Previamente, em Smith e as Sereias, Jack barricou-se dentro do Nautilus. Cá fora ninguém sabe quem é o barricado; mas quando Smith vai à procura de Jack (que estava desaparecido) encontra o seu quarto vazio com as paredes cobertas por desenhos violentos, que mostram que quem os fez não devia estar bem da cabeça. Ups.
- Eh, tenho uma má notícia – disse Smith a custo, aproximando-se de Lilith e Ariel. Estavam, como toda a corte, de frente para o submarino Nautilus, à espera de perceberem melhor o que se passava com a situação de reféns.
- Encontraste o Jack? – perguntou Ariel.
- Mais ou menos – respondeu Smith.
- Então?
- Encontrei e não encontrei.
- Hoje estás particularmente coerente – respondeu Ariel.
- É ele.
- É ele quem?
- O Jack.
- Quem?
- O Jack.
- Não, quem é que é “ele”?
Smith apontou para o submarino. Lilith olhou para o submarino, para Smith, e depois para o submarino. E depois para Smith.
- Não pode ser…
***
Jack estava numa situação… bem, algo complicada. Primeiro, estava cansado. Segundo, estava com o braço dormente de segurar a espada pesadíssima. Terceiro, estava refém de uma situação de reféns que ele próprio criara. Num esplêndido momento de lucidez, percebeu que estava num sarilho maior do que quando o Titanic viera abaixo. Ao menos nesse caso tinha morrido (ainda que temporariamente) por uma boa causa. E agora morreria porque tentara encontrar a razão por que tinha morrido anteriormente. A ironia dava-lhe comichão; e o peso da espada também.
- Ok – disse ele – Ok… – repetiu. Teria de manter a calma e concentrar-se. Não podia distrair-se. Apesar do sono, da confusão, no nervosismo, não podia distrair-se sequer por um momen…
O tripulante com maus modos saltou-lhe em cima com uma rapidez invejável, como um urso a caçar um salmão indefeso. Jack soltou um gritou desesperado, fechou os olhos e caiu para trás, agitando a mão que segurava a espada como um pintor descontrolado a tentar pincelar uma tela de dois metros de um extremo ao outro. Quando voltou a abrir os olhos estava estendido sobre as costas, com o tripulante refém em cima de si e sangue nos braços.
- Não! – gritou alguém, desesperado. Jack olhou para cima. O tripulante que o tentara atacar estava de joelhos no chão, com um corte profundo na bochecha. Havia um jarro vermelho e quente que se multiplicava em gotinhas de sangue. O tripulante levou as mãos à cara e procurou tapar a ferida.
- Peço desculpa, eu… Eu… Foi sem querer, não queria de forma nenhuma… - dizia Jack, enquanto o tripulante cuspia sangue e palavrões.
- Uma toalha, rápido!
Todos os tripulantes se multiplicaram em tarefas, num bailado bem ensaiado. Pouco depois uma toalha branca foi aplicada à cara do tripulante ferido, e rapidamente ganhou uma cor vermelha. Ismael, o tripulante que segurava com o braço, estava a choramingar. Jack levantou-se. Era o sádico barricado mais arrependido de sempre.
- Eu peço imensa desculpa… Foi mesmo sem querer…
***
Poseidon e Namor estavam a conversar quando Lilith se aproximou, despenteada e visivelmente consternada.
- Pai, perdoe-me interrompê-lo, mas acho que posso ajudar – disse ela – Eu conheço o barricado. É o Jack.
- Qual Jack? – perguntou Poseidon.
- O rapaz louro que se parece com um actor indiano conhecido – disse o Capitão Nemo – Como se atreve ele a tomar conta do meu submarino sem me pedir autorização?
- Eu acho que posso ajudar, pai – implorou Lilith – Ele é meu amigo. Nós somos amigos. Só amigos. Eu sou amiga dele. Só amiga, apenas. Mesmo. Mas acho que posso ajudá-lo a sair dali em segurança.
- Ajudá-lo? – rosnou Capitão Nemo – A ele?
- Sim – respondeu Lilith – Fazê-lo sair dali para que ele não faça nenhum disparate.
***
O tripulante com maus modos, agora sem meia bochecha, levantou os braços e começou a gritar.
- Estás morto! Tu, sim! Vou esventrar-te! Nem imaginas as coisas que aprendi nas viagens que fiz! Eu mato-te com os dentes! Com os dentes!
- Por favor alguém o controle – pediu Jack, a medo.
- Eu não – resmungou um tripulante, de braços cruzados – Eu até concordo com ele.
- Vamos lá todos ter calma! – gritou outro tripulante, mais velho e com mais sangue frio – É óbvio que nos estamos a exceder! Tu! – apontou para o tripulante ferido – Põe a toalha na cara e acalma-te! Tu! – apontou para Jack – Acho melhor que penses em largar essa espada. Nós prometemos que não te partimos a cabeça ao pontapé. Mas tens de acabar com esta loucura.
- Se bem conheço o nosso Capitão – resmungou o tripulante de braços cruzados – Estará neste momento a chamar a polícia e entrará a qualquer momento um bando de profissionais armados para lidar com esse verme.
***
- Eu vou também – disse Smith – Somos amigos, posso ajudar a acalmá-lo.
- Talvez fosse melhor ficarmos por aqui e deixar a Lilith ir sozinha – reflectiu Ariel – Irmos em grupo pode dificultar a comunicação.
- Ainda assim, eu quero ir também. A Lilith pode dizer-lhe palavras bonitas e calmas, mas eu quero lá estar. Alguém terá de o agarrar se for preciso, e vocês sereias têm uns bracinhos demasiado fininhos para isso.
- Sendo assim vou também – disse Ariel – Pode estar alguém ferido.
- E eu. Afinal, é o meu submarino – lembrou o Capitão Nemo.
- Caramba – Lilith levou as mãos à testa – Já somos muitos.
- Posso ir também? – perguntou a sereia morena e gorda, que surge sempre de forma inconveniente onde não é chamada.
***
- Pelos mais altos deuses quânticos – disse o Rei Atlante, com o seu sotaque açoriano, depois de uma gargalhada – Isto é melhor do que aqueles filmes de Domino à tarde na TVI. Olha para aquilo!
“Aquilo” era a transmissão televisiva dos acontecimentos no Nautilus, projectada por um projector holográfico-tridimensional, na parede de titânio do salão de cinema do Palácio Atlante. Ao lado do Rei, o Profeta Salmão segurava o seu Evangelho. À volta do Rei, sete empregados desempenhavam funções imprescindíveis como mexer-lhe o café, dar-lhe pipocas à boca ou massajar-lhe os polegares.
- Eu sempre disse que a falta de religião levava à violência – resmungou o Profeta Salmão – Mas ninguém me ouviu. Agora aí têm. São as consequências de…
- Não vai começar com isso da homossexualidade outra vez, pois não? – resmungou o Rei Atlante.
O Profeta calou-se.
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