quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Quem matou o Afonso?

Um menino com leucemia morreu, chamava-se Afonso e pelos vistos não resistiu às complicações de saúde depois de um transplante de medula óssea. No Facebook, a Associação Portuguesa Contra a Leucemia publicou uma mensagem comovente, e os comentários comovidos seguiram-se. Muitas pessoas queriam deixar uma última palavra em nome do Afonso, em forma de homenagem. Alguns dos comentários chamaram-me a atenção:



Pelo que sofreste, e pela ajuda que deste a todos, os que como tu precisavam de dadores, certamente que terás um lugar junto de DEUS.... os meus sinceros sentimentos a família.....FORÇA....


nestes momentos de dor parece k nada nos conforta,o vazio e uma imencidão do infinito...mas mesmo assim peço a Deus k console o coração destes pais,e da sua familia...só Deus tem essa capacidade...bjx

É por isto que eu às vezes penso que as pessoas religiosas não têm cérebro.

Não deixa de ser curioso que alguém diga coisas como estas quando uma criança pequena passa por um tremendo sofrimento e acaba por morrer, com o óbvio sofrimento que sobra para a família. Deus, aparentemente, não pensou nisto quando criou a leucemia. Muito menos todos os tipos de cancros, bactérias, vírus, tumores, tornados, e todo o tipo de coisas que, sem justificação, ceifam vidas e provocam sofrimento generalizado.

A culpa, no caso de os religiosos terem razão, é de Deus. Foi Deus quem matou o Afonso, com uma doença que não necessitava de existir. Mas Deus com certeza gostava muito do Afonso, e por isso matou-o logo cedinho para que ele possa ir "para um lugar junto de Deus"; como se, para a família, a ideia de o seu filho passar a eternidade ao lado do seu homicida fosse minimamente consoladora. Talvez seja, se nisso acreditarem.

Esta é a razão que me leva a não acreditar num Deus infinitamente benevolente. É, para mim, um verdadeiro desafio intelectual e emocional aceitar que uma criatura que rege todo o Universo, e é extremamente caridosa para com a Humanidade, possa infligir tanto sofrimento gratuito. É uma incongruência demasiado evidente para ser necessário uma justificação decente; a não ser que me consigam convencer, como tentou o sábio de Voltaire, que independentemente de todas as leucemias e mais alguma este é o melhor de todos os mundos possíveis. A meu ver é claro: se acreditam num Deus benevolente e olham esta situação com pena e sensação de impotência, parem para pensar no vosso próprio sentido de moral. E já que têm uma ligação em speed dial com Deus, aproveitem para lhe dizer que ele é um sádico.

Um comentador resumiu a coisa de forma brilhante:

Serás sempre o AFONSO, que me fazir abrir o FaceBook para ver a tua evolução. Serás sempre o AFONSO por quem rezei na esperança de teres uma vida aqui na Terra. O homem põe, e Deus dispõe, sempre ouvi esta frase, desde pequenina. E agora estás noutra forma de vida.... em paz e LUZ. SERÁS SEMPRE O AFONSO!!!!!!!!
.


Que fácil parece ser o funcionar do religioso. Deus dispõe. Porquê? Ora, é Deus, ele lá saberá. Encolhe-se os ombros e chora-se. Pobre Afonso, é uma injustiça! Pois é, com isso concordo.

4 comentários:

Luís disse...

Esse é o argumento simplista contra a religião :-) possivelmente nunca conheceste um padre inteligente...

Renato Rocha disse...

Simplista? Talvez. Mas não contra a religião, mas sim contra um Deus infinitamente benevolente. A única forma que um religioso tem de "sobreviver" a este argumento é concordar que um mundo com leucemia é melhor do que um mundo sem leucemia. Por outras palavras, que a leucemia é uma coisa boa porque foi criada de propósito por Deus.

O que diria um padre inteligente?

(Talvez: "Até tens razão")

Tiago Santos disse...

Olá Renato! tudo bem?
deixa-me dar-te a minha opinião,
o objectivo de Deus para cada uma das pessoas à face da terra é que eles aceitem Deus, sejam salvas por Ele e tenham um relacionamento com Ele. Para isso ele usa-nos a nós, pessoas que já foram salvas e que já têm este relacionamento com Ele. A principal mensagem que Ele nos deixou foi que fossemos por todo o mundo e espalhassemos esta mensagem de Amor.

"E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura. " Marcos 16:15

O problema surge quando nós nos focamos em outras coisas. De certeza que o desejo de Deus era que alguém fosse, curasse o rapaz e que este acontecimento pudesse mostrar este Amor...

"Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de graça dai."
Mateus 10:8

Mas quando ninguem age Deus não passa por cima e cura na mesma... Na minha opinião e do que eu conheço de Deus, Ele faz isto pois ele quer que nós ajamos, como filhos amados e mostremos isso por nós proprios, e também pq quer que os que o aceitam o amem de todo o coração, e não apenas pq sabem que ele existe e "siga pra bingo". Quer que conheçam o Amor que Ele tem por nós e como resposta a este Amor, decidam amá-lo de volta...
Isto é o que eu conheço de Deus...
Espero que ajude de alguma maneira.
Abração e temos de combinar aquele jantar com as "damas" =P

Renato Rocha disse...

Olá, Tiago! Tudo bem?

Parece-me que estás a dizer que Deus não "vai e cura" com um objectivo muito particular. Deus quer que, da nossa parte, haja uma acção definida, que demonstre que nós o aceitamos e amamos. Correcto?

O problema é que, em certos casos, como o que está em discussão, há vítimas não da inacção humana, mas sim de processos naturais e fora do nosso raio de acção. Doenças como o cancro, ou desastres naturais. Não há nada que nós, humanos, possamos fazer para curar algo que não sabemos curar, como é o caso da leucemia do Afonso. Aliás, o nosso conhecimento levou-nos até ao transplante de medula, que o Afonso obteve; mesmo assim, morreu de complicações de saúde obviamente fora do nosso raio de acção e, por isso, impossíveis de serem evitadas.

Isso significa que, se Deus espera de nós uma "acção" voluntária para lhe corresponder esse amor que ele por nós sente, deve ser fácil compreender que, para alguém que não tenha essa certeza nesse amor, a figura de Deus pareça aterrorizadora e homicida. Afinal, Deus é omnipotente, o que faz dele uma criatura capaz de criar um Universo onde este tipo de sofrimento, totalmente alheio à acção humana e impossível de ser impedido por nós, fosse impossível. Ainda assim, Deus criou este Universo, com estas características. Um universo onde crianças como o Afonso morrem de doenças que nos são quase ou totalmente impossíveis de evitar. E ainda assim, esse Deus deseja de nós uma resposta inequívoca de amor.

Não posso, não consigo e nem sei se quereria sentir amor por esse Deus. Afinal, porque razão sentiria algum tipo de carinho pelo criador do Universo quando ele, voluntariamente e totalmente capaz de avaliar as consequências da sua decisão (porque é omnisciente), cria um mundo onde tamanhas atrocidades acontecem todos os dias?

Segundo o teu comentário, quem sente esse amor e essa certeza em Deus "está cá" para ajudar os outros a encontrarem o mesmo caminho; e conheces-me o suficiente para saber que, apesar de ser ateu, estou sempre pronto a ouvir de qualquer pessoa ou religião um argumento que me possa fazer mudar de ideias. Se tiveres alguma ideia sobre como se resolve esta aparente contradição entre "Deus que nos ama profundamente e quer o nosso amor também" e "mundo criado por esse Deus em que miúdos de sete anos sofrem toda a vida para depois morrerem dolorosamente", sou todo ouvidos.

P.s.: Quanto ao jantar, a que dias podem?

Abraço!