terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ai, a coerência...

Apareceu no Jornal de Domingo da SIC um casal de alemães que decidiu, há umas décadas, vir viver para Portugal numa casota de província. Têm ovelhas, um curral, uma horta e vivem apenas do que retiram da terra. Fazem os seus próprios pratos, a sua própria comida, tomam banho numa terrina gigante e defendem o seu afastamento em relação à “nossa sociedade”. Criticam o capitalismo, o consumismo e aquelas coisas que as pessoas que vivem voluntariamente numa barraca criticam. São tradicionalistas, e garantem que a eles, com a sua horta e os seus animais, não há crise nenhuma.

E que fazem nos seus tempos livres, estes “corajosos” que vivem à margem do capitalismo e do consumismo descontrolado? A reportagem mostra-nos, e é brilhante: vão para o mercado da aldeia vender mezinhas, óleos, cosméticos caseiros e chás medicinais. Sim, leram bem. Um casal de descontraídos camponeses de sessenta anos, que gozam com a “nossa sociedade capitalista e superficial”, fazem dinheiro a vender cosméticos às senhoras da aldeia.

Hoje em dia olha-se para estes “corajosos” com admiração, com curiosidade, como se fossem pessoas sábias e que tiveram uma ideia óptima. “Aqueles sim, é que vivem bem”, pensarão alguns. Esquecem-se que nós, todos “nós”, já experimentámos viver assim. A esse período chamou-se “Idade Média”, e foi bonito mas felizmente acabou. Sim, vivíamos junto das flores e dos cocós das ovelhas. Sim, tudo cheirava bem. Sim, não pensávamos em jogos de computador, em televisões, em perfumes ou em todos aqueles produtos que realmente são, na prática, desnecessários, mas que também não são maldições irreversíveis que destroem a nossa existência. E então?

Hoje temos aqueles comodismos esquisitos e consumistas, como electricidade em casa, água nas torneiras, uma televisão e livros para nos mantermos informados, ou a tecnologia que permite curar doenças e melhorar a qualidade de vida como nunca na história da civilização.

Se toda a gente fosse “corajosa” e passasse a viver na província com as ovelhas, a civilização conhecida acabava. Passávamos a comer de pratos de cortiça, a aprender a ler com o professor da província, e a tomar mezinhas ao invés de investir decentemente em investigação científica que nos permite curar doenças sérias. A única razão por que este tipo de gente pode ser tão “corajosa” é porque 99 por cento da população não pensa como eles, e vai continuar a lutar pela civilização moderna e a financiá-la.

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