- Força, dá-lhe! – gritou Smith. Jack estava empoleirado na prateleira que segurava o título do post, e ia puxando as letras a que conseguia chegar. Tinha tirado dois “I”, porque eram as mais levezinhas, e agora estava a tentar arrancar o P.
- Pelo amor da Pescada – resmungava Ariel, apoiando-se numa estaca de madeira que segurava uma tabuleta de madeira – Vocês não conseguem fazer um protesto decente, sem destruição?
- Esses protestos pacifistas não aparecem nos televisores – esclareceu Smith, olhando em volta – Alguma de vocês viu por aí uma montra?
- Calma, calma! – pediu Lilith, que estava ao lado de Ariel e olhava cheia de preocupação para o topo do post, onde Jack já conseguira soltar o P e estava agora a trabalhar no S – Jack, por favor… Desce daí, ainda te magoas!
- Há que mostrar-lhe que já chega – disse Jack, a custo, puxando a letra com força.
- Vai ajudá-lo, Smith – pediu Ariel, suspirando – ele ainda se mata.
- Ok. Mas levantem bem os cartazes.
Ariel e Lilith ergueram os cartazes que seguravam. Ariel levantou a tabuleta de madeira, que dizia “NÃO À NEGLIGÊNCIA CRIATIVA”. O cartaz em cartolina de Lilith dizia “CHEGA DE ABANDONO, QUEREMOS JUSTIÇA”.
O que se passaria, afinal, é um mistério. Ariel e Lilith olhavam em frente, determinadas, para que…
- Sabes ler, certo? – perguntou Ariel, sarcástica.
Olhava em frente, dirigindo-se ao vazio que a rodeava sem…
- É a ti que me dirijo – disse Ariel – A ti.
Ariel apontou o dedo em frente. Na minha direcção. Espera…
- Mais uma! – gritou Smith, ajudando Jack a arrancar o “D”
- Lê-lhe a declaração – pediu Lilith, levantando mais a tabuleta.
Ariel tirou um papel do bolso, desdobrou-o e declamou, com pompa e circunstância:
- Como personagens principais das aventuras de Smith e as Sereias, e portanto como figuras centrais nesta série, vimos por este meio mostrar o nosso desagrado em relação à atitude do nosso autor.
O Autor engoliu em seco.
- Tem-se vindo a verificar uma acentuada descida da qualidade dos episódios, que muitas vezes são publicados com gralhas, erros, incongruências, exageros, histórias mal contadas, personagens por desenvolver e disparates vários. Os leitores, se existirem, com certeza sentem e lamentam o sucedido. E nós, como personagens, sentimo-nos no dever de lutar pelas melhores condições dramáticas, narrativas e gramaticais possíveis para assim cumprirmos o nosso dever com honra e brio.
Esperem lá, eu…
- Sendo assim – continuou Ariel, levantando a voz para me interromper – Não nos resta outra opção senão tomar conta deste episódio e fazer uma greve.
- Diz greve com mais força – pediu Smith, do alto do post – No papel está GREVE.
- Seja – resmungou Ariel – uma GREVE.
Uma greve?
- Isto significa que hoje não há episódio – explicou Lilith, com os olhos azuis afiados – Azar.
- Além disso – continuou Ariel, virando o papel ao contrário - temos uma pequena lista de exigências.
Calma, calma. Vamos todos ter calma. Vocês aí. Smith, Jack. Parem de vandalizar o meu post, por favor.
- Sim, ele tem razão – apoiou-me Ariel, olhando para cima e agitando o braço – Desçam daí. E a propósito – olhou para mim outra vez – “apoiou-me” é um bocado exagerado.
Ok, perdoa-me. Estavas a dizer…?
- Ela estava a dizer que temos algumas exigências – declarou Smith, aproximando-se ao lado de Jack – Eu acho que “algumas” é mau. Propus que fossem muitas. Esmagadoras. Para te lixar mesmo.
- Mas esta greve não é um ultimato violento – interrompeu Ariel, que parecia muito mais controlada que as outras três personagens – Não me venhas com elogios baratos.
Pronto…
- As nossas exigências são simples. Primeiro, exigimos que haja um maior cuidado com a forma como as aventuras são escritas. Isso inclui a correcção dos erros e das gralhas.
Ok, isso posso fazer.
- Segundo, exigimos que a história avance de uma vez por todas, e que haja uma drástica mudança do tipo de aventura. Estamos fartos de contracenar no Palácio, no Quarto do Principado, no Salão Principal… E afinal que raio foi aquilo dos Atlantes aparecerem do nada? Queremos desenvolvimentos decentes!
Espera. Isso já está a ser preparado. Ainda no último episódio vocês entraram os quatro no Nautilus para…
- Sim, pois – disse Jack, em voz alta – Para encontrar a “minha Rose”. Sabes há quantos episódios já ouço isso? Sabes há quanto tempo me prometeste tal coisa?
- Calma, Jack… - pediu Lilith, abraçando-o ligeiramente.
Não acredito que as minhas próprias personagens estão a chantagear-me…
- Terceiro – continuou Ariel – O Jack exige que o próximo episódio se chame “Smith e as Sereias e o Jack”, para compensar o facto de ele, como personagem central do enredo, ser o único de nós os quatro que não é citado no título. E ele exige também que as piadas com o seu nome terminem imediatamente.
Como devo reagir a isto? É talvez a primeira vez na história da ficção que as personagens se erguem contra o autor que as…
- Oh, poupa-me a emotividade – resmungou Smith – Hoje não há episódio e acabou-se. E se as nossas exigências não forem respeitadas, haverá mais greves e com mais personagens. O Namor e o Poseidon queriam participar hoje, mas têm outros compromissos literários.
Vocês não me podem obrigar a nada. Na prática, sou eu quem vos escreve. Quem vos criou. Quem domina o vosso destino.
- Ah, essa é outra! – lembrou-se Lilith – Queremos saber imediatamente como vai terminar a história. Para sabermos no que estamos metidos. A Ariel nunca mais ganha barriga, a Rose nunca mais aparece, eu nunca mais sei se acabo com o Jack ou não…!
Não, está fora de questão. Isso é demais! Isto é um escândalo! Eu tenho o domínio total sobre esta história e não tenho de me vergar às vontades de…
- Então conta com mais disto – disse Ariel, levantando a tabuleta – Chega de injustiça!
- Chega de injustiça! – gritaram os quatro.
***
O porão do Nautilus estava cheio de tripulantes, todos eles correndo de um lado para o outro na azáfama de dia de partida. As máquinas estavam a funcionar, e um ronco metálico e gordo fazia tremer ligeiramente as paredes e o mobiliário. No centro do porão, Lilith, Ariel e Smith pegavam nas suas malas e preparavam-se para explorar o submarino.
- Oh, não acredito! – reclamou Ariel, largando o saco que tinha na mão e atirando-o com força para o chão – O gajo enfiou-nos à força na história!
- Isto é abuso de poder! – reclamou Lilith.
O porão ficou vazio.
O porão continuou vazio. O Autor tentou remediar. Lá estavam Lilith, Ariel, Smith.
E agora não estão outra vez.
E agora, vazio.
***
- Nós avisámos que não ia haver episódio – disse Liilith, com um sorriso malicioso.
- E não nos tentes forçar! – ameaçou Smith.
Levantaram outra vez os cartazes.
- Chega de injustiças! – gritaram todos.
Pronto. Seja. As vossas exigências serão cumpridas. Podemos voltar para o normal decorrer da história?
- Nem pensar – disse Ariel, pousando o cartaz – O número de páginas do episódio já se esgotou. Está na hora do…
Não! Não está nada! Vocês já atrasaram demasiado a série para eu me deixar levar mais uma vez pelas vossas…
FIM
Todas as Terças e Quartas só haverá episódios do Smith e as Sereias se o nosso abusador Autor respeitar as nossas exigências.
SMITH teve aqui 2010.
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