terça-feira, 29 de junho de 2010

Casamento homossexual: a destruição da sociedade

Nota inicial: Este post pode ofender a sensibilidade de algumas pessoas.

Escrevi aqui há uns dias um post sobre as declarações publicadas no site Portal Evangélico sobre a morte de José Saramago, mas a verdade é que poderia escrever muito mais reflexões como essa porque o site em questão é demasiado estranho para ser deixado em paz. Outro texto recente publicado no Portal dá conta do (música dramática suficientemente cristã) CASAMENTO HOMOSSEXUAL.

Embora seja desde sempre um pilar matricial da civilização judaico-cristã, [o casamento heterossexual] trata-se de uma realidade universal fortemente enraizada em diferentes civilizações, culturas e religiões. Como elementos essenciais, o casamento sempre teve o encontro entre os géneros, numa perspectiva de igualdade e complementaridade, e a criação de uma estrutura estável e saudável para o desenvolvimento físico, emocional e espiritual das crianças. O mesmo tem sido, ao longo da história, e ainda é hoje, o contexto óptimo desse desenvolvimento.

Um desafio aos caros leitores: nomeiem-me um contexto histórico em que o casamento tenha realmente representado “o encontro entre géneros, numa perspectiva de igualdade e complementaridade”. Ou, por outras palavras, encontrem-me por favor um momento na história em que a mulher tenha alguma vez tenha tido, por estar casada com um homem, um estatuto igual ao seu.

E, já que estão a tentar impossibilidades, expliquem-me também porque raio é necessário um casamento especificamente entre duas pessoas de sexo diferente para que haja “uma estrutura estável e saudável para o desenvolvimento físico, emocional e espiritual (espiritual?) da criança”. Com certeza todas as mães e pais solteiros, ou todos os filhos de pais divorciados, ou todos os filhos de pais que não estejam casados, concordarão com o Portal Evangélico: de que outra forma poderemos criar uma criança saudável e feliz? Eu próprio fui criado por pais divorciados; talvez isso explique a falta de “desenvolvimento espiritual” na minha infância e o meu consequente ateísmo rebelde e violento.

A união entre um homem, uma mulher e os seus filhos é a base de uma sociedade equilibrada. Nela a sexualidade é saudável e a intimidade é profunda, porque baseada na diferença e na complementaridade.

Porque uma sexualidade entre dois homens e duas mulheres é simplesmente impossível de imaginar. Aliás, nunca poderá ser saudável! (o que quer que isso signifique; para o Portal Evangélico, “saudável” parece ser sinónimo de “nada de coisas que a nós nos pareçam esquisitas”). E, pela mesma ordem de ideias, toda a gente sabe que um casal de homossexuais é absolutamente incapaz de qualquer tipo de intimidade que chegue sequer aos calcanhares da íntima relação entre um bom homem e uma boa mulher cristãos. Mas já que falamos da muitíssimo óbvia superioridade do casamento heterossexual, porque será ele tão importante? Alguma ideia?

Quando essa união (casamento heterossexual) falha – e infelizmente falha muitas vezes – toda a sociedade paga um elevado preço, em depressões, violência doméstica, suicídios, pobreza, delinquência juvenil, insucesso e abandono escolar, abuso sexual de menores, criminalidade, etc.

Tirem alguns momentos para controlar as gargalhadas, se precisarem. Então subitamente todos os problemas do planeta, desde a pobreza até à violência doméstica, delinquência juvenil e criminalidade generalizada, têm finalmente uma explicação: o divórcio! Os leitores que sejam um pouco mais inteligentes que o Portal Evangélico poderão estar a perguntar-se, “Mas espera, mesmo que o fim de um casamento tradicional levasse à completa destruição da sociedade organizada, o que raio é que isso tem que ver com o casamento homossexual?”. O Portal Evangélico não revela essa importante relação, por estranho que pareça; muito menos parece ser tão activamente contra o divórcio (que causa tamanhas consequências destrutivas) como é contra o casamento homossexual (que, a julgar pela falta de explicações no Portal, não causa nenhuma).

Outra coisa que o Portal Evangélico também não explica é de que forma o casamento entre os meus dois vizinhos do sexo masculino vem destruir o fundamento básico do casamento da minha mãe e do meu pai, e consequentemente o equilíbrio da nossa família. Se o casamento tradicional é assim tão comichoso e frágil é porque algo de estranho se passa com a vossa estrutura familiar perfeita. Continuemos a nossa viagem pelas estranhas paisagens da aridez intelectual:

Pretende-se afirmar equivalência moral entre o estilo de vida homossexual e o heterossexual monogâmico. Esta mensagem, de fundamento biológico, moral e social mais que duvidoso, é perigosa para um Estado activamente envolvido na educação de crianças e jovens. Ela dá a entender que nada existe de moralmente intocável e indisponível, que tudo é mera construção social e resultado de preferências individuais e colectivas. Ora, um pilar fundamental da teoria moral, política, e jurídica Ocidental é a existência de valores e princípios nucleares, que os Estados, as sociedades e os indivíduos não podem criar nem devem tentar destruir, sob pena de pagarem um elevado preço no processo.

Ok, outro desafio para os leitores: pensem em posições morais, leis ou qualquer tipo de valor que hoje está alterado mas que em tempos foram “valores e princípios nucleares”. Eu fiz a minha lista: escravatura, mutilação genital, falta de direitos das mulheres, casamento ser apenas uma união entre pessoas da mesma raça, inexistência do divórcio, contracepção, educação ou saúde públicas… Acho que podia continuar, mas devem ter percebido a ideia. Se o Portal Evangélico existisse na altura com certeza teria feito um tão volumoso beicinho quando um idiota qualquer tentou alterar as tradições e valores fundamentais da altura, libertando os escravos, ou levando tratamento médico aos mais desfavorecidos. Loucuras modernas, isso sim!

O que o Portal Evangélico não consegue perceber é que a nossa noção de moral vai sendo alterada ao longo dos tempos, desde que começámos a viver em sociedade uns com os outros. Ao longo de milénios, fomos percebendo que regras funcionavam melhor e quais deviam ser abandonadas. Coisas óbvias e “nucleares” como não roubar ou não matar, só são tão óbvias não por serem por si só valores mágicos e insubstituíveis, mas porque têm aplicações práticas no dia-a-dia das pessoas e nos permitem viver melhor. Vamos acrescentando direitos, fazendo limitações aqui e ali, com o objectivo de melhorar a sociedade PARA TODOS. Assim libertámos os escravos negros, demos os mesmos direitos que os homens às mulheres, e assim daremos o casamento aos homossexuais, tudo pela mesma razão: não magoa ninguém, apenas traz mais liberdade e uma vida melhor e mais justa às pessoas envolvidas.

Todo este processo de melhoramento progressivo da sociedade será dificultado enquanto houver dinossauros como vós, sempre a tentar atacar o avanço e a arrastar o país e o mundo para trás. Tudo o que precisavam de fazer era demonstrar de que forma o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a homossexualidade em geral pode realmente destruir a sociedade; e se o conseguissem fazer, seria o primeiro a concordar convosco; mas infelizmente são incapazes de apresentar uma defesa decente da vossa posição, e por isso as pessoas que andam para aqui a tentar melhorar o planeta para o bem de todos vão continuar a dizer-vos adeus a bordo do comboio do progresso. Feliz estadia na Idade Média (e por favor parem de nos tentar arrastar convosco).


( link original: http://www.portalevangelico.pt/noticia.asp?id=3585 )

6 comentários:

Paulo39 disse...

Olá Renato

Tu não eras contra a adopção de crianças por casais homossexuais ou estou a fazer confusão?

Renato Rocha disse...

Paulo:

Acho que nunca comentei isso por aqui. Não sou nem completamente a favor nem completamente contra, encontro-me na posição neutra preparado para ser convencido por ambos os lados simplesmente porque pode ser possível que haja realmente consequências negativas no desenvolvimento da criança. Tudo o que li sobre o assunto, no entanto, incluindo alguns estudos sobre os países onde a adopção já é permitida, defende que não há uma relação entre a sexualidade dos pais e a qualidade da educação que dão aos filhos.

Estou pronto para debater a questão e ser convencido de qualquer posição, no entanto.

patricia colaço disse...

Para as crianças está comprovado que o que conta é o afecto, a estabilidade, a estimulação e o entorno familiar. As crianças são livres de qualquer tabu seja ele cultural, espiritual, sexual, etc. Só absorvem o que nós adultos lhes damos. Ora há dois caminhos. O standard e o alternativo. Na minha experiencia pessoal nunca vi nenhuma criança ter qualquer diferença na forma como trata ou ama um casal hetero ou homossexual. Mas sim vejo muita diferencia em como uma criança é afectada por alguns casais "normais", perfeitamente aceites pela nossa sociedade, em que os paizinhos batem nas mães, os pais não estimulam nem ligam aos filhos, os pais utilizam os filhos como "moeda de troca de ódios" num tribunal durante o divórcio, etc etc. Não se pode esquecer que uma criança educada por um casal homossexual não vive unicamente no meio gay. Essa criança tem avós, tios, tias, primas, primos. A única grande diferença é que será educada num ambiente de tolerancia frente às minorias e provavelmente aprenderá mais cedo que as outras, o valor da diferença, da tolerancia. Certamente será muito amada já que um casal homossexual que viveu tantos anos de dura luta não terá um filho em vão e menos por um descuido ;) E eu creio pessoalmente que essas crianças, como muitas outros educadas em meios de tolerancia de outros géneros, serão as que nos levarão para esse "comboio do futuro" onde o mundo será mais justo e menos hipócrita.

Renato Rocha disse...

Bem dito!

Luís disse...

Hmmm... sempre que se fala sobre os possíveis traumas das crianças (presumivelmente heterossexuais) criadas por pais homossexuais, eu pergunto: então e os traumas das crianças homossexuais que são criadas por pais heterossexuais?
Num mundo ideal todas as crianças são criadas por um pai e uma mãe que se amam mutuamente e à criança. Mas o mundo não é ideal...

Renato Rocha disse...

Luís:

Porque é que um "mundo ideal" é onde as crianças têm um pai e uma mãe? Para mim um mundo ideal é um local onde as crianças têm o acompanhamento, carinho e educação que precisam e merecem; e todos sabemos que ninguém precisa necessariamente de um homem e uma mulher que se enrolem a privacidade do seu quarto para o fazer. A sexualidade dos pais, ou mesmo se estão casados ou não, é irrelevante; e essa ideia de que é preciso a dualidade homem-mulher também me soa estranha. Tal como referi no post, os filhos de casais divorciados, ou as crianças de mães solteiras, ou mesmo os órfãos, não se enquadram na família tradicional como a conhecíamos (homem, mulher, casados); e no entanto ninguém argumentará que essas crianças, só por isso, estão a ser negligenciadas e crescerão com defeitos afectivos ou distúrbios emocionais.

E isso das crianças homossexuais criadas por heterossexuais é uma boa reflexão, porque muita gente realmente acredita que uma criança criada por um casal homossexual vai transformar-se em homossexual também. Ora, pela mesma ordem de ideias, e se há pessoas homossexuais que nascem em famílias ditas tradicionais, só nos resta concluir que é na verdade o casal heterossexual que "provoca" a homossexualidade!

Isto seria para rir se não fosse realmente uma das crenças mais populares sobre os assunto; isso, e que a homossexualidade é uma espécie de doença emocional quase contagiosa. Daí as tentativas constantes pela malta mais conservadora (e mais ignorante) de afastar da sociedade QUALQUER referência a QUALQUER coisa que seja diferente e que choque com a sua pequena visão do mundo.

Tal como disse a Patrícia e muito bem, acho que hoje em dia uma educação que não eduque para a diversidade e para a tolerância só levará a que a intolerância impere, com todas as consequências negativas que sabemos existirem.