O Homem que Vomitava Estereótipos
acordou um dia sem qualquer percalço: sentia-se de tal maneira saudável que
expelir pessoas pela boca era a última das suas preocupações. Abriu a janela,
foi até à cozinha preparar um pequeno almoço nutritivo, entrou na casa de banho
para preparar o duche e vomitou um bispo.
O bispo, coberto de gosma
estomacal, levantou-se de um salto e benzeu-se de alto a baixo.
- Normalmente estou no outro
lado do exorcismo, a ver a coisa a trepar pelas paredes – murmurou ele – mas
hoje fui vomitado pelo demónio!
O Homem que Vomitava
Estereótipos também se assustou; se calhar mais do que o bispo. Tinha razões
para isso: ser cuspido por um tipo que se prepara para um duche é tão irreal
como cuspir um bispo. É ela por ela, convenhamos. Mas o bispo tomou a palidez
do Homem que Vomitava Estereótipos como sinal de Belzebu e meteu-se dentro da
banheira, mergulhando na água a cruz e com ela beatificando-a energeticamente.
Depois chapinhou como um menino, salpicando o Homem que Vomitava Estereótipos,
e aguardou pacientemente que ele começasse a deitar fumo.
Em vez disso o Homem que
Vomitava Estereótipos abriu a boca e deixou sair uma tia que Cascais, também
ela coberta de gosma. Levantou-se de um salto, toda muito possidónia, e
dirigiu-se ao outro lado da casa de banho.
- Mas que vem a ser isto? –
anasalou a tia de Cascais.
- É Belzebu – informou o bispo.
- Sô Bispo, que prazer voltar a
vê-lo!
- Oh, cara Pipita, como vai?
Conheciam-se; a tia de Cascais
ajudou o bispo a sair da banheira e o Homem que Vomitava Estereótipos,
entretanto esquecido, saiu a correr a caminho da sala. Pretendia ligar para a
polícia. A corrida foi interrompida por um arroto. O Homem que Vomitava
Estereótipos lá teve que abrir a boca e deixar deslizar uma funcionária das
Finanças, carregando impressos e carimbos.
– Olhe para isto, sujou-me as
petições todas de refluxo gástrico. Agora vou ter de efectuar um pedido formal
dirigido à sede para me mandarem mais cópias. Tem um telefone?
O Homem que Vomitava Estereótipos
ainda tentou escondê-lo mas a funcionária das Finanças abarbatou-se dele e
começou a marcar números. Entretanto o bispo e a tia de Cascais tinham
regressado da casa de banho e discutiam o colégio do Zé Maria a caminho da
cozinha.
- Tem canapés? – perguntou a
tia de Cascais, abrindo o frigorífico.
O Homem que Vomitava
Estereótipos deu por si a tentar responder e, em vez disso, a trazer cá para
fora um intelectual de esquerda.
- Este é um atentado às minhas
liberdades individuais – disse ele, erguendo-se cheio de cuspo – Exijo o fim do
Capital.
Enquanto o bispo enfardava um
resto de borrego, a tia de Cascais procurava gelo para um granizado, a
funcionária das Finanças efectuava uma encomenda de 100 cópias do impresso 45-B
e o intelectual de esquerda citava Marx, o Homem que Vomitava Estereótipos
correu até à porta e tentou sair sem ser visto; mas o vómito de um adepto de
uma equipa de segunda divisão, a mastigar tremoços, interrompeu-lhe as
intenções.
Empurrado pelo violento adepto,
que se dirigiu à cozinha em busca de cerveja, o Homem que Vomitava Estereótipos
reentrou em casa, foi sentar-se no sofá e produziu uma brasileira de mini saia
e sotaque nordestino.
- Auê! – disse ela,
animadíssima, aninhando-se junto ao Homem que a Vomitara segundos antes. Era
uma mulher precisada de carinho; mas o adepto da equipa de segunda divisão
aproximou-se e apalpou-a no rabo sem qualquer sensibilidade. O intelectual de
esquerda, gritando que as liberdades individuais da brasileira nordestina
tinham sido apalpadas, agrediu-o com uma cópia da obra completa de José
Saramago enquanto a tia de Cascais regressava à sala bebendo um copinho de
licor Beirão.
Entretanto o Homem que Vomitava
Estereótipos vomitou um cirurgião giraço e com barba de três dias, que salvou a
brasileira nordestina do confronto entre o punho do adepto e a cabeça oleada do
intelectual de esquerda e conduziu-a para o quarto. O bispo, de cruz na mão, soltava
apelos pela paz em latim; e o Homem que Vomitava Estereótipos, nervoso por ter
sido abandonado pela brasileira e confrontado com a possibilidade de levar
também ele um murro na cabeça, abriu a boca e vomitou um labrego de
Trás-os-Montes, um mafioso siciliano e um stripper vertido de bombeiro.
Em pleno caos lá conseguiu
afastar-se e foi até à casa de banho: a
banheira transbordava já de água, e talvez por isso o Homem que Vomitava
Estereótipos não tivesse outro remédio senão dirigir-se à torneira para a
fechar. Colocou mal o pé, escorregou na cruz previamente abandonada pelo bispo
e, em pleno voo, vomitou um informático apreciador de Star Trek e um rapper de
boina e correntes douradas.
- Yo – disse o rapper.
Desesperado, o Homem que
Vomitava Estereótipos soltou um grito. A porta da casa de banho abriu-se de
rompante: uma equipa de resgate aproximava-se, liderada pelo cirurgião giraço e
pela brasileira nordestina com o batom todo borrado.
- Não vejo outra hipótese senão
sacrificar a minha vida pessoal pela minha profissão e salvar este pobre homem
– declarou o cirurgião giraço, provocando o fascínio da brasileira nordestina,
da tia de Cascais e da funcionária das Finanças, que tinham chegado entretanto.
Atirando-se de joelhos ao chão,
o cirurgião despiu a camisola, revelando soberbos músculos abdominais, penteou para
trás o cabelo pantene e tapou o Homem que Vomitava Estereótipos com a sua
camisola, preparando-se para o reanimar com respiração boca a boca. O Homem que
Vomitava Estereótipos abriu a boca para gritar mas, em vez disso, expeliu um
terrorista de barbas e turbante, que iniciou uma complexa gritaria em árabe e
iniciou o artilhar de uma bomba-relógio.
Procurando impedir a desgraça,
o Homem que Vomitava Estereótipos seguiu o terrorista até à sala, que por sua
vez estava dividida num confronto sanguinário. De um lado, o mafioso siciliano
liderava o stripper vestido de bombeiro e o adepto da equipa da segunda divisão
contra as forças do intelectual de esquerda e do labrego de Trás-os-Montes; e o
bispo, perdido no meio das duas trincheiras, recitava São Mateus. O terrorista
correu para o meio da sala, agitando a bomba, o adepto da equipa da segunda
divisão fez uma piada qualquer com turbantes e o intelectual de esquerda, certo
de que tudo não passava de uma ofensa à identidade religiosa do pobre
terrorista, atirou com um candeeiro que acertou por engano na tia de Cascais
que por ali passava, e que por sua vez derrubou o terrorista com a sua mala
Louis Vuitton. A bomba-relógio, armadilhada, esvoaçou para trás do sofá, e o
Homem que Vomitava Estereótipos, mais nervoso que nunca, cuspiu um cientista de
bata, um político corrupto e um crítico de moda com óbvias tendências
homossexuais. O bispo, ofendido pela presença do crítico de moda e respectivas
cuecas de cabedal, iniciou uma acesa discussão com o intelectual de esquerda
sobre a natureza do Homem; e o mafioso siciliano, que até simpatizava com a tia
de Cascais agora falecida, desatou a dar tiros nas rótulas de quem encontrava
pelo caminho. Quem também contribuiu para a desgraça foi a funcionária das
Finanças que, habituada a lidar com confusões, gritava que todos deviam tirar
senha antes de se matarem mutuamente.
O Homem que Vomitava
Estereótipos decidiu-se pela fuga (não sem antes expelir um gótico com botas de
vinte cinco centímetros e um neo-nazi tatuado e careca): correu para a porta,
que entretanto ficara desimpedida, e preparava-se para fugir quando se sentiu
agarrado pela brasileira nordestina, choramingona. O cirurgião giraço estava
perdido em combate, já que sacrificara mais uma vez o momento de amor com a
sul-americana para ir restituir as rótulas às vítimas do mafioso siciliano.
Sentindo que no fundo tudo aquilo era da sua responsabilidade, o Homem que
Vomitava Estereótipos entrou cheio de bravura na zona de combate, encontrou e puxou
dali para fora o cirurgião giraço, que entretanto o reconheceu, agradeceu-lhe a
boa vontade e transportou ao colo dali para fora.
Já no hall de entrada do
prédio, o Homem que Vomitava Estereótipos ainda conseguiu ouvir a enorme
explosão da bomba-relógio, e pôde ver (do colinho do cirurgião giraço) pedaços
de turbante, páginas de Marx e um chapéu chamuscado de bombeiro a cair sobre os
carros estacionados à entrada. A brasileira nordestina começou a sambar, sempre
cheia de alegria de viver, e o cirurgião giraço pousou o Homem que Vomitava
Estereótipos no chão e disse:
- O trabalho é imprescindível,
e salvar vidas é a minha grande virtude; mas a família é igualmente importante.
Graças a ti aprendi esta enorme lição.
Como agradecimento retirou a
camisola, penteou para trás o cabelo pantene e operou logo ali o Homem que
Vomitava Estereótipos, arrancando-lhe com profissional dinamismo o estranho
tumor que lhe crescia na barriga e dentro do qual, em fase embrionária,
começara já a formar-se uma empregada de limpeza ucraniana; e finalmente, sob o
olhar aliviado do Homem que Nunca Mais Vomitou Estereótipos, o cirurgião giraço
tomou a brasileira nordestina pela mão, abandonou com ela o hall de entrada e
caminhou pela rua fora, enquanto sobre eles desciam resquícios queimados dos
impressos 45-B e a calorosa luz do sol posto.
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