o reflexo da sua mãe para o lado, agarrou-se às bordas do espelho e preparava-se para o atravessar quando a outra Alice agarrou num candeeiro que estava em cima de uma cómoda e o atirou contra o espelho. O candeeiro atravessou o hall e foi embater na cabeça da sua mãe, que caiu para frente e bateu com o queijo no espelho. O reflexo da sua mãe fez o mesmo, atirando-se de forma ridícula para frente e batendo com o queijo no lado de cá do espelho. Houve um som assustador, saído do pescoço da mãe, e o espelho partiu-lhe em pedaços que caiam pela parede como gotas de água.

Alice gritou; uma das Alices, pelo menos. A outra Alice, a real, aproximou-se de um dos bocados de espelhos e sorriu para Alice, o seu reflexo. Depois disto, desapareceu. Alice podia ver, através de um pequeno estilhaço, a porta da rua a ser aberta e depois fechada. Levantou-se do chão, correu pelos estilhaços caídos e abriu a porta. A tempestade de neve cuspiu-lhe uma golfada de vento para a cara. Alice chegou a abrir a boca, mas o som da tempestade engoliu-lhe o grito.

Horas depois, Alice estava a chorar, a um canto do hall. Podia ver, através de um pequeno estilhaço que tinha aos seus pés, uma equipa de polícias a tapar o corpo da sua mãe com um plástico branco e um homem vestido com um fato impermeável a tirar fotografias ao candeeiro.

- Já encontraram a filha da vítima? – perguntou um homem de fato, que parecia detective.

- Infelizmente não. Vamos fazer correr a sua fotografia pelas patrulhas, não pode ter ido muito longe.

- E o rapaz?

- Já ligámos para a família, vão reconhecer o corpo mais logo na morgue.

Alice viu através do estilhaço um flash de luz, enquanto o homem de impermeável tirava uma fotografia ao espelho partido. Ao fundo do hall, para lá do reflexo quieto do cadáver da sua mãe, a porta aberta continuava a mostrar uma densa tempestade de neve.

- Não fiques assim – disse o reflexo da sua mãe, deitado numa posição estranha, com o pescoço dobrado a noventa graus. A sua boca estava coberta por pequenos vidros.

- Como posso regressar ao outro lado? – perguntou Alice, por entre os olhos gordos e vermelhos do choro.

- Acho que as possibilidades são bastante diminutas, minha querida. Não quero ser desmancha prazeres, mas a Alice sabe bem o que faz e com certeza nunca mais voltará a entrar numa sala com espelhos. Ela sabe que a queres apanhar. Ou melhor, que tu te queres apanhar a ti própria. Sabes, até tu chegares nunca tinha pensado sobre o paradoxo inerente a toda esta situação – disse o cadáver, de vidros na boca.

Alice continuou a chorar, inconsolável, até adormecer.

Quando acordou, olhou para a porta aberta e reparou que a tempestade desaparecera. Levantou-se de um salto. Através da porta aberta conseguia agora ver uma sala de interrogatórios rectangular e acinzentada. Alice estava sentada a uma mesa, em frente a um espelho. Alice, levantou-se do canto onde estivera a dormir, atravessou o hall pisando os estilhaços de vidro e despediu-se do reflexo da sua mãe.

- Vou ficar por aqui. Duvido que a tua mãe volte a estar de frente a um espelho – comentou o cadáver torto – Mas desejo-te felicidades.

Alice, sem saber bem o que dizer, atravessou a porta aberta e fechou-a atrás de si. Saltou para o outro lado do espelho, indo cair na sala de interrogatórios.

- Foste apanhada – disse ela. A Alice real, ou melhor, uma das Alices reais, pois agora havia duas, olhou para ela impavidamente.

- Tu foste apanhada, por outras palavras.

- Não tinhas o direito de estragar assim a minha vida.

- Eu não estraguei a tua vida, estraguei a minha. Certo? – esta Alice real sorriu sarcasticamente, e com isto deu um salto na cadeira de plástico, atirando-a para o chão. Subiu para a mesa com toda a agilidade e atirou-se para a frente, para a parede da sala coberta por um enorme vidro espelhado. A outra Alice real deu um grito, agarrou na cadeira, arremessou-a, tentando desesperadamente acertar na outra Alice que fugia. A cadeira era estranhamente leve e frágil, mas voou com força suficiente. Assim que a outra Alice atravessou o vidro espelhado e caiu no outro lado, no reflexo da sala dos interrogatórios, a cadeira embateu no vidro e despedaçou-o eficientemente.

Choveram estilhaços. Alice gritou, e dois polícias entraram de rompante pela porta. Um terceiro homem entrou na sala, enquanto os dois polícias tentavam agarrar em Alice, a Alice real, a única Alice na sala. Esta Alice reconheceu o homem; era o detective. Esta Alice procurou os estilhaços do espelho, procurando um reflexo fugaz da sua cara, um reflexo fugaz da outra Alice que agora deixava de ser real, mas não a encontrou. O espelho partido estava espalhado pelo chão e pela superfície da mesa, reflectindo um tecto falso com nódoas de tabaco e os esforços de dois polícias gordos a esbracejar sozinhos desesperadamente, como se tentassem agarrar uma criatura invisível.

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Os argumentos para a existência de Deus

Depois de ver um debate bastante interessante entre quatro cristãos e um ateu, retive um pormenor interessante. Os cristãos falaram de uma enorme quantidade de argumentos para a existência de Deus, que são não só argumentos extremamente atraentes como, à primeira vista, razoavelmente pensados.

O argumento da causa primordial, que defende que deverá haver uma causa primordial para a existência do Universo, e que essa causa será Deus. O argumento do design inteligente, que nos diz que os seres vivos e o Universo são tão complexos e bem organizados que esta organização só pode ser explicada com a existência de um Deus que a tenha supervisionado. O argumento da moralidade, que defende que se há um código moral é por causa da existência de Deus e porque esse Deus nos ensina e transmite esse mesmo código moral, sem o qual é impossível construir sequer a noção de Bom e Mau. O argumento da contingência, segundo o qual se diz que a razão porque existe qualquer coisa ao invés de não existir nada é Deus. O argumento transcendental, que defende que se há absolutos lógicos (regras lógicas que são verdade independentemente do sítio no Universo onde nos encontramos, ex: a lei da identidade, segundo a qual algo é “A” ou “não A”, sendo estas as únicas possibilidades), e se estes absolutos lógicos são conceptuais e verdadeiros em todo o Universo, deve haver uma mente infinita que os tenha definido previamente, e essa mente é Deus.

Este tipo de argumentos, maioritariamente filosóficos, caem em diversas falácias lógicas (por exemplo, se o argumento da causa primordial nos diz que algo teve de criar o Universo porque este não pode existir desde sempre, e que essa primeira causa é Deus, então de onde apareceu Deus?); mas uma das maneiras mais rápidas de perceber a falta de utilidade destes argumentos ao tentar provar que determinado Deus existe é a seguinte. Experimentem reler o parágrafo anterior, substituindo cada referência a “Deus” por “uma equipa de goblins infinitamente poderosos”.

Reparam agora como todos estes argumentos não perdem a sua lógica. Com isto acabei de provar, conclusiva e cientificamente, a existência de uma equipa omnipotente de goblins exteriores ao nosso Universo.

E vós, queridos leitores? Conseguirão provar também, com estes argumentos para a existência de Deus, a vossa criatura mitológica imaginária? Haverá um prémio monetário para aquele que o conseguir fazer com maior criatividade.

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sábado, 27 de março de 2010

Projecto Xerezade

Uma vez que estou de férias e pouco tenho para fazer, mais vale desafiar-me a mim próprio. Começa hoje o



(tan tan tan tan taaan)



Projecto Xerezade!



Em que consiste o Projecto Xerezade?
Consiste na escrita de uma história por dia, a ser publicada neste blog, todos os dias até ao fim das férias da Páscoa.

Até quando durará este Projecto Xerezade?
Acabei de responder a isso no item anterior. Até ao fim das Férias da Páscoa.

O que posso esperar, como leitor deste blog, do Projecto Xerezade?
Poderá esperar uma história completamente nova e escrita no momento, sem paragens, e totalmente inventada no próprio dia.

O que significa Xerezade?
Vai à Wikipédia.

Qual o objectivo deste Projecto Xerezade?
Manter-me activo e não entrar no sedentarismo criativo típico das férias.

O que acontece se o autor deste blog falhar a publicação de uma história em determinado dia?
O autor será espancado à porta de casa, e terá de publicar DUAS histórias no dia seguinte.

Então e se fizer batotice e publicar histórias que já tinha escritas há mais tempo, ou escrever logo umas vinte histórias no mesmo dia para depois não ter mais trabalho durante o resto das férias?
Bem, suponho que para vocês não há meio de saber, pois não?

Praia ou montanha?
Montanha.

Qual o livro que está a ler neste momento?
"The Escape", de Carolyn Jessop.

Um momento especial?
Ler à beira mar.

Uma recordação?
Os Verões da minha infância.

Muito obrigado pela atenção.
De nada, eu é que agradeço. Quando é que isto vai para o ar?

Não é para a televisão, isto. É para o seu blog.
Ah, bom.

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O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar

O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar foi um dia normalíssimo. Cosmos começou por desligar o despertador e seguir com as rotinas habituais. Constatou mais uma vez que estar mais cinco minutos na cama, apesar do sono, não lhe resolveria o problema do cansaço. Constatou ainda que se lavava sempre na mesma ordem, de baixo para cima, talvez porque inconscientemente fazia sentido começar nos pés e terminar na cabeça, dando prioridade ao mecanismo de locomoção humano e terminando com alguns momentos dedicados à cabeça capaz de pensar. Cosmos constatou também que não tinha cortado as unhas dos pés; isto logo no início do banho, está claro. Reflectiu sobre se seria uma boa ideia perder alguns minutos a cortá-las, e decidiu que não. Usava sapatos no emprego, que lhe escondiam as unhas por cortar e a ocasional meia rota junto do dedão.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar o céu parecia pesado e cinzento, como se os testículos gigantes de um enorme elefante pairassem sobre a cidade de Lisboa. Cosmos gostava destas comparações, pois eram uma boa forma de começar o dia. Cosmos tinha pouco dinheiro, porque a sua carreira estava a começar. Esperava, portanto, pelo autocarro na esquina da sua rua, empoleirado nos seus sapatos engraxados e escondendo o seu escanzelado corpo atrás de uma camisa às riscas verticais e uma gravata pálida e sem personalidade. Cosmos penteara o cabelo para o lado, como era costume, porque em pequeno era o que a mãe lhe fazia e sempre achou que parecia elegante penteado daquela forma. Ninguém concordaria, mas ninguém o diria à frente de Cosmos, pelo que cá está ele mais um dia penteado da mesma forma.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar o autocarro atrasou-se uns minutos, e vinha cheio. Cosmos empoleirou-se entre uma senhora de idade, cuja dentadura parecia perigosamente solta e prestes a saltar dos seus alicerces escorregadios, e um jovem alto e com cara de cavalo, com o cabelo lambido ao lado, as calças pelos joelhos e os boxers à vista desarmada. Cosmos aproveitou aquela visão para repensar o seu aspecto geral, e puxou a camisa para dentro das calças com todo o rigor e meticulosidade.
O dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar decorreu normalmente. Cosmos chegou ao emprego, subiu o elevador até ao 21º andar, atravessou o corredor branco, ladeado por pequenos cubículos brancos e coberto por um teto falso branco, e foi sentar-se no seu cubículo, minúsculo, ao lado da casa de banho das senhoras e demasiado longe da máquina do café para tornar uma viagem até lá minimamente prática. Cosmos sentou-se e rapidamente começou a trabalhar, segurando as folhas com densas colunas de números e ligando a sua calculadora. Começou por somar cada número com o seu colega respectivo, na coluna oposta, e por aí adiante, registando os resultados numa terceira coluna que ia sendo preenchida soma a soma.
Às treze hora do dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Cosmos já terminara as suas somas e completara 23 colunas de números, pelo que estava satisfeito. Sorrindo, encostou-se na sua cadeira e retirou o tupperware com bacalhau com natas que trazia na sua mala. O tupperware tinha uma tampa rectangular e cor de rosa, e fazia parte de um conjunto de tupperwares a condizer entre si que a sua mãe lhe tinha dado no último Natal. Cosmos retirou o pequeno saquinho de plástico onde trazia os talheres e o guardanapo, e alinhou-os paralelamente uns aos outros em cima da secretária. Quando se ia levantar, viu o garfo e a faca começarem a tremer a um ritmo definido e constante. Toda a sua mesa tremia, em pequenos solavancos. A parede à sua direita tremia, empurrando a cada solavanco a mesa e o que nela se apoiava. Cosmos sabia do que se tratava, pelo que esperou apenas que passasse. Ao seu lado, na casa de banho das senhoras, decorria um encontro fugaz entre a rapariga bonita da contabilidade, a única que não ria do penteado de Cosmos nas suas costas e sem ele saber, e um enorme homem que as mulheres consideravam atraente e que conduzia um carro desportivo. O encontro costumava ser discreto, pelo que apenas Cosmos, com a sua secretária a tremer, sabia da sua existência. A mesa parou de tremer, e segundos depois a porta da casa de banho abriu-se e de lá saiu o homem e, cinco minutos depois, a mulher, alisando o cabelo.
Às catorze horas do dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Cosmos prosseguia com a suas somas quando o homem enorme voltou a entrar na casa de banho das senhoras, seguido por uma mulher loura de pernas compridíssimas, que com certeza mal cabiam dentro da cama sem arrancar os lençóis de debaixo do colchão; isto foi o que Cosmos pensou ao vê-la. Segundos depois, a secretária de Cosmos começou a tremer, desta vez com mais violência do que há pouco. Cosmos estava surpreendido. Minutos depois o tremer acabara, e Cosmos pôde retomar os seus cálculos.
Às quinze horas do dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, a rapariga bonita da contabilidade veio ao cubículo de Cosmos pedir-lhe as somas que fizera até à hora do almoço, como era hábito. Cosmos deu-lhe os resultados das somas, enquanto suava ligeiramente por nunca se sentir à vontade com uma mulher bonita ao pé e por não ter bem a certeza se a sua calculadora ia ter pilhas suficientes para o resto da tarde. A rapariga bonita sorriu-lhe, amavelmente, e Cosmos esteve quase para lhe dizer que sabia do seu caso com o homem porque de cada vez que se encontravam o seu cubículo era abanado como que por um tremor de terra; mas procurou ser educado e não disse nada.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, a rapariga bonita ia sair do cubículo mas voltou para trás, perguntando:
- Eu chamo-me Azália, e tu?
Cosmos não sabia bem o que responder, porque nunca ninguém falava com ele, muito menos lhe perguntava o nome, e porque a última vez que tivera que assinar o seu nome tinha sido na segurança social, há mais de dois anos e meio.
- Cosmos – disse ele.
- Cosmos? É um nome bonito – disse Azália, sorrindo mais uma vez – Cosmos – repetiu ela.
- Azália é um nome bonito, também – disse Cosmos, recomeçando a suar.
- Não, não é. É horrível. Foi uma tia minha que o escolheu, e a minha mãe viu-se obrigada a chamar-me assim porque era essa tia que lhe pagava os anti-depressivos. É um nome terrível – disse Azália.
- Sim, é realmente medonho – disse Cosmos.
- Porque te chamas Cosmos?
- A minha mãe achava que eu ia ser uma menina, e queria chamar-me Cosmopolitan.
- Como a revista?
- Sim. Tenho uma irmã chamada Super Interessante.
Azália começou a rir-se, um sorriso belo e que a Cosmos pareceu dar-lhe arrepios.
- Ei, és engraçado, Cosmos – disse ela; Cosmos não percebeu. Tinha mesmo uma irmã chamada Super Interessante.
- Cosmos, gostarias de ir ali comigo a um sítio?
Cosmos não tinha bem a certeza; uma rapariga a convidá-lo para ir a um sítio parecia-lhe uma ideia demasiado radical para ser verdade. Cosmos olhou para a sua calculadora e começou a fazer movimentos circulares sobre o eixo da cadeira.
- Tenho algumas somas para fazer até ao fim da tarde, não sei se me dá muito jeito.
- Vá lá, são só cinco minutos – disse Azélia, sorrindo-lhe da forma mais simpática de sempre.
- Tem pilhas para calculadoras? – perguntou Cosmos. Já que uma rapariga lhe estava a dar conversa mais valia aproveitar a situação da melhor forma.
Azélia pareceu subitamente desinteressada.
- De quais?
- Daquelas cilíndricas, só que as mais fininhas – disse Cosmos.
- Acho que sim, na minha gaveta.
- Óptimo – disse Cosmos, e depois não acrescentou mais nada. Era terrível com raparigas, e já que a conversa estava a correr tão bem não queria acrescentar algum pormenor que o ridicularizasse.
- Ouve, queres ir comigo ou não? – perguntou Azélia, e Cosmos disse que sim, depois de ter a garantia que Azélia tinha mesmo pilhas para a calculadora.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Azélia arrastou Cosmos para dentro da casa de banho dos homens e enfiou-os num cubículo pequeno, junto aos urinóis. Cosmos estava confuso, uma vez que Azélia era uma mulher. O seu lugar não era ali, na casa de banho dos homens.
- Esta é a casa de banho dos homens – disse Cosmos, e com razão.
Azélia começou a remexer na blusa, e olhou para Cosmos com atenção.
- Tu não tens muito jeito para mulheres, pois não?
Cosmos não percebeu o porquê daquele comentário.
- Porque estás a tirar a blusa?
- Adivinha lá – disse Azélia, agora empoleirando-se no autoclismo, de soutien à mostra, e levantando a saia. Encostou-se contra a parede e olhou para Cosmos com uma cara desafiante.
- Anda – disse ela.
Cosmos percebeu do que se tratava aquilo. Não estava à espera que a sua primeira vez fosse na casa de banho dos homens no seu local de trabalho; a ideia parecia-lhe perigosa e eticamente repreensível. Por outro lado, sempre ouvira falar que estar com uma mulher era uma experiência agradável.
- Tem contracepção disponível? – perguntou Cosmos, lembrando-se de um anúncio que vira na televisão.
Azélia pareceu frustrada.
- Estás a brincar? Importas-te de saltar para cima de mim tipo agora?
Cosmos começou a trabalhar no seu cinto, retirando-o com cuidado. Dobrou-o num pequeno rolinho e colocou-o em cima do papel higiénico ao seu lado.
- É preciso tirar os sapatos? – perguntou. Não queria, uma vez que estava com as unhas dos pés por cortar. Azélia começou a agitar-se em cima do autoclismo, batendo com força com as palmas das mãos na parede da casa de banho. Cosmos podia imaginar como aquele homem enorme, o do carro desportivo, que tinha o escritório mesmo ali ao lado, estaria a ouvir tudo o que ali se estava a passar.
- Anda lá – disse Azélia em voz baixa, puxando-o para si. Começou a gemer em voz alta, e a forçar o autoclismo com o rabo de maneira a produzir um barulho ensurdecedor. Cosmos não sabia muito bem o que fazer, porque não conseguia desapertar o botão das calças mas não queria estragar o momento de Azélia. Deixou-se ficar encostado a ela, mantendo uma distância cuidada entre as suas calças e a borda da sanita que costumava estar toda pingada. Não queria sujar as calças.
No dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, o homem enorme entrou na casa de banho dos homens vermelho de raiva, abriu a porta do cubículo, puxou Cosmos pelo colarinho e encheu-o de pancada. Azélia pareceu satisfeita.
- Como foste capaz de fazer isto com este lingrinhas? – perguntou o homem enorme, enquanto amassava com eficiência a polpa vermelha em que se transformara a bochecha esquerda de Cosmos.
- Quem te mandou vir para aqui com a loura dos Recursos Humanos? Hum? – perguntou Azélia, fingindo-se estafada depois de toda a actividade. Cosmos, na sua condição de esmurrado, permaneceu quieto no chão sem se mexer. Vira um interessante documentário sobre um certo animal que se fingia morto quando um predador passava, de maneira a desviar a atenção do mesmo. Não se conseguia lembrar que animal era esse, mas decidiu imitá-lo.
- E quem é este, afinal? – perguntou enraivecido o homem enorme, segurando Cosmos pela gravata.
- É o Cosmos, que é um homem trabalhador e muitíssimo bem equipado. Ele sabe como satisfazer uma mulher. Ele é um homem com O grande, Bruce.
Cosmos estava surpreendido. Satisfazer uma mulher parecia, no fundo, mais fácil do que todos aqueles filmes vulgares que via aos Sábados à tarde deixavam transparecer. A sua prestação, apesar de nem ter conseguido desapertar o botão e tirado as calças, parecia ter sido fantástica. O homem enorme, que pelos vistos se chamava Bruce, esmurrou Cosmos mais umas vezes, deixando-o sem grande energia para se levantar e com uma vontade preocupante em adormecer. Depois, largou-o no chão da casa de banho e saiu a correr.
No dia seguinte ao dia em que o peixe espada foi apanhado a chorar, Cosmos regressou do hospital para o emprego, um pouco atrasado por causa de todas as radiografias. Tinha que adiantar as somas que deixara por fazer no dia anterior, depois de ter sido levado pela ambulância. Surpreendeu-se ao chegar à sua secretária e encontrar um par de pilhas cilíndricas e finas, as pilhas certas para a sua calculadora. Sorriu, apesar do maxilar deslocado. Agora sim sabia o que era o amor de uma mulher.
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quinta-feira, 25 de março de 2010

O respeito pelo Papa

Ups! Depois de vários meses de escândalo atrás de escândalo, Bento XVI vê-se agora pessoalmente envolvido na confusão.

Entretanto, em Inglaterra, uma petição online defende (ou defendia, porque já está fechada, tendo optido 25 mil assinaturas em três semanas) que o dinheiro público não deveria ser utilizado para pagar a visita oficial do Papa àquele país, argumentando que o Papa e a Igreja são responsáveis por desagradáveis momentos de mentira e maldade como as declarações sobre o uso do preservativo, o apoio sistemático à desigualdade dos homossexuais, e os actuais escândalos de pedofilia que se parecem multiplicar.

Isto no resto do planeta, onde as pessoas ainda usam o cérebro. Falemos de Portugal.

País maioritariamente católico, e responsável pela organização daquele Rock in Rio religioso que é a Peregrinação a Fátima, Portugal tem uma opinião muito própria em relação ao Papa e ao catolicismo. É para nós um assunto de severa importância, e a visita do Papa chega a ser motivo de honra, não se tratasse do líder da Igreja católica.

Eu tenho um problema com isto, que é o seguinte: há muito a tradição de confundir a liberdade religiosa com a religião em si. Muitas pessoas relembram o facto de Portugal ser um país de tradição cristã para justificar tanto alarido à volta da vinda do Papa. No entanto, vivemos num estado laico, que deve manter-se separado das questões religiosas que, por definição, dividem o país. Há uma razão pela qual o estado não deve beneficiar uma religião em particular, principalmente com dinheiro público: isso tende a deixar os fiéis de outras religiões, bem como quem não tem religião de qualquer espécie, um pouco incomodados. O Estado serve para servir e aplicar medidas que benificiem ou sejam aplicáveis a toda a gente, de forma a semear a igualdade e não a preferência por determinada crença; mesmo que essa crença seja a da maioria da população.

Por outro lado, este respeito automático que se cria à volta da religião é contraproducente e perigoso. Tornou-se hábito respeitar automaticamente a religião e crença de cada um. Ser do PSD, do Benfica ou gostar mais da Júlia Pinheiro do que da Catarina Furtado são tudo domínios em que toda a gente se sente à vontade para brincar ou criticar, mas quando falamos na colecção de mitos aceites por determinada pessoa toda a gente perde a vontade de rir e torna-se até mal educado criticar essas crenças.

Está na hora de olharmos para a religião de forma objectiva e de tratarmos figuras como o Papa com o respeito que merecem; que, no caso do Papa, é nenhum. Não dou ao Papa uma consideração automática só por ser o Papa, como se o lugar lhe desse qualquer tipo de estatuto acima do comum dos mortais. Como para mim a crença de que este homem é realmente o representante de Jesus na Terra e faz rir, atribuir-lhe um respeito especial só por ser a figura central de uma religião está fora de questão.

Fora do domínio religioso, resta-nos tudo aquilo que o Papa representa: nada. A sua utilidade prática é inexistente, servindo apenas para representar a sua religião e viajar pelo globo, distribuindo discursos semelhantes ao de uma concorrente a Miss Universo sobre a importância da paz e do amor entre os Homens, e largando ocasionalmente pequenas bombas de irresponsabilidade (como as suas declarações sobre o perigo de utilizar o preservativo em pleno continente Africano).

Que tipo de respeito posso ter por tal personagem? Como querem que respeite seriamente um homem que, eleito por outros homens, se acha representante de Deus na Terra e que usa esse poder para praticar todo o tipo de maldades em nome da religião que representa? Como querem que coloque numa balança de um lado toda a sua hipocrisia e maldade, e do outro as suas palavras repetitivas e totalmente desprovidas de carácter divino sobre Paz e Amor? Como querem que leve a sério esta pequena fraude?

No entanto, somos quase que obrigados a fazê-lo. Duvido que os ânimos não ficassem perigosamente agitados se lesse este texto junto de meia dúzia de cristãos, que conseguem compartimentar o que vêem na TV e criar à volta do Papa uma aura de Santo na Terra. Muitos deles seriam capazes de lhe apontar todos os seus defeitos, caso se tratasse do líder de outra religião qualquer; mas vindo o Papa a Portugal, felicitam-se com a sua presença e dizem tratar-se de um acontecimento único e importante; pelo qual, note-se, muitos de nós iremos pagar.

Onde está a revolta? Onde estão as pessoas que não concordam com o carácter quase divino (que palavra apropriada!) desta visita? Onde estão aqueles que vêem nos altares e despesas para as autarquias um desperdício de dinheiro só para que os fiéis católicos possam rezar em frente ao Papa, numa sessão de masturbação espiritual colectiva?

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segunda-feira, 22 de março de 2010

A Cebola

Ouve-me. Sabes que estou aqui. Ouve-me. A minha voz. Estás a ver? Sentes a minha mão? Não precisas de ficar assim, seca essas lágrimas. Ouve-me. Sou eu, estou aqui e não vou sair de ao pé de ti. Desculpa se te fiz sofrer. Desculpa se de alguma maneira te deixei sozinha no mundo, sem saber que portas abrir. Eu devia ter-te dado a chave, aquela chave, a única chave para abrir a única porta que mais desejavas, e ficar contigo para sempre até ao fim dos tempos. Consegues ouvir-me? Consegues ouvir a minha voz? Decora-lhe o timbre, porque ela vai ser agora uma constante na tua vida. Não te quero deixar, muito menos assim, sozinha, sem ninguém para te amparar. Estou aqui.

***

"Pelo amor de Deus" pensou Carl, fechando o livro. Não queria acreditar que tinha gasto dinheiro de uma forma tão tremendamente despropositada. Cinco parágrafos inteiros com aquele tipo de monólogo lamechas e filosófico. "A única chave para abrir a única porta"? Mas que raio? Atirou o livro para cima do sofá, e ficou parado a olhar para a sua sala vazia. E agora, ia ler o quê? Repensou as suas prioridades, e levantou-se para ir à cozinha. Acendeu a luz, e gritou.

- Boa noite - disse-lhe o espírito. Carl empalideceu. Podia jurar que à sua frente estava o seu pai; mas isso não fazia sentido. O seu pai morrera há vinte anos atrás, ainda Carl era uma criança.

- Não me vens dar um abraço? - perguntou o seu pai. Estava vestido com uns calções de praia e uma camisa com grandes flores desenhadas.

- Pai...?

- Dá-me a mão - disse o seu pai. Carl pensou em chorar, se não tivesse a certeza que estava a enlouquecer.

- Regressei do mundo dos mortos por ti, meu filho. Dá-me a mão. Anda ter comigo.

***

Sara parou de mexer os dedos, e descansou-os sobre o teclado. Era demasiado mau para ser verdade. Clicou na pequena cruzinha no canto superior do ecrã e encostou-se na cadeira. Estava a dar à história um clima demasiado espiritual e filosófico. Como podia explorar a história de um pai e de um filho daquela maneira? Porque não manter a simplicidade, dedicar-se a escrever o seu livro sobre um pai e um filho e não sobre um espírito com calções de banho? Calções de banho!

Olhou para a sua parede. Metidos em molduras douradas estavam uma série de artigos de jornais, diplomas, menções honrosas. Um dos jornais dizia A RAINHA DA FANTASIA TEM 17 ANOS; outro, SARA GOMES VENDE MAIS QUE SARAMAGO, DIZ ESTUDO DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE EDITORES E LIVREIROS; um terceiro anunciava a festa de lançamento do último livro da triologia As Fadas do Meu Quintal, a tresloucada história de espíritos e fadas passada no Ribatejo. Ao centro da parede um desenho de criança, assinado pelo pequeno Luís, que entretanto morrera de leucemia mas enviara a Sara uma carta desesperada avisando que por não ter muito tempo de vida gostava de saber o que aconteceria à Fada Sofia antes de morrer. Sara atirou a cara para cima das mãos, e começou a chorar.

Abriu outro documento ainda a limpar as lágrimas, e escreveu O LUÍS MORREU COM SEIS ANOS; e escrever aquilo foi para ela uma experiência quase visceral. Não sabia o que era saber que ia morrer, e ainda por cima ter como último desejo ler um estúpido e idiota livro sobre fadas ribatejanas. Não conseguia compreender, mas sentia que agora tinha uma responsabilidade maior. Havia um após inteiro de ressaca emocional depois do emotivo final da sua triologia, em que a Fada Sofia não conseguira salvar o seu amor a tempo da enraivecida investida dos caçadores ribatejanos. Agora era tempo de mudar, era tempo de escrever algo maior.

- Agora está na altura de esquecer o Luís e a sua leucemia. Está na altura de escrever para MIM, e não para eles. Está na altura de ser eu própria.

Tocou um telemóvel.

***

- Pelo amor de Deus, mas que é esta merda?! - perguntou o assistente de realização, enraivecido. O telemóvel parou de tocar, e houve um burburinho no estúdio enquanto toda a gente se revirava nos seus lugares para descobrir o culpado. O estagiário do departamento de iluminação tinha a cara vermelha como um tomate, enquanto arrancava a bateria ao telemóvel calando-lhe o som.

- Tirem esse idiota do estúdio, por favor! - gritou o realizador.

- Vamos ter de repetir? - perguntou a actriz, secando as lágrimas, levantando-se da cadeira em frente à parede cheia de recortes.

- Só a última parte. Precisamos da maquilhagem, por favor! - gritava o assistente de realização, correndo freneticamente. A senhora da maquilhagem correu a retocar o rímel da actriz, que respirou fundo. O director de fotografia dava uma descompostura no estagiário, que começava a chorar e era corrido do estúdio. O realizador bebia café. O operador de câmara trocava de objectivas, e cinco pessoas passeavam pelo cenário fazendo ajustes e procurando retomar a cena o mais cedo possível. O estagiário desapareceu por uma porta, e o director de fotografia veio pedir desculpa ao realizador. Ele aceitou.

- Quanto tempo? - perguntou ele.

- Cinco minutos, a maquilhagem ainda não está pronta - disse o assistente de realização.

Passaram-se cinco minutos. "Acção!". A gravação seguiu.

***

O cinema estava practicamente vazio, apesar dos convites. Sal estava na primeira fila, preparando-se para apresentar o seu filme às quatro pessoas que apareceram para ver a estreia. Não sabia bem o que dizer, nem como o dizer. "Senhoras e Senhores, bem vindos. Este é o meu filme. Ninguém o quer ver, e lá terão as suas razões. Se quiserem podem sair agora, enquanto é tempo. Tem três horas e meia, é comprido. São proibidas pipocas".

Sim, era isso que queria dizer; mas não o fez. Levantou-se e olhou de frente para toda aquela multidão.

- Boa noite - disse. Não era bem isto que imaginava. Onde estava a sua esposa, ao seu lado, na primeira fila? Onde estavam os críticos? Os seus admiradores? Os estudantes de cinema, ávidos de novas experiências? Limpou a garganta com um grunhido - Bem vindos à apresentação oficial do filme "Sara, pétala caída" - fez uma pausa. Alguém na sala bocejou, mas por causa da luz não conseguiu ver quem. Começou a suar.

- O que vão ver é o resultado de um longo processo de dezassete anos, ao tentar desenvolver uma personagem que sempre viveu comigo. O fantasma de uma mulher, de uma mulher ideal e idílica, que procura escrever sobre a beleza e a honestidade sem se vender ao capitalismo artístico que a rodeia. É sobre sermos honestos com a nossa essência interior, e integrá-la em tudo o que fazemos. Sem pressões, sem medos. Sem represálias. Sem reservas.

Podia sentir outro bocejo a acontecer. Simples e conciso, vá.

- Sem mais demoras, vamos projectar o filme. Er - suava imenso, faltava-lhe o ar. O que dizer, o que não dizer? - Talvez fosse interessante, antes de... Talvez... - bufou. Desapertou a gravata. A luz era forte para caraças. Não conseguia ver as faces que bocejavam. Onde estava a sua mulher, os críticos, os aplausos?

- Sara - disse ele, antes de cair. O público caiu sobre ele, tentando acordá-lo, e ao lado uma figura feminina olha-o com carinho e tranquilidade. Virá ela do mundo dos mortos? Traz consigo uma chave, com a qual abre uma porta que está à sua frente. Os espectadores afastam-se apavorados do realizador caído, procurando ajuda. Sara abriu a porta, passa por ela, aproxima-se dele e beija-o na testa. Ele abre os olhos.

- Bem vindo - diz ela, carinhosamente. Ele sorri, porque Sara voltou.

***

Os aplausos fazem tremer a sala. Há assobios. Os actores aproximam-se da berma do palco, sorrindo. A actriz que faz de Sara está sorridente, aceitando as flores que vão sendo atiradas. O actor de faz de realizador sorri também por entre o bigode suado. As luzes abrem-se, a sala está iluminada, o público vibra. Grita-se "Bravo!". A actriz que faz de Sara aceita mais flores, agarra a mão do outro actor, dobram-se numa vénia rendida ao público. O teatro está quente, e Boris sua abundantemente. Aplaude também, do meio da multidão extasiada. Não percebeu. Não percebeu o porquê da porta, o porquê da chave, o porquê do espírito retornado de Sara, muito menos que pessoa é aquela que vem do Além buscar o tipo de bigode.

Boris procura por entre as cabeças, e vê a actriz mais uma vez. Não foi para perceber a história que ali veio.

Espera por ela frente à porta dos artistas, porque o enorme segurança não o deixa entrar. Está um frio de rachar. Treme. Esfrega as mãos nas calças, agarra-se ao cigarro e fuma-o incessantemente. Pensa na peça. Pensa no que lhe vai dizer. "Estavas muito bonita". "Não percebi". "Não te meteu nojo beijares o tipo dos bigodes?". "Não beijo melhor do que ele?". "Eu sei que as coisas correram mal, mas porra. Vim ver a tua peça. Já te disse que estás muito bonita?".

Boris apaga o terceiro cigarro, acende outro. A porta abre-se, Boris caminha curvado na direcção da pessoa que sai. É ela.

- Sam - diz ele, e ela assusta-se. Já não tem a maquilhagem para lhe dar aquele ar pálido de morta, mas àquela luz e com aquela expressão assustada parece uma escultura de mármore branco. Boris sente uma dor no peito, apertadíssima.

A ela passa-lhe o susto, e a sua expressão ganha a textura de uma pedra.

- Vai-te embora, Boris.

- Sam, por favor.

Sam caminha rua abaixo, e o enorme segurança segura Boris.

- Larga-me - diz Boris, tentando soltar-se - Larga-me, porra!

O cigarro cai no chão enquanto Sam entra no carro fazendo todo o esforço para não olhar para trás. O carro arranca, Sam vai-se.

Boris é solto pelo segurança, mostra-lhe um dedo e ofende-o de todas as formas possíveis. O carro dela desapareceu por uma esquina. Boris desce a rua, entra num bar, vai beber. Mete conversa com uma mulher, entorna uma bebida, sai do bar ao pontapé. Senta-se numa escada, olhando a rua quieta à sua volta à espera de ser assaltado ou espancado. Acende o último cigarro, olha para as poças da chuva. Finalmente retira o telemóvel e marca o número que sempre soube de cor.

- Sam - diz ele, com uma voz apagada e pouco audível por entre o bafo de bebida - Ouve-me. Sabes que estou aqui. Ouve-me. A minha voz. Estás a ver? Sentes a minha mão? - diz ele, e a seguir pensa "estás bêbado" - Não precisas de ficar assim, seca essas lágrimas. Ouve-me. Sou eu, estou aqui e não vou sair de ao pé de ti. Desculpa se te fiz sofrer. Desculpa se de alguma maneira te deixei sozinha no mundo, sem saber que portas abrir. - lembrou-se da peça, de Sara que na verdade é Sam abrindo uma porta com uma chave, uma chave que agora compreende para que serve - Eu devia ter-te dado a chave, aquela chave, a única chave para abrir a única porta que mais desejavas, e ficar contigo para sempre até ao fim dos tempos. Consegues ouvir-me? Consegues ouvir a minha voz? Decora-lhe o timbre, porque ela vai ser agora uma constante na tua vida. Não te quero deixar, muito menos assim, sozinha, sem ninguém para te amparar. Estou aqui.

Boris desliga o telemóvel e vai para casa.

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sábado, 20 de março de 2010

Reportagem sobre a IURD

Excelente a reportagem do "Perdidos e Achados" sobre a IURD (incluirei o link quando o encontrar), resumindo a sua história conturbada no nosso país e incluindo todos os pormenores sobre como a Igreja exige dinheiro aos fiéis, constrói catedrais de milhões e, por alguma razão, não paga impostos nem revela quando lucra. Chamo a atenção para o delicioso vídeo em que o fundador da IURD explica aos seus pastores como devem tirar mais dinheiro aos fiéis, sem vergonhas nem timidez.

Entretanto as pessoas vão continuando a ser enganadas por este tipo de máfias espirituais, em troca da estabilidade "espiritual" (o que quer que isso signifique) e, claro, dez por cento do ordenado. Um pormenor engraçado. Ou Jesus não sabe que a sua Palavra está a ser utilizada para fazer milhões não-declarados, ou está activamente a participar nesta corrupção; o que, a julgar pelos "milhares de milagres" que aconteceram na IURD (incluindo, revela um dos pastores, alguém que ficou curado do vírus HIV), só podemos concluir que Deus está mesmo muito participativo.

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terça-feira, 16 de março de 2010

Creatiologista no Saldanha


Abri o Blogger para escrever mas como não me saiu nada fui para a cama mais cedo. Há semanas que não escrevo nada, nada que se veja, nada de criativo ou minimamente satisfatório para oferecer a mim próprio. Leio bastante, um pouco de tudo, mas há algo que está terrivelmente mal com a minha glândula criativa. Assim, consultei um médico. Havia vários anúncios para creatiologistas na Internet, mas como estou mal de trocos fui-me pelo mais barato; ainda por cima era perto, com consultório no Saldanha. Fui.

Cheguei. A sala de espera estava repleta de escritores sem inspiração, um pintor com tinta no nariz que choramingava e uma senhora gorda a tricotar uma peça horrenda com gatinhos a saltar e letras do alfabeto grego. Vi que a senhora também chorava, e percebi que a sua glândula criativa também estava em baixo. Todas as revistas de moda de 2004 que estavam na mesinha junto às cadeiras pareciam demasiado lidas para poderem ser manuseadas sem apanhar alguma constipação, pelo que fiquei a olhar de um lado para o outro.

- Tão novo e já no creatiologista? - perguntou-me a senhora.

- É verdade - respondi eu, brincando com o Cartão de Utente por entre os dedos, não querendo parecer simpático para não despertar uma daquelas conversas intermináveis sobre problemas de saúde que as pessoas de mais idade tanto gostam de ter. A última vez que tal me aconteceu foi com a minha porteira, uma mulher chata, que sempre que me encontrava no elevador se punha com uma infinita descrição de todas as suas idas ao médico por causa da rótula. A rótula, a rótula, a rótula. Um dia, sem ninguém ver, fechei-a em casa arrastando-a pelos cabelos e fui à cozinha buscar uma espátula. Sentei-a numa cadeira, atei-lhe as mãos e colei-lhe a espátula à rótula magoada, como os mafiosos da televisão fazem só que com pistolas. Pensei em ameaçá-la assim, mas vi que com uma espátula pouco resultaria e além disso a mulher estava a gritar descontroladamente. Dei-lhe com a espátula na cabeça, e ela adormeceu. Onde poderia comprar uma arma a esta hora? Já sei; no Pingo Doce. Deve haver. Se até já têem aquelas refeições pré-feitas, e fornadas de pão quente a partir das 18 e trinta da tarde, porque não revólveres? Achei que fazia todo o sentido e sai de casa a correr, deixando a porteira adormecida no centro da minha sala. Olhei para o relógio, e só aí reparei que estava atrasado para uma aula importantíssima. Tinha mesmo, mesmo de ir. Fui.

Cheguei à aula e o professor faltou. Os meus colegas ficaram felicíssimos, talvez por não terem mais que fazer, talvez por não terem uma porteira inconsciente à sua espera em casa para ser torturada. Corri ao Pingo Doce, e o segurança à entrada olhou para mim com ar suspeito. Devia saber que estava a preparar alguma. Dei uma volta pelos corredores, procurando os revólveres, mas não havia nenhum. Estranhei. Perguntei a uma das meninas da caixa onde vendiam as armas, e ela olhou para mim com uma cara de pânico que não compreendi e depois chamou o segurança. O segurança já me tinha topado à entrada, e por isso seguiu-me enquanto atravessei o corredor dos queijos a fingir-me indeciso entre queijo fatiado ou para barrar. O segurança aproximou-se de mim e vi nele a oportunidade perfeita. Agarrei num queijo da serra, enorme e gordo, e atirei-o contra o segurança. Não percebo porque é que achei que ia deixar um segurança inconsciente com o queijo, e agora que olho para trás parece-me realmente uma ideia ridícula; na altura pareceu-me óptimo, pronto. Não me desculpo.

Não resultou, mas o segurança desequilibrou-se e u consegui sacar-lhe a arma que trazia à cintura. Agarrei nela, dei um tiro para o ar, e toda a gente começou a gritar e atirar-se para o chão. Um senhor de idade retirou a carteira do bolso e começou a estender-me notas amachucada, implorando pela própria vida, choramingando mesmo quando lhe disse que só queria levar o revólver e um pacote de queijo fatiado. O senhor foi teimoso, insistiu, disse que amava demasiado os netos para poder morrer ali daquela maneira, e eu lá lhe fiz a vontade, agarrei nas notas e não lhe dei um tiro. Ele agradeceu-me, ficou a chorar, e quando sai a correr do Pingo Doce comecei a ouvi-lo gritar, chamando a polícia e dizendo que tinha sido roubado violentamente por um delinquente negro de 27 anos e tatuado no ombro.

Aquilo deu-me um jeitão, porque eu não era um negro de 27 anos com tatuagens no ombro, pelo que a polícia ia procurar um homem que não se parecia em nada comigo. Caminhei até casa, comendo fatias de queijo pelo caminho, e entretanto encontrei o meu professor, o faltoso, que me fizera ter furo ainda há uns minutos. Quis dar-lhe um tiro, sinceramente. Estava a beber café com toda a descontracção. Fui-me a ele, de revólver na mão, relembrando-lhe que era o dinheiro público que lhe estava a pagar a bica e o bolo de arroz, e ele colocou os braços no ar e começou a chorar. Quando vi que lhe apontava o revólver sem querer até me senti mal, deixei cair a arma no chão e procurei acalmá-lo. Estendi-lhe o seu bolo de arroz, ofereci-lhe queijo, mas nada. Estava inconsolável. Não percebo bem porquê, apesar de o professor ser sempre muito exagerado com tudo. Quando ia apanhar a arma no chão, vi que desaparecera.

- E depois? - perguntou a senhora, que entretanto interrompera o crochet e ouvia a minha história sentada na ponta da cadeira. Ganhou cor, parecia entusiasmada.

- Alguém me levou a arma. Não sei quem.

A assistente do consultório, uma mulher loura com pernas enormes e que pelos vistos as gostava de exibir sem medo de parecer uma oferecida do pior, aproximou-se de mim e declarou-me que o senhor doutor estava à minha espera.. Deixei a senhora do crochet desapontada com o fim da minha história, e entrei no consultório.

O médico era um homem bastante feio. Não conseguia bem olhar para ele, pois o meu almoço dava voltas e voltas dentro do meu estômago. Ele perguntou-me o que se passava para me sentir sem inspiração, e eu expliquei que o nariz dele não estava a ajudar. Ele corou, disse que já estava habituado, e perguntou-me porque o vinha consultar. Eu perguntei-lhe se a boca dele se mexia mesmo assim ou se era uma máscara, e ele pareceu levar aquilo muito a peito.

- Ouça... - ameaçou-me ele com um dedo, dedo esse que não vi, porque estava a tentar controlar-me para não vomitar.

- Não aguento - confessei. O médico pareceu à beira do choro. Abriu uma gaveta e retirou um revólver que, por alguma razão, reconheci muito bem. Levei sete tiros, dois deles mortais e os outros só pelo gozo. Caí no chão sem sentir nada, nadando no meu próprio sangue. Cuspi um líquido quente e vi o consultório andar à roda. Pedi para alguém chamar o 112, se fizessem favor, e segundos depois ouvia sirenes e conseguia, daquele ângulo, avistar o interior da saia da assistente do consultório, que olhava para mim a chorar do alto das suas pernas. Ia adormecer. Venham rápido, que morro aqui e hoje. Venham rápido.

A porteira, pensei eu no fim. Esqueci-me da porteira.

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domingo, 14 de março de 2010

Evolução a uma voz (e a uma segunda voz que lá aparece por acaso mas que não sabe muito bem do que está a falar)

























Terminei ontem de madrugada de ler o livro “Evolução a Duas vozes”, que por si só é uma ideia interessante. Alguém se lembrou de convidar dois lados opostos da discussão criacionismo/evolução e dividir o livro em duas partes, dedicando 90 páginas a cada um dos lados. Do “lado” da Evolução estava Teresa Avelar, bióloga especialista em biologia evolutiva e um nome constante na literatura portuguesa publicada sobre o assunto; do “lado” do criacionismo, um nome conhecido de todos mas visivelmente fora do contexto: Padre Carreira das Neves, o maior especialista português em teologia bíblica mas, como veremos mais à frente, ignorante em relação a aspectos básicos da evolução.

Teresa Avelar surpreendeu-me; não é por concordar com ela que a vou elogiar, mas sim porque a sua metade do livro é um resumo equilibrado, bem argumentado e escrito de forma simples e facilmente perceptível ao grande público. Começa por nos apresentar Charles Darwin, descrevendo a sua biografia em paralelo com a história da “ideia” da selecção natural e respectivas repercussões no pensamento da época. Segue-se um brilhante resumo, em apenas 16 páginas, das provas existentes que comprovam e acrescentam às ideias de Darwin a quase garantia que a evolução aconteceu. Por fim, Teresa Avelar concentra-se nos argumentos muitas vezes apresentados pelos criacionistas CONTRA a evolução e contra Darwin, explicando sucintamente o porquê do falhanço intelectual de todas essas tentativas (incluindo o meu favorito, “Evolução leva a racismo, fascismo e comunismo”).

Do outro lado, o que esperamos? Os argumentos criacionistas? Seria interessante; mas como alguém se lembrou de convidar um especialista na Bíblia, Padre Carreira das Neves, o “lado” contrário ao da evolução perde toda a capacidade argumentativa. Apesar de ser visível que Carreira das Neves percebe muito da Bíblia (basta ler as 3500 páginas dedicadas a descrever verbo a verbo e frase a frase a criação bíblica de Adão e Eva), é também visível que a sua visão sobre a evolução é ignorante e superficial. Repete incessantemente que a evolução trata da “evolução do Universo”, e que (e esta fez-me rir) o evolucionismo não tem “qualquer capacidade cientifica para falar em pecado ou em aliança”. Isso é suposto demonstrar o quê? Que uma teoria no campo da biologia que procura explicar a variedade das espécies e a sua respectiva evolução ao longo de escalas de tempo geológico não explica um particular ramo da crença cristã? Ei, a evolução também não explica como funciona o meu microondas; isso deve querer dizer alguma coisa!

Carreira das Neves possui todas as características de quem é inteligente (uma vez que não tenta por um momento defender o literal criacionismo bíblico, que aliás repudia, sendo esse o único elemento com o qual concordo nas suas 90 páginas e, para mim, a sua melhor mensagem a transmitir ao leitor sobre o tema que deveria estar a tratar), mas ao mesmo tempo perde-se em curtas referências à ciência que só lhe ficam mal. No meu parágrafo favorito, Carreira das Neves explica que Deus não pode ser limitado pelas actuais teorias da relatividade e física quântica, uma vez que Deus está FORA do tempo e espaço! Que coincidência. Que criatura é esta, então, que existe fora do espaço e do tempo, indefinível por definição, exterior a qualquer escrutínio científico ou intelectual?

Tristemente, Carreira das Neves não perde nem um parágrafo a definir Deus, muito menos a explicar-nos que justificação tem para acreditar em tal entidade; em vez disso, apresenta todas as suas teses e opiniões (que vão saltando entre temas como pecado original, São Paulo, Criacionismo Bíblio e o “fundamentalista ateu Richard Dawkins” sem qualquer fio condutor) com o óbvio pressuposto que esse Deus existe, criando no leitor um sentimento de vazio intelectual. Cita inúmeras obras com grande frequência, curiosamente escritas por Padres, católicos ou teólogos mas nunca por pessoas que não concordam com ele; numa das suas citações, a qual, diz “em meu entender, diz tudo o que também eu gostaria de dizer como conclusão”, lê-se:

“Deus é Absoluto, não precisa de nenhuma coisa, de nenhuma relação exterior a Si, para ser Quem é. Deus acompanha cada uma das criaturas, mas permanece igual a si mesmo. Deus é”.

Ora, o que podemos extrair desta citação? A meu ver, absolutamente nada. Deus é, Deus é infinito, Deus é isto, Deus faz aquilo; sem nunca haver uma única definição de Deus apresentada ao leitor.

A mensagem geral de Carreira das Neves é a de que, ao contrário do que é defendido (e muito bem) por Teresa Avelar, a ciência e a religião devem manter um diálogo aberto e democrático, porque ambas procuram responder às interrogações do Homem. Ora, isto é impossível. Não pode haver “diálogo” entre duas áreas do conhecimento humano tão diferentes. Enquanto que a ciência reúne dados e chega a conclusões, a religião tira conclusões e depois vai escolher os dados que a comprovam; basta ver a interpretação completamente arbitrária do Padre Carreira das Neves em relação ao Génesis, defendendo que aquela sua interpretação é que é a correcta porque ele sabe ler em aramaico e era isto ou aquilo que o autor que escreveu o Génesis queria dizer.

Diz Teresa Avelar: “O facto de existirem pessoas que conseguem conciliar uma actividade científica com crenças religiosas não implica que os dois sistemas de pensamento sejam logicamente conciliáveis: significa apenas que as pessoas conseguem funcionar com contradições. Os cientistas excluem o sobrenatural da ciência que praticam – ou seja todos os cientistas, crentes ou não-crentes, tornam-se “operacionalmente ateus” no laboratório.

Resumindo. Será esta uma boa introdução ao debate “Criacionismo e Evolução”? Sim, se quiserem saber mais sobre apenas um dos lados do combate. Eu, que comprei o livro EXACTAMENTE por apresentar uma oposição à evolução e selecção natural, vi-me desapontado ao terminar a minha leitura. Li primeiro a parte de Teresa Avelar e só depois Carreira das Neves, mas talvez seja mais engraçado ler ao contrário para melhor compreender o abismo que os separa, e o contraste na qualidade da prosa, capacidade de comunicação e conteúdo. Vale a pena espreitar as 90 páginas de Teresa Avelar e tentar ler por entre a aborrecida e confusa prosa de Carreira das Neves. Todas as oportunidades para aprender devem ser aproveitadas, certo?

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