Previamente, em Smith e as Sereias, o aparentemente infinito enredo da situação de reféns continua. Lá dentro, Jack rasgou a cara a um dos tripulantes (e pediu desculpa); e cá fora, Lilith insiste com o pai para que a deixem tentar acalmar Jack e acabar com aquela situação de uma vez por todas. Para bem de todos, incluindo o ritmo dramático da história.
Lilith aproximou-se da rampa de entrada do Nautilus. Lá em cima, uma pequena porta de ferro estava fechada, e uma janelinha circular deixava antever apenas a mais pura escuridão. Atrás dela (de Lilith, não da escuridão), vinham Ariel, Smith e o Capitão Nemo. Mais atrás, nos jardins do Palácio, o silêncio pairava sobre todas as criaturas da assistência.
- Jack? – murmurou Lilith, numa vozinha quase apagada.
- Fala mais alto, daqui não se ouve! – pediu alguém na assistência, com uma câmara de vídeo na mão.
- Jack? – quase gritou Lilith – Consegues ouvir-me?
***
- Olha só, estão a chamar-te – disse um dos tripulantes.
- Deve ser a equipa de intervenção. Espero que venham armados e zangados por os terem feito sair do quartel a esta hora – resmungou o tripulante com maus modos, segurando a quarta toalha da noite, colada à bochecha aberta.
- Ainda podes desistir – disse o tripulante mais velho, numa voz calma.
Jack apurou o ouvido. Reconhecia aquela voz lá fora, era Lilith.
***
- Jack, podemos conversar? Podes abrir a porta? – pediu Lilith.
- Se estiveres a segurar algum refém pede a alguém que te abra a porta! – sugeriu Smith.
- Estás parvo? – resmungou Ariel num murmúrio – O Jack era lá capaz de uma coisa dessas.
***
- Podem ir abrir-me a porta? – perguntou Jack, quase pedindo desculpa e segurando a espada à garganta de Ismael. Estava a começar a ficar com cãibras nos braços.
Os tripulantes olharam para ele.
- Olhem que eu mato-o, hum?
- Sim, claro – um dos tripulantes encolheu os ombros e foi abrir a porta.
***
A porta foi aberta, e a assistência inspirou fundo. Um tripulante, já velho, apareceu e acenou com a mão.
- Boas tardes a todos. Capitão, ainda bem que o vejo.
- O que se passa aí, homem? – perguntou o Capitão Nemo, de braços nas ancas.
- Um gajo qualquer louro entrou por aqui de espada em punho, agarrou o Ismael e quis pôr o Nautilus a funcionar. Nós explicámos que não dava porque não havia chave. E depois o Carlo tentou cair-lhe em cima e o gajo louro cortou-lhe a bochecha. Capitão, ele é igualzinho àquele actor de Bollywood que…
- Eu sei, eu sei. Como está o Ismael?
- Suado e apavorado, Capitão. Mas já deu para perceber que o gajo louro é um bocado mosca morta demais para tentar alguma coisa.
- Como está ele? Como está o Jack? –Lilith estava nervosíssima.
- Quem, o gajo louro?– o tripulante soltou um sorriso, estendeu a mão com a palma para cima e uniu as pontas dos cinco dedos, viradas para cima. Depois separou-as e colou-as repetidamente, naquele gesto universal que significa “miúfa”.
- Saia da frente, homem – pediu uma voz vinda do interior do submarino. O tripulante olhou de soslaio para trás como se alguém tivesse chocado com ele no metro.
- Olhem, aí vem ele – disse o tripulante, afastando-se.
Da escuridão apareceu Jack, segurando Ismael à frente do corpo e com a espada levantada.
- Ele está armado! – gritou a sereia gorda, do meio da assistência.
- Jack, larga essa espada e desce daí – pediu Lilith, de mãos na garganta.
- É isso, Jack – enfatizou Smith – Estás a fazer figura de doido com isso na mão. Olha para esse pobre homem. Provavelmente tem uma família, e filhos para criar.
- Pelo menos nove. Não, doze – disse Ismael, numa voz apagada.
- Vês? Se o matares, deixas uma família esfomeada e desprotegida sozinha no mundo. E pior, vais parar à prisão – continuou Smith – Eu prometo que farei tudo o que puder para encontrar a Rose. Vou contigo e tudo. Mas de uma forma que não exija fazeres refém e arrancares as bochechas a alguém.
- Não entendes, Smith… - Jack estava a suar, a tremer – Agora com isto da bomba, ninguém vai querer mais saber da Rose.
- Estás a gozar, certo? Já ninguém se lembra da bomba! Todo o mundo tem os olhos colados a ti! – disse Smith.
- Qual bomba? – perguntou a sereia gorda.
- Mesmo assim – continuou Jack – Esta é a única forma. Capitão Nemo, se não fizer nada para encontrar a Rose imediatamente eu corto a garganta a este homem!
- Agora está só a dramatizar de forma gratuita – resmungou o Capitão, cruzando os braços – É óbvio que eu não me vou deixar chantagear por um indivíduo como você. Se quiser, corte a garganta ao Ismael. À vontade.
- O quê? – perguntou Ismael – Meu Capitão…
- Ouça, Ismael, você é absolutamente desnecessário, em especial depois aquele dia em que se esqueceu de baixar a âncora e o Nautilus ficou preso num rift oceânico. Lamento. Jack, é esse o seu nome, não é? Força, mate-me esse desgraçado.
- Já vos disse que tenho catorze filhos? – choramingou Ismael.
- Jack, não faças isso! – gritou Lilith, a choramingar
- Jack, por favor… - implorou Ariel.
- Dá-lhe! – gritou a sereia gorda.
***
- Ele vai cortar-lhe a garganta! – gritou o Rei Atlante, entusiasmado, à frente do seu projector holográfico-tridimensional.
***
- Ele vai cortar-lhe a garganta! – gritou um dos jornalistas do Diário Anémona. Dobrou-se sobre a sua máquina de escrever e mexeu as barbatanas freneticamente. Na página à sua frente, em letras garrafais, surgia a frase: ESCANDALOSA DECAPITAÇÃO SANGRENTA ÀS PORTAS DO PALÁCIO DE POSEIDON.
***
- Fizeste uma boa escolha, amigo – disse Smith, apertando os ombros de Jack. Lilith abraça-o fortemente, e Ariel estava ao seu lado a sorrir-lhe compreensivamente. Estavam sentados numa pequena sala do Palácio. A espada tinha desaparecido, Ismael também. Estariam sozinhos, se não fosse o peixe-espada polícia a um canto, com ar de poucos amigos, controlando a situação.
- Desculpem, eu não sei o que me passou pela cabeça… - Jack estava a chorar.
- Querias encontrar a Rose, e para isso ameaçaste matar uma pessoa inocente – respondeu Smith – Eu cá compreendo.
- Nem consigo imaginar aquilo por que passaste… - Lilith parecia mais aliviada do que o próprio Jack – Pobrezinho…
Smith olhou para Ariel e levantou a sobrancelha.
- Vamos lá fora ver se chove, sim? – sugeriu Ariel, olhando para Smith e piscando-lhe o olho.
- Ver se chove? Dentro de água? – resmungou ele.
- Então vamos só comer qualquer coisa – Ariel agarrou-lhe a camisola e deu-lhe um puxão.
- Traz-me uma sandes de presunto, então.
- Smith. Nós vamos lá fora. Não vamos?
Smith olhou para Ariel e abriu a boca por alguns segundos.
- Ah! Claro, sim – agitou a cabeça na direcção de Lilith e Jack, que continuava abraçados e piscou o olho a Ariel. “Claro!”.
- E você vem também – Ariel deu um empurrãozinho ao polícia.
- Oh menina, não posso abandonar a minha posição estratégica…
- A sua posição estratégica é vir connosco. Comer uma sandes.
O polícia foi arrastado por Ariel e por Smith para fora da sala. A porta fechou-se. Lilith e Jack separaram-se e olharam um para o outro longamente. E mais um bocadinho. E mais um bocadinho.
***
ESCANDALOSA FALTA DE ESCÂNDALO NO PALÁCIO DE POSEIDON
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