domingo, 24 de julho de 2011

Samora 30

Gomez escolhia as pessoas intuitivamente. Dizia que usava os olhos da alma, porque a alma é a coisa imaterial que nos permite entrar nos outros e ver-lhes o que pensam. Com os olhos físicos tiramos informações genéricas, o que vestem, o que comem, como se mexem, para onde desviam a sua atenção, mas é com a alma que é feita a triagem e se separa o trigo do joio, o importante do desnecessário.
- Vou na rua e olho em frente e penso, quem será aquele? – contou-me um dia – Saiu do médico? Vai apanhar o metropolitano? Um táxi? Já reparaste que a rua não é lugar de estar, é só para passar? As pessoas chegam e vão-se rapidamente, e o meu olho da alma busca-as, encontra-as e eu tiro uma fotografia. Só uma. Como sair, saiu. Gosto de pensar que fico com uma parte de cada pessoa, porque também somos a nossa imagem e a imagem que atiramos ao mundo. Se não formos isso seremos outra coisa no nosso interior, que não dá para ver nem analisar e que por isso não serve para nada.
- Então e o olho da alma?
- É um instrumento de intuição. É aquilo que nos faz sentir as coisas como as sentimos. Quando vemos uma mulher bonita e temos certas vontades, ou quando vemos um homem num descapotável e sentimos inveja. Tudo vem da alma.
- A alma – resmungou Samora do outro lado da sala, interrompendo a conversa sem tirar os olhos de um volume sobre poesia medieval – é um programa informático biológico. A ele damos a importância que damos, e ao invés de o usarmos perdemos tempo em dissertações sobre como ligá-lo ao Universo e aos Outros com maiúscula e tudo o mais. Mas esquecemo-nos do essencial – apontou para uma das têmporas e olhou-nos com aquele seu desprezo muito particular que dedicava aos ingénuos – Somos matéria. É o que fazemos com ela que importa, e não o que ela faz connosco.

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