Bateram
à porta e soube logo que era ela, a sacana. Tinha saído a chorar com a mala
ainda meio aberta, de cuequinhas cor de rosa a arrastarem-se ao vento para
dramatizar a arrumação apressada e uma fungadela para resumir, com o ranho
sorvido, aquelas emoções todas à flor da pele e que agora queria interiorizar.
Deixei-a ir; fiquei obstinadamente quieto e de olhos na janela enquanto ela se
vitimizada e enfiava a roupinha na mala. Ouvia-a chorar e suspirar banalidades,
quem sabe um pedido de desculpas todo muito sincero.
Começou com floreados:
Começou com floreados:
-
Entende de uma vez por todas que se o fiz foi sem querer. Não tinha controlo
sobre o meu próprio corpo, não sei o que me deu. Não estava lá; estava, mas não
estava.
Ao
cabo de umas horas entendeu com perspicácia que eu a ignorava à grande, sem
rancores e muito menos só para chamar a atenção. Ignorava-a porque já a
conhecia bem demais. Ignorava-a mesmo; pensava na vida, nos pombos, na
temperatura e na humidade, nas botas que tinha a secar na varanda. Nisto
avançou para a bruta simplicidade, de olhos húmidos e pregados nos meus, mãos
quase brancas da força com que agarravam:
- Eu
amo-te. Eu quero-te.
E
coisas assim. Ficara com a ideia, à conta de todas as cantiguinhas pop que
costumava ouvir alto demais, que a exteriorização das emoções mais complexas
poderia ser resumida numas sílabas apenas; e pior, conhecia-me mal ao ponto de
achar que me conseguia desviar com essas balelas.
Prossegui
com a minha cuidadosa observação: que ângulo descreveria a chuva ao cair sobre a
janela da cozinha? Procurei medi-lo com um transferidor mental e cheguei aos
trinta e poucos graus. Mais coisa menos coisa. Ainda a vi de soslaio: a tal mala
por fechar, a tal fungadela; já não tinha palavras nem argumentações, fungou
apenas para deixar ainda mais claro que tinha estado a azucrinar-me a cabeça
durante as últimas três horas. Bateu com a porta selvaticamente.
E
depois, silêncio.
Levantei-me
e fui à porta. Certifiquei-me que o elevador tinha descido mesmo. Parti para a
varanda. Lá em baixo, vi-a entrar num carro que arrancava.
Fui
à cozinha. Tirei uma colher de sopa da gaveta e o gelado do congelador. Fui até
à sala. Sentei-me de frente para a televisão e liguei-a, um pouco alto demais.
Chorei enquanto comia todo o gelado. Quando acabei, rapei o recipiente com a
língua e depositei-o sobre um monte de revistas ao meu lado. Desliguei a
televisão. Silêncio, outra vez. Limpei as lágrimas e o ranho com um lenço e
fui-me deitar.
Sonhei
com cenas de puríssima pornografia: ela deitada com um monte de homens
diferentes nas posições mais abjectas, fazendo contorcionismo e gemendo como um
animal. Acordei várias vezes e quando voltava a adormecer regressava sempre ao
mesmo sonho. Por volta das seis levantei-me de vez e fui dar uma caminhada.
A vida
arrastou-se desta maneira, comigo entre a negação e a luxúria: assim que num
momento de fraqueza sentia a sua falta pela casa ia ao jardim apanhar miúdas
com os olhos, observá-las com aquela intensidade toda que julgava fazer parte
integrante de um jogo ao qual nunca ganhara coisa nenhuma. Depois voltava a
casa e aguardava as horas seguintes. Até ao dia.
Bateram
à porta e soube logo que era ela, a sacana. Fui abrir a porta de chofre,
querendo assustá-la, e dei de caras com um tosquíssimo indiano, lingrinhas,
cabelo negríssimo penteado para o lado e aspecto geral de engenheiro
informático.
-
Boa tarde – disse-me ele.
-
Que deseja? – perguntei, desapontado. Aquele indiano ia sofrer injustamente com
as minhas frustrações. Melhor ele que eu próprio. Ia mastigá-lo.
-
Isto é bastante constrangedor, mas... – o indiano passou a mão pela testa
limpando um suor psicológico – eu vinha buscar umas coisas da Carla.
Umas
coisas da Carla! Foi o suficiente para projectar na minha cabeça as mais
aborrecidas cenas de sexo entre aquela mulher que em tempos apreciara e aquele
minúsculo exemplo do sexo masculino. Imaginava-o com a força de uma sardinha,
com a ganância sexual de um caracol, com uma magreza ossuda, desprovida dos
músculos com que segurar uma mulher. Fiz-me de parvo:
-
Umas coisas da Carla?
-
Sim – disse-me ele, e esperou – Posso entrar? Não demoro mais que cinco
minutos.
Dei-lhe
passagem. O indiano entrou para o hall e olhou em volta.
-
Bela casa.
-
Sente-se ali, por favor – indiquei-lhe uma cadeira. O indiano lá foi,
obediente, e soube que estava a lidar com um traste. Deixei-o sentar-se e
observei-lhe a postura: pernas quietas e coladas uma à outra, mãozinhas sobre
as rótulas, olhar atento. Só me restava urinar para cima dele.
-
Queres alguma coisa?
-
Agradeço, mas não. Vim só mesmo...
Interrompi-o:
- Um
minuto.
Desapareci
corredor fora, deixando-o de boca aberta. Fui ao quarto e reuni os dois sacos
de tralha que Carla esquecera: molduras com fotografias, roupa que entretanto
fora lavada, uns livros, tudo coisas que estiveram muito perto de desaparecer
pela conduta do lixo. Regressei à sala e depositei os sacos à frente do
indiano, para ver como reagia.
- É
tudo?
- É
tudo, é. Se quiseres ajudo-te a levar isso lá para baixo – ofereci-me, cordial.
-
Não é preciso.
-
Pois claro que não – fui à janela e espreitei como quem não quer a coisa: lá em
baixo um carro estava estacionado em segunda fila; um daqueles estacionamentos
à imbecil que não sabe o que é o civismo rodoviário. Seria com certeza obra de
Carla, de mãos no volante, provavelmente espreitando cá para cima a ver se me
apanhava, a mim ou ao pobre indiano que parecia tratar como seu criado.
- A
Carla sente-se bastante mal com tudo isto, e eu também – disse-me o indiano de
dentro da sala.
-
Quê?
-
Digo que a Carla se sente mal, e eu também.
- É
azia?
-
Azia? – surpreendeu-se ele – Não, não.
-
Queres uma água das pedras?
-
Não me referia a isso, expliquei-me mal.
Explicou-se
mal! Que absoluto estorvo. Vi-o quase pedir desculpas por estar a ser gozado
daquela maneira e recompôs-se sempre muito educado:
- É uma situação deveras constrangedora.
-
Para quem, para ti?
-
Sim. E para a Carla. Ela queria ter subido e falado consigo, mas não teve
coragem. Pediu-me que viesse. Espero que não haja problema.
-
Oh, problema nenhum. Eu compreendo absolutamente: ela ficou amedrontada com a
ideia de me voltar a ver.
-
Exactamente.
Fiquei
a olhar para ele como quem não acredita nos seus olhos.
-
Sabes – continuei, aproximando-me dele – gostariam muito de te dar algo a
beber.
- A
Carla está lá em baixo à minha espera, mas obrigado.
-
Ela pode esperar um pouco. Dizes que eu tinha as coisas dela espalhadas e ainda
as estive a arrumar, que achas?
Ele
encolheu os ombros como quem diz “Sim, sou um imbecil que não percebe estar a
ser usado para teu belo prazer”.
-
Cerveja?
-
Uma água fresca.
-
Uma água fresca – repeti eu, procurando, sem sucesso, imitar a mariquice. Fui à
cozinha, enchi um copo com água, abri uma cerveja e trouxe as bebidas para a
sala. Estendi-lhe o copo de água e fui sentar-me no sofá, de Sagres na mão.
- Felicidades
– ergui a cerveja. Ele levantou a água e deu um gole curto e snob.
-
Devo mesmo ir.
- Há
pouco disseste uma verdade.
-
Hum?
-
Que era uma situação deveras constrangedora.
-
Oh, sim.
- Tu
pareces-me ser um tipo porreiro.
- O
senhor também.
- És
novo, és bem falante.
Ele
olhou-me meio de lado, bebericando da água fresca.
-
Não te passou pela cabeça que me pudesse sentir ameaçado?
-
Ameaçado?
- A
minha ex-namorada, ou melhor, a minha namorada, que era isso que ela era na
altura, inicia uma relação que deduzo ser de carácter emocional e sexual com um
rapaz bem parecido como tu – e com isto fi-lo corar como um tomate – e eu
recebo, dias depois de o descobrir, a visita do mesmo tipo com quem ela me
traiu sabe-se lá em que circunstâncias, sabe-se lá se na minha própria casa e
na minha própria cama. Não achas que tenho razões para me sentir ameaçado?
O
pobre indiano queria esconder-se atrás de qualquer coisa.
-
Garanto-lhe que nada do que imagina aconteceu realmente...
-
Nunca foste para a cama com a Carla?
Ele
corou ainda mais violentamente.
- Não
me sinto nada confortável...
-
Isso é estranho – respondi-lhe, levando a Sagres à boca e deixando deslizar a
conversa para um silêncio constrangedor.
-
Por que seria estranho?
-
Ora – sorri-lhe; aquele sorriso de bocarra aberta, à portuguesa, que identifica
a ligação subconsciente entre dois homens que apreciam a mesma mulher na rua.
- A
Carla e eu... - parou – Não me sinto confortável para entrar em detalhes sobre
a minha relação com a Carla.
- A
tua “relação”? – exclamei eu. Ele tremeu. Havia qualquer coisa de ingénuo
naquele rapaz que quase me despertava pena. Caso não fosse ele o co-autor dos
chifres que ostentava, com certeza despertar-me-ia um sentimento protector,
quase paternal, que só dedico aos novatos mais inexperientes que encontro pela
vida. Não fossem aquelas circunstâncias, estar a atraí-lo para a boca do lobo,
quase sentiria pena do indiano; e se me visse a mim próprio retratado em filme
pensaria que era um verdadeiro explorador de mentes ingénuas. Mas naquele dia
não me sentia mal, sentia-me maravilhoso. Uma sensação de controlo absoluto consumia-me
desde que abrira a porta e me apercebera que tinha em casa o protagonista de
todos os filmes pornográficos que imaginara pelas madrugadas; e ao saber agora
que, ao invés de um musculado cavalheiro com sotaque e bronze encontrava um
promissor funcionário de call-center, passei de espectador de um filme de
terror para realizador de um western. O pistoleiro experiente depara-se com o
inocente cowboy que não sabe ter o revólver descarregado e as amarras do cavalo
por apertar.
- A
tua “relação”... – repeti – Conta-me mais sobre ela. Como se conheceram?
-
Não acho que seja...
Puxei-me
para a frente e pus os cotovelos em cima dos joelhos.
-
Deixa-me dizer-te o que já sei sobre ti.
O
indiano ganhou força de peito e alguma frieza.
-
Não sabe nada sobre mim.
-
Sei pois – contei pelos dedos - Sei que conheceste a minha ex-namorada há pouco
tempo. Sei que foi ela a seduzir-te a ti e não o contrário. Sei que foi ela que
te abordou, provavelmente pedindo-te ajuda para qualquer parvoíce que qualquer
mulher adulta seria perfeitamente capaz de fazer, como apertar os atacadores.
Sei que te vergaste perante o comprimento das suas pernas e, claro, claro,
perante a força da sua personalidade. Sei que ela te deixou a andar de perna
aberta durante umas horas depois dos vossos primeiros encontros, e sei que és
tu quem cozinha o jantar, e sei que já a viste ser observada e observar outros
tipos dez vezes mais capacitados do que tu em praticamente tudo, e sentes-te
portanto a lutar por um lugar na cadeia alimentar.
Através
dos olhos do indiano vi desabarem sete ou oito paredes, cada uma mais frágil
que a outra, até sobrar apenas um passarinho caído do ninho. Agarrou na água
fresca e bebeu-a de um trago.
- No
entanto, há coisas que não sei sobre ti, ou sobre vocês. E há coisas, oh,
muitas coisas que sei sobre a Carla. Percebes? – agitei entre nós um dedo
maroto, “tu e eu, eu e tu”.
O
indiano levantou-se, foi à janela, voltou a sentar-se.
-
Não sei bem o que quer saber...
-
Onde se conheceram?
-
Num ciber-café. Estava a terminar um trabalho para a faculdade quando a Carla
veio ter comigo e me pediu – o indiano engoliu em seco – me pediu para a ajudar
a encontrar a fivela dos sapatos, que se tinha desapertado.
- Ui
– varri aquilo com a mão, como nada fosse novidade. E não era; só queria que o
puto percebesse – Isso foi quando?
- Há
dois meses atrás.
-
Hum – tentei manter-me granito por fora, mas lá no interior apetecia-me
esmurrá-lo já. Com uma semana contava, quem sabe até um mês. Com dois meses,
nunca.
- Eu
não sabia que ela tinha namorado. Ela nunca me tinha contado – gemeu logo o
pobrezinho.
- Eu
soube logo – respondi, à homem.
-
Como?
- Soube – encolhi os ombros. Ele olhou-me com
veneração.
- O
retrato que faz da Carla, é...
- É,
é – acenei.
Ele
caiu para dentro de si próprio mas voltou a levantar-se:
- É
errado.
-
Ela é uma mulher especial – disse-lhe eu, como se com aquilo o elogiasse
também, como se lhe vendesse um carro descapotável.
-
Inteligente, carinhosa, romântica... E compreendo tudo isso, também eu senti
que havia nela um quê de mulher-aranha, mas agora que a conheço melhor e ela me
conhece a mim sinto que cresceu entre nós uma cumplicidade... – ganhava fôlego
mas interrompi-o, erguendo as mãos.
-
Vamos lá ter calma. Como deves imaginar, sei perfeitamente que tu sabes
perfeitamente que me estás a tentar mentir.
O
rapazola engoliu a palavra que dali vinha, não por ter sido apanhado em
flagrante mas por (senti-o) acreditar efectivamente naquilo que estava a dizer.
E que fazer se Carla estivesse, de facto, uma mulher transformada? Que dizer
sobre a possibilidade de a mulher que conheci se ter fartado do selvagem que
sei ser, e procurando (e encontrado) num imberbe um novo fôlego para uma nova
vida?
- A
Carla é a Mulher com letra maiúscula – continuei em voz baixa e grave - Os
olhos seguem-na quando passa na rua, parece coberta de merda num mundo de
moscas. No entanto, há coisas nela que a tornam humana, frágil e confiável.
O
indiano sentou-se na berma da cadeira, de costas muito direitas, um bom aluno
vergado perante a apoteótica lição de um mestre.
-
Ela teve um problema qualquer com o pai quando era pequena. Ficou pírulas,
deixou de confiar nos homens. Nada, digo-te, nada a deixou mais embasbacada
comigo quando lhe disse que não queria filhos. Que queria sexo, drogas e rock
and roll, mas nada de descendência – garanti-lhe eu, mentindo com toda a
eficácia.
O
indiano acenou afirmativamente com a cabeça, devagarinho, absorvendo cada
palavra. Segui uma lista bem definida de terríveis mentiras; nada preparado,
nada ensaiado. Relembro: desconhecia a existência de tão crédulo amante até há
alguns minutos atrás. Ainda assim, uma maldade qualquer fez-me debitar, com a
escorreita diligência de um homem que só pode estar a dizer a verdade, as
maiores fraudes que fui capaz de inventar naquele momento sobre a mulher que
possuíamos em comum. E terminei com algo irresistível mas arriscado, que sabia
ser incapaz de quebrar a ilusão tal era a forma como atingira o meu
interlocutor:
-
Além disso: chamussas. Nada a derrete como um jantar, sei lá, indiano, ou
nepalês. Fritos são um afrodisíaco para ela – rematei, relembrando todas as
noites de agonias e problemas de refluxos gástricos.
O
indiano assistiu à minha palestra sem me interromper. Levei o resto da Sagres à
boca, refrescando-a, e com isso anunciei o final da aula. Observei-o: havia
nele uma transformação qualquer, os seus olhos reflectiam uma promessa num
futuro cintilante que só os parvos sentem genuinamente. Levantou-se, agradeceu
a água, agarrou nos sacos e saiu, de olhos toldados e cabeça ausente. Permaneci
sentado sem me mexer durante muito tempo, até ouvir o som do elevador
desaparecer pelo prédio abaixo e, algures na rua, o carro estacionado em
segunda fila arrancar lenta e respeitosamente.
Dou
por mim a pensar muitas vezes na Carla e no seu indiano. Tenho uma curiosidade
mórbida qualquer. Por exemplo: quando era pequeno costumava atrair as miúdas de
quem gostava para junto de um poço. Dizia-lhes que vivia um monstro ali em baixo
e que se elas não acreditavam apostava um beijinho em como era verdade. Atraía
gordas e feias, e raras vezes alguma menina bonita. Bastava-me dar a volta até
uma segunda entrada que conhecia e, com um ferro, dar umas pancadas fortes num
tubo enferrujado. A estrutura tremia toda; e escondido atrás de um arbusto
podia ver a grade do poço a tremelicar, as meninas lá em cima a gritar que nem
parvinhas, assustadas, a dizer que iam cair e morrer afogadas, e que a culpa
era do monstro do poço, do monstro do poço! Depois ia para casa com o jogo
ganho. Porque faria eu aquilo às pobrezinhas? Seria para ganhar o beijo? Não
que valesse a pena, sabiam-me todos a mentira. Mas voltava lá de tempos a
tempos e repetia a proeza, se calhar na esperança de encontrar uma rapariga que
topasse a armadilha e me desse um estalo.
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