sábado, 2 de julho de 2011

Samora 21

- Lavoisier é quem o disse, não fui eu – disse Samora, observando a lápide de um amigo que morrera – Tudo se transforma, e a probabilidade de ingerir uma molécula que foi de Sócrates numa panqueca ou num copo de água é imensa. Sabia disso? Temática fascinante. Este velho – apontou para a lápide - preferiu, por excesso de zelo, a fornalha. Reduzido a cinzas, logo o símbolo do renascimento. O homem nem sequer era religioso! – uma das suas exclamações jocosas, profundamente sinceras; depois mais calmo – Mas amável, sempre amável. Quando ia a sua casa alimentava-me e bem, possuía terras e sabia tratar de bovinos. Carne tenríssima. Agora suponho que não haverá mais disso.
Olhou em volta, para o resto do cemitério, e notei-lhe algum asco na forma como inclinou o lábio inferior.
- Quando morrer fique já sabendo que desejo ser enterrado ao natural, como fariam com certeza os nossos mais remotos antepassados, sem líquidos nem seivas que me prolonguem uma juventude emprestada. Recuso-me a ser reduzido a cinzas, muito menos a constar num lugarejo destes em que se precisa de uma pedra rudíssima para relembrar os queridos. Desejo acima de tudo regressar à terra de onde vim, e ser devorado pelos vermes e pelas raízes das árvores. Assim o meu corpo regressará ao normal fluxo migratório que é o das moléculas, e tudo ficará bem.
- Comigo pelos vermes?
- Comido pelo mundo; não se esqueça que é aqui que vivemos, a alma se a tivermos pertence a outro lugar qualquer. É justo que se um deve continuar para qualquer lado o outro cá fique, assumidamente misturado com o resto das coisas.

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