Previamente, em Smith e as Sereias, desperdicei um episódio com uma experiência de diálogos paralelos que nada acrescentaram ao enredo. Voltemos ao normal decorrer da narrativa.
Jack desdobrou o papel com as mãos a tremer, passou a língua pelos lábios e mudou o peso do corpo de uma perna para a outra.
- O meu nome é Jack, e gostaria de pedir as minhas mais sinceras desculpas pelo que aconteceu há duas noites atrás, especialmente ao Capitão Nemo, comandante do submarino Nautilus onde me barriquei.
A assistência ouvia atentamente: Poseidon, Namor, Smith, Ariel, Lilith, alguns peixes da corte, dois ou três jornalistas e a tripulação do Nautilus, que incluía o próprio Capitão Nemo e um tripulante com um enorme adesivo na bochecha e punhos cerrados com força.
- Não foi minha intenção magoar inocentes, mas compreendo agora que o meu acto foi egoísta e malicioso. Capitão Nemo, a minha ofensa a si e ao seu submarino, bem como à sua tripulação, nunca poderá ser compensada devidamente.
O Capitão Nemo escutava, impávido e sereno, com os braços cruzados de quem espera o autocarro.
- Compreenderei totalmente se não quiser manter a sua promessa de me ajudar a encontrar a minha namorada Rose.
Ao lado se Ariel, Lilith engoliu em seco e olhou para a própria cauda com um interesse invulgar.
- Agradeço-lhe o facto de não ter oficializado uma queixa contra mim junto das Autoridades, e aceitarei qualquer castigo que ache estar à altura do crime que cometi.
Jack dobrou o papel e olhou para o chão, envergonhado. A sala ficou em silêncio total. Toda a gente estava à espera de ver a reacção do Capitão. Nemo permaneceu quieto, olhando para Jack como uma chita que olha para uma gazela mas que não está necessariamente com vontade de começar a correr atrás dela.
- Desculpas aceites – disse, finalmente. Jack levantou a cabeça e o seu alívio era palpável.
- A minha promessa de procurar Rose – continuou o Capitão Nemo –permanece de pé. Nunca falhei uma promessa e não será hoje que vou começar. Ainda assim...
- Ui – disse Smith ao ouvido de Ariel – Vem aí coisa ruim.
- Shiu! – disse-lhe ela, e apontou para o seu lado direito. Lilith parecia à beira de um ataque de nervos. Sim, a expressão é banal, estereotipada e cliché, mas era assim que ela estava e não há nada a fazer.
- ... durante toda a viagem – continuou o Capitão – Jack será o meu assistente pessoal.
Por alguma razão, a tripulação do Poseidon desmanchou-se em sorrisos maliciosos.
- Isso quer dizer que posso ir convosco...? – perguntou Jack, a medo.
O Capitão virou costas e saiu porta fora, seguido pela tripulação. Para trás ficou um tripulante enorme, com um adesivo na bochecha. Ele olhou para Jack com dois olhos acesos e ameaçadores. Depois virou costas e seguiu os companheiros.
***
Lilith deu um salto enorme e foi cair em cima do desgraçado do Jack, que mal se aguentava de felicidade.
- Pensava que ele me ia decapitar...
- Não sejas parvo, o meu Pai nunca o permitiria! – disse Lilith, agarrada aos ombros de Jack. Mas agarrada mesmo, com toda a confiança. Não era um agarrar normal, tipo "olá companheiro". Era outro tipo de agarrar. Eu e Ariel trocámos um olhar suspeito.
- Nós vamos só ali comer uma sandes e já voltamos – disse eu, com toda a sofisticação. Tinha aprendido umas coisas, desde que me começara a sentir dentro de uma novela mexicana; nomeadamente, que sempre que um potencial casal estivesse a esfregar-se, deveria afastar-me utilizando uma desculpa realista como aquela das sandes. Orgulhoso, segui Ariel pelo corredor fora.
- Eles fazem um casal bonito – comentou Ariel.
- É verdade. São os dois loiros e de olhos claros. Vão ter uns filhos à anúncio da Beneton.
- Acho que Beneton tem uns quantos énes ou tês a mais.
- Bennetton.
- É possível que seja assim. Smith, preciso de falar contigo.
Parámos. Ariel olhou-me nos olhos. Ela tinha uma forma estranha de quase esconder as preocupações mas não conseguir esconder o quanto essas preocupações a alteravam emocionalmente.
- Eu estou grávida – disse-me ela.
- Pela saúde da Pescada... – murmurei, surpreendido. Aquilo tinha-me apanhado despercebido. Ariel franziu o sobrolho.
- Não me digas que te esqueceste... Foi a razão por que vieste aqui parar ao Palácio, caramba.
- Não, claro, eu sei, eu lembro-me perfeitamente! – menti-lhe.
- Agora que nos conhecemos melhor, sinto-me um pouco mais à vontade para conversar sobre isto – não parecia nada. As palavras custavam-se a sair. A sua cara era a de alguém com prisão de ventre – Eu não estou preparada para ter este filho. Nunca estive. Já te contei que quero ter uma carreira no cinema. Fui convidada para uma audição, era o papel perfeito. Não tive resposta ainda, mas tenciono lutar pelo meu sonho e investir a sério em mim. Percebes? Em mim, e não...
- Numa criança – completei. Ela levou as mãos à cara.
- Sou horrível, não sou? Não era suposto ter um grande instinto maternal?
- Não sei, nunca experimentei ser mãe – respondi-lhe, e arrependi-me imediatamente. Ariel estava a abrir o seu coração, sinceramente, pela primeira vez em todo aquele tempo, e eu com piadas idiotas. Às vezes sinto que há alguém a responder por mim. A minha consciência, ou uma voz profunda dentro da minha cabeça, como o narrador sádico de uma história qualquer.
- Tu não te importas? – perguntou-me ela.
- Bem... Eu nunca tinha pensado nisso. Não assim, tão a sério. Uma criança... – fiz uma pausa – Somos jovens, temos tempo. Se um dia tu, comigo ou com outro tipo qualquer, quiseres ser mãe, então aí sim. Engravidas e etc. Mas se nesta altura não sentes que é isso que deves fazer, não há problema. A sério. Tens de, er... – "pelo amor da Pescada, o que se passa comigo?" – ouvir o teu coração. E... É isso.
Ariel baixou lentamente as mãos, atirou-se para a frente e deu-me um beijo. Pimba, assim, sem mais nem menos. Não foi um beijo de dá cá essa língua, muito menos um beijo lambuzado à filme. Foi um beijo carinhoso. Acho que nunca tinha recebido um destes. Ariel afastou-se, olhou para mim:
- Obrigado. Por compreenderes.
Encolhi os ombros.
- Ora essa.
- O que me preocupa é o meu Pai... Ele não vai gostar da ideia de abortar...
- Vamos fazê-lo em segredo. Durante a viagem. Em algum país por onde passemos, sei lá. Ei, e o tal filme para o qual fizeste audições?
- Nunca me chegaram a responder. Talvez tenham atrasado a produção, é o mais certo.
Sem comentários:
Enviar um comentário