Previamente, em Smith e as Sereias, Jack barricou-se dentro do Nautilus e ameaça um dos tripulantes com uma faca. Exige que ponham o submarino a funcionar e encontrem Rose. Está doido, portanto. A parte gira é que, cá fora, ainda ninguém sabe o que está a acontecer.
Os Conselheiros da Corte dos Oceanos reuniram-se numa reunião extraordinária a fim de lidar com a recente crise, nomeadamente o atentado à vida e integridade física de dez membros da Corte dos Oceanos. A reunião foi presidida por Sua Majestade o Rei Poseidon, e contou com a participação de Príncipe Namor de Raya Pérola Pacífica, Capitão Nemo, e dos restantes membros do Conselho dos Oceanos. Ficou decidido na citada reunião que:
1) O tratamento dos peixes feridos e o funeral oficial dos peixes vitimados deve ser uma prioridade
2) Haverá um inquérito formal, aliado à investigação policial, a fim de descobrir o responsável pelo atentado
3) As suspeitas de mão atlante no atentado não deverão ser ignoradas, pelo que a possibilidade de declarar guerra ao Império não está colocada de parte.
4) Haverá um investimento extra na segurança das propriedades e criaturas da corte.
5) A viagem marcada para o presente dia, a ser feita pelo Capitão Nemo, sua tripulação e quatro representantes do Departamento de Relações Extra-Aquáticas, terá como secundário objectivo o recrutamento de pessoal de interesse para o reforço da segurança do Palácio Real.
Sem mais assuntos, a reunião foi dada por terminada. Viva o Rei Poseidon!
***
Não demorou muito para que toda a Corte, ultrapassando rapidamente o atentado que vitimara até então quatro peixes e viria, até ao fim da noite, vitimar mais uns quantos, se virasse para o mais recente acontecimento, igualmente dramático e espectacular: algum doido se tinha barricado dentro do Nautilus, o espectacular, cilíndrico e tecnologicamente avançado submarino do Capitão Nemo, e ameaçava a vida de toda a tripulação com uma espada roubada da Sala das Armas. O Conselho da Corte dos Oceanos, até há uns minutos reunidos em segredo, saiu das suas obrigações e soube logo da notícia. Poseidon correu até aos jardins, onde o submarino estava estacionado, e com ele o proprietário do submarino, o Capitão Nemo.
Lilith, Ariel e Smith também lá estavam, ao lado de Sebastião.
- A culpa é minha – dizia o caranguejo, com as tenazes a tremer descontroladamente – A culpa é minha…
- Não se culpabilize, Sebastião. A culpa não é sua, é do idiota que não reparou que alguém tinha entrado sem autorização na Sala das Armas – disse Smith – Ei, alguém viu o Jack?
Lilith olhou em volta.
- Não o vejo há duas horas. Com certeza estará nalgum canto a desenhar.
- Vou à procura dele, deve estar no quarto – disse Smith, afastando-se – Se morrer alguém avisem-me, ok?
***
“Vou morrer”, pensou o tripulante que Jack segurava dentro do Nautilus. A lâmina afiada continuava colada à sua garganta.
- Tem calma, pá – disse um dos tripulantes. Quase todos eles eram indianos como Nemo, alguns louros, outros mais para o europeu. Usavam calções brancos e meio esfarrapados, e casacos azuis com um pequeno símbolo do Nautilus junto ao mamilo esquerdo – Larga o nosso amigo e podemos conversar.
- Não vou conversar com ninguém – definiu Jack – Vão pôr isto a funcionar.
- Ouve, tens de ser realista. Tu com uma espada não vais a lado nenhum. Com um revólver talvez, ou com uma bomba. Mas com uma espada…
- É verdade – confirmou outro tripulante, quase a pedir desculpa – Mais tarde ou mais tempo vais ter de dormir, ou parar para comer e para ir para a casa de banho. E assim que largares esse refém nós caímos-te em cima e partimos-te o nariz.
- O nariz, só? – resmungou outro tripulante.
- Por favor, calem-se – implorou o tripulante com a espada na garganta.
***
Smith bateu à porta do quarto de Jack e aguardou uma resposta. Nada. O corredor dos quartos de hóspedes do palácio estava vazio. Toda a gente tinha acorrido ao exterior para ver o que se passava. A noite estava a ser cheia de coisas surpreendentes. Smith bateu outra vez à porta.
- Jack? Estás aí?
A porta abriu-se, o trinco era fraquinho. Smith empurrou-a ligeiramente.
- Estás a fazer alguma coisa privada? – perguntou Smith. Nenhuma resposta. Entrou.
O quarto de Jack estava coberto com folhas de papel. Em cima da cama, da mesinha, à volta da janela… Em todo o lado. Smith reconheceu logo o desenho, repetido vezes e vezes sem conta como o eco de um pesadelo: era a figura despida e fisicamente atraente de Rose, a namorada de Jack. Alguns desenhos mostravam-na normalíssima, cópias fiéis do original que Smith tão bem conhecera em circunstâncias que hoje lhe pareciam de mau gosto.
Mas uma observação atenta revelava desenhos diferentes, todos eles variações do original: nuns, Rose aparecia com uma cauda de peixe. Noutros, com guelras. Noutros, com barbatanas. Noutro, abraçada a um peixe. Noutro, abraçada a vários peixes. Ou a afagar um coral. Ou a comer algas. Ou a ser assustada por medusas. Ou a ser comida por um tubarão. Ou a chorar, com um balão de fala que dizia “VOLTA PARA MIM MEU AMOR”, em letras enormes escritas numa caligrafia tremida.
Smith observou os desenhos, num misto de surpresa e assombro. O desenho do tubarão estava extremamente gráfico, com Rose a lutar desesperada contra um enorme tubarão branco. A falta de cor vermelha era compensada com um borrão a preto, que jorrava das feridas abertas de Rose.
- Este rapaz não está bem – murmurou Smith – Qualquer dia passa-se de vez e ainda tenta alguma coisa perigo…
Smith calou-se, e lembrou-se do Nautilus lá fora.
- Pela saudinha da Pescada – murmurou.
***
- Pela saudinha da Pescada – implorava o tripulante com a espada na garganta – Deixa-me sair daqui. Agarra outro gajo qualquer, eu não. Tenho um filho para criar. Um não, dois. Sete, aliás. São tantos que às vezes esqueço-me.
- Não te preocupes, Ismael – resmungou um tripulante com maus modos, quase furando a cara de Jack com o olhar – Quando o lourinho vacilar, ou mesmo quando te cortar a garganta, caímos-lhe em cima.
- Isso é reconfortante – murmurou o refém Ismael. Jack agarrou-o ainda mais contra si.
- Vou dizer isto uma última vez. Eu quero que ponham este submarino a funcionar, e é já.
- Mesmo que a gente quisesse ajudar de boa vontade um sádico que ameaça um dos nossos maiores amigos com uma faca – disse um deles – Não podia.
- Ai não? – perguntou Jack, num misto de desafio e pavor – Então porquê?
- Não te preocupes, Ismael. Este sádico não vai a lado nenhum.
***
- Não se preocupe, Poseidon – disse o Capitão Nemo a Poseidon quando este lhe pediu mil perdões pelo sucedido – Aquele sádico não vai a lado nenhum.
- A sua tripulação conseguirá dominá-lo, com certeza – confirmou Poseidon.
- Não é isso – respondeu Nemo. Levou a mão ao interior do casaco e puxou uma corrente de ouro. Pendurada por uma pequena argola de prata estava a chave do Nautilus.
***
- Só podem estar a gozar – quase choramingou Jack.
- E não, não há nenhuma cópia – acrescentou um dos tripulantes.
- Uma vez, quando parámos em Lisboa para comprar pastéis – disse um dos tripulantes – o Capitão era para ter feito uma cópia nas Chaves do Areeiro. Mas não chegou a fazê-la. A fila para os pastéis estava muito grande e perdemos lá muito tempo.
- Repensa as tuas prioridades, lourinho. O Capitão Nemo é impiedoso com quem o desafia desta maneira – rosnou outro tripulante, aquele com mais modos – Queres encontrar a tua namorada pelo teu próprio pé ou dentro de uma caixa de fósforos?
Todas as Quartas e Quintas, novos episódios de Smith e as Sereias.
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