sexta-feira, 1 de julho de 2011

Samora 20

 

Gomez era coleccionador de pessoas. O que fazia na verdade era sair para a rua com a máquina fotográfica a tiracolo e fotografar uma pessoa por dia. Uma só e mais nenhuma. Andava por vezes durante horas, e só tirava uma fotografia. Com ela captava a sombra, a face, a silhueta ou a postura de uma pessoa, escolhida a dedo com todo o cuidado. Essa escolha não obedecia a critério algum, apenas o da sua intuição. Isto, todos os dias. É fazer as contas, e multiplicar trezentos e tal, para retirar uns feriados e umas férias e umas folgas voluntárias, pelos vinte e cinco anos de extenuante actividade como coleccionador. Foi nessa data do seu vigésimo quinto aniversário que Gomez abriu as portas da sua casa e me convidou para assistir à exposição dos retratos. Levei Samora, que se arrastou com poucos modos e considerável sacrifício.

- Que pavorosa construção – declarou quando chegámos à casa - Que assustadora gravata – murmurou depois de cumprimentar Gomez que nos recebeu à entrada - Que inacreditável acto de voyerismo – observava as fotografias de todos os anónimos – E repare na admirável incompetência técnica. Enquadramentos desequilibrados, total falta de sensibilidade para a plasticidade da fotografia, ignorância dos fundamentos mais básicos da exposição e focagem manuais. Este indivíduo apresenta-se como fotógrafo?

Esclareci que só o fazia nos seus tempos livres. Na verdade era historiador.

- Ainda pior! – exclamou Samora, mas imobilizou-se de frente a um retrato e empalideceu. Espreitei. Na fotografia reconheci Sara, enorme, ligeiramente inclinada para a frente numa paragem de autocarro, com os dedos alongados dentro dos fartos cabelos negros à medida que os penteava.

- Que vem a ser isto? – bufou Samora – Chame-me o Gomez imediatamente. Gomez! – gritou – Gomez!

Os outros convidados olharam em volta, incomodados. Gomez atravessou o corredor com um sorriso amarelo. A sua postura era a do anfitrião comedido mas amável. Samora, vermelho, limpava o suor com o lenço e gesticulava com a outra mão. Para o retrato, para Gomez. Algumas barbaridades. Procurei puxá-lo para a porta de saída, resistiu-me, declarei que o vinho lhe subira à cabeça e os convidados fingiram acreditar e regressaram aos retratos. Gomez, com o seu sorriso parvo, suando e ajeitando nervosamente o laço.

- Era Sara naquele retrato – rosnou-me já no exterior. Isso explicaria tudo.

Deduzi que para Samora a mera captação da imagem de Sara era uma aproximação desautorizada e demasiado íntima. Fixar assim a sua imagem na película era agarrá-la para depois a pôr a revelar e inserir no meio de todos os outros retratos. Mais do que a fotografia de Sara por si mesma, estava no seu contexto, misturada no meio de todas as outras pessoas, a principal fonte de irritação para Samora. Era como que uma ofensa; e pior ainda, vim a perceber mais tarde e por outras razões, uma forma de aproximar Sara, a Deusa, do resto dos mortais humanos, e confirmá-la como apenas mais uma mulher, aliás vulgaríssima quando comparada com todas as outras. Mais do que não admitir tamanha hipótese, Samora temia confrontar-se com ela.

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