quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 32

Previamente, em Smith e as Sereias, desperdicei um episódio com uma experiência de diálogos paralelos que nada acrescentaram ao enredo. Voltemos ao normal decorrer da narrativa.


Jack desdobrou o papel com as mãos a tremer, passou a língua pelos lábios e mudou o peso do corpo de uma perna para a outra.

- O meu nome é Jack, e gostaria de pedir as minhas mais sinceras desculpas pelo que aconteceu há duas noites atrás, especialmente ao Capitão Nemo, comandante do submarino Nautilus onde me barriquei.

A assistência ouvia atentamente: Poseidon, Namor, Smith, Ariel, Lilith, alguns peixes da corte, dois ou três jornalistas e a tripulação do Nautilus, que incluía o próprio Capitão Nemo e um tripulante com um enorme adesivo na bochecha e punhos cerrados com força.

- Não foi minha intenção magoar inocentes, mas compreendo agora que o meu acto foi egoísta e malicioso. Capitão Nemo, a minha ofensa a si e ao seu submarino, bem como à sua tripulação, nunca poderá ser compensada devidamente.

O Capitão Nemo escutava, impávido e sereno, com os braços cruzados de quem espera o autocarro.

- Compreenderei totalmente se não quiser manter a sua promessa de me ajudar a encontrar a minha namorada Rose.

Ao lado se Ariel, Lilith engoliu em seco e olhou para a própria cauda com um interesse invulgar.

- Agradeço-lhe o facto de não ter oficializado uma queixa contra mim junto das Autoridades, e aceitarei qualquer castigo que ache estar à altura do crime que cometi.

Jack dobrou o papel e olhou para o chão, envergonhado. A sala ficou em silêncio total. Toda a gente estava à espera de ver a reacção do Capitão. Nemo permaneceu quieto, olhando para Jack como uma chita que olha para uma gazela mas que não está necessariamente com vontade de começar a correr atrás dela.

- Desculpas aceites – disse, finalmente. Jack levantou a cabeça e o seu alívio era palpável.

- A minha promessa de procurar Rose – continuou o Capitão Nemo –permanece de pé. Nunca falhei uma promessa e não será hoje que vou começar. Ainda assim...

- Ui – disse Smith ao ouvido de Ariel – Vem aí coisa ruim.

- Shiu! – disse-lhe ela, e apontou para o seu lado direito. Lilith parecia à beira de um ataque de nervos. Sim, a expressão é banal, estereotipada e cliché, mas era assim que ela estava e não há nada a fazer.

- ... durante toda a viagem – continuou o Capitão – Jack será o meu assistente pessoal.

Por alguma razão, a tripulação do Poseidon desmanchou-se em sorrisos maliciosos.

- Isso quer dizer que posso ir convosco...? – perguntou Jack, a medo.

O Capitão virou costas e saiu porta fora, seguido pela tripulação. Para trás ficou um tripulante enorme, com um adesivo na bochecha. Ele olhou para Jack com dois olhos acesos e ameaçadores. Depois virou costas e seguiu os companheiros.

***

Lilith deu um salto enorme e foi cair em cima do desgraçado do Jack, que mal se aguentava de felicidade.

- Pensava que ele me ia decapitar...

- Não sejas parvo, o meu Pai nunca o permitiria! – disse Lilith, agarrada aos ombros de Jack. Mas agarrada mesmo, com toda a confiança. Não era um agarrar normal, tipo "olá companheiro". Era outro tipo de agarrar. Eu e Ariel trocámos um olhar suspeito.

- Nós vamos só ali comer uma sandes e já voltamos – disse eu, com toda a sofisticação. Tinha aprendido umas coisas, desde que me começara a sentir dentro de uma novela mexicana; nomeadamente, que sempre que um potencial casal estivesse a esfregar-se, deveria afastar-me utilizando uma desculpa realista como aquela das sandes. Orgulhoso, segui Ariel pelo corredor fora.

- Eles fazem um casal bonito – comentou Ariel.

- É verdade. São os dois loiros e de olhos claros. Vão ter uns filhos à anúncio da Beneton.

- Acho que Beneton tem uns quantos énes ou tês a mais.

- Bennetton.

- É possível que seja assim. Smith, preciso de falar contigo.

Parámos. Ariel olhou-me nos olhos. Ela tinha uma forma estranha de quase esconder as preocupações mas não conseguir esconder o quanto essas preocupações a alteravam emocionalmente.

- Eu estou grávida – disse-me ela.

- Pela saúde da Pescada... – murmurei, surpreendido. Aquilo tinha-me apanhado despercebido. Ariel franziu o sobrolho.

- Não me digas que te esqueceste... Foi a razão por que vieste aqui parar ao Palácio, caramba.

- Não, claro, eu sei, eu lembro-me perfeitamente! – menti-lhe.

- Agora que nos conhecemos melhor, sinto-me um pouco mais à vontade para conversar sobre isto – não parecia nada. As palavras custavam-se a sair. A sua cara era a de alguém com prisão de ventre – Eu não estou preparada para ter este filho. Nunca estive. Já te contei que quero ter uma carreira no cinema. Fui convidada para uma audição, era o papel perfeito. Não tive resposta ainda, mas tenciono lutar pelo meu sonho e investir a sério em mim. Percebes? Em mim, e não...

- Numa criança – completei. Ela levou as mãos à cara.

- Sou horrível, não sou? Não era suposto ter um grande instinto maternal?

- Não sei, nunca experimentei ser mãe – respondi-lhe, e arrependi-me imediatamente. Ariel estava a abrir o seu coração, sinceramente, pela primeira vez em todo aquele tempo, e eu com piadas idiotas. Às vezes sinto que há alguém a responder por mim. A minha consciência, ou uma voz profunda dentro da minha cabeça, como o narrador sádico de uma história qualquer.

- Tu não te importas? – perguntou-me ela.

- Bem... Eu nunca tinha pensado nisso. Não assim, tão a sério. Uma criança... – fiz uma pausa – Somos jovens, temos tempo. Se um dia tu, comigo ou com outro tipo qualquer, quiseres ser mãe, então aí sim. Engravidas e etc. Mas se nesta altura não sentes que é isso que deves fazer, não há problema. A sério. Tens de, er... – "pelo amor da Pescada, o que se passa comigo?" – ouvir o teu coração. E... É isso.

Ariel baixou lentamente as mãos, atirou-se para a frente e deu-me um beijo. Pimba, assim, sem mais nem menos. Não foi um beijo de dá cá essa língua, muito menos um beijo lambuzado à filme. Foi um beijo carinhoso. Acho que nunca tinha recebido um destes. Ariel afastou-se, olhou para mim:

- Obrigado. Por compreenderes.

Encolhi os ombros.

- Ora essa.

- O que me preocupa é o meu Pai... Ele não vai gostar da ideia de abortar...

- Vamos fazê-lo em segredo. Durante a viagem. Em algum país por onde passemos, sei lá. Ei, e o tal filme para o qual fizeste audições?

- Nunca me chegaram a responder. Talvez tenham atrasado a produção, é o mais certo.

- Esta cena precisa de um final decente, Ariel – dobrei-me ligeiramente para a frente. Ela percebeu, sorriu, e deu-me outro beijo daqueles.

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