domingo, 13 de dezembro de 2009

O amor e uma inacreditável quantidade de tripas

O tecido humano é extremamente fácil de romper. Basta uma lâmina afiada, uma pedra bicuda, um golpe aplicado com cuidado, um rasgar violento. Dentes também servem, claro. O zombie pouco tinha de inteligência dentro do cérebro apodrecido, pelo que usar instrumentos não seria o seu instinto. O seu instinto era mais simples e básico: romper e comer.

Sentou-se confortavelmente no centro da rua, onde antes havia engarrafamentos e acidentes variados devido ao enorme fluxo de tráfego. As únicas pistas desse passado não tão distantes eram agora o carro a arder a poucos metros, o engarrafamento bloqueado e deserto de vida do outro lado da via, com pedaços de corpos pendurados como fantoches abandonados. Pessoas que tinham tentado sair dos seus carros depois de repararem que dali não sabiam sobre rodas, e teriam de fugir a pé. Alguns conseguiram, outros ficaram por ali, outros ficaram por ali e agora estavam espalhados pela estrada fora, transformados numa mancha homogénea de carne mastigada e pedaços de roupa outrora impecável. O zombie estava sozinho, teria a sua vítima só para si. Mordera-o, depois torcera-lhe a cabeça, e esta saíra como uma pequena rolha de uma garrafa. O homem que acabara de matar ficara com o terror impregnado no rosto roxo. O zombie não o reconheceu, nem se preocupou. Procurou-lhe a barriga, rasgou-lhe a roupa a mais, despiu-o e começou o seu jantar.

A rua deserta estava em perfeito silêncio, apenas interrompido por um ou outro grito desesperado que durava pouco, rosnares ocasionais, e sirenes fugindo da cidade.

O zombie estava a mastigar, tentando despedaçar o intestino grosso para melhor eficácia de consumo, quando o outro zombie apareceu ao fundo da rua. Tinha sido, em tempos, uma mulher provavelmente bonita; era difícil distinguir, primeiro porque estava suja de sangue e terra, e depois porque lhe faltava a bochecha esquerda. Um enorme buraco, feito com violência, mostrava agora a sua dentição perfeita e avermelhada. A zombie tinha folhas secas no cabelo, as unhas partidas e arrancadas, os pés descalços e as calças esfarrapadas. Olhou para o zombie sentado no centro da rua, mastigando agora um órgão acastanhado. Rosnou. Começou a correr.

O zombie com o órgão na mão parou de mastigar, e olhou para trás. Viu a zombie aproximar-se a correr, mostrando os dentes, como uma hiena pronta a atacar uma presa. Levantou-se de um salto, largando o órgão castanho, rosnando também. A zombie chegou ao pé dele, dobrada sobre o próprio peso, os olhos baços e esbranquiçados tremendo. Rosnaram os dois, um para o outro, a ver quem avançava primeiro. O zombie colocou-se entre a zombie e a barriga aberta da qual se alimentava, e arqueou os braços. A zombie olhou para trás dele, deliciada.

Pararam de rosnar. O zombie olhou para a zombie, e vice versa. Ao fundo, uma gigantesca explosão, e na rua perpendicular àquela passou acelerando uma carrinha da polícia com cinco zombies agarrados ao para brisas como mosquitos gigantes. A carrinha foi rua abaixo, e a sua sirene foi desaparecendo.

O zombie dobrou-se, agarrou num punhado de tripas, trouxe-as consigo e voltou a levantar-se. A zombie olhava. O zombie estendeu-lhe as tripas, lentamente, olhando para ela. Ela aceitou. O zombie rosnou-lhe ameaçadoramente, apertou os braços contra o peito, um pedaço de intestino pendurado como uma corda por entre os nós dos seus dedos, como se mudasse de ideias. Observou-a com um olhar vazio de conteúdo. Pararam. Depois o zombie voltou a estender-lhe o intestino, a zombie agarrou-o, levou-o à boca aberta, abriu-a com uma fome desesperada, começou a mastigar.

Sentaram-se, e o zombie retirou outro pedaço para si. Ao longe, uma sirene desaparecia e um grito desesperado que se aproximava era cortado subitamente. Por entre os prédios o sol foi-se pondo, e enquanto anoitecia os dois zombies mastigaram sem parar, sentados lado a lado.

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