O
carro fora moderno antes de ambos terem nascido e estava prestes a desfazer-se
há demasiado tempo. Ainda assim rondava aos tremeliques, a luz do óleo a piscar
indiscriminadamente, o velocímetro avariado, a porta que só fecha quando é atirada
como o portão da quinta. E é um orgulho: as pessoas param e vêem-no passar
com aquela curiosidade bacoca de quem
assiste a um desfile de Carnaval.
Pararam
numa gasolineira para abastecer e comprar chocolates. O pobre automóvel está
seco, se pudesse roncava. Felizmente há dinheiro na carteira, sobraram umas
notas amachucadas não se sabe bem de quê. Ela estaciona o carro e ele abre a
porta para esticar as pernas. Não descontrai os joelhos à cem quilómetros e
eles começam a dar de si: é um problema de infância. A medo, apoia-se na porta
que chia e levanta-se de pés em cima de uma poça de gasóleo. Saltita para o
lado, evitando-a, diz uma calinada, encosta-se de rabo contra o pára-choques e
observa o céu. Àquela hora e naquela zona vêem-se as estrelas todas que é uma
beleza: e há nele uma sonolência qualquer que o faz querer ali ficar, de pernas
esticadas por fim, a estudar a potencialidade de viagens espaciais e saltos no
tempo. Sempre fora dado a parvoíces.
-
Dá-me isso – diz ela.
- A
quê?
- A
coisa – ela agita a mão feita parva. Ele
dá por isso: está estafada, mal se aguenta de sono. Ele tira a carteira do
bolso de trás, curvada e quente.
-
Agora conduzo eu.
-
Vais, vais – diz ela, recebendo em pleno voo a carteira. Abre-a avidamente,
tira as notas.
-
Traz-me um chocolate.
- De
quais?
-
Quaisquer.
Ela
balbucia dali para fora, espreguiçando os braços, fletindo o rabiosque e os
pernões com aquelas agitações de felina. Ele olha-a: como pode tamanha
amplitude de mulher caber naquela carroça é um mistério das estrelas. Ele
ri-se: o sono mistura-se de súbito com uma luxúria preguiçosa, e dá com ele a
procurar pelo escuro que rodeia a gasolineira. Haverá um parque vazio, uma casa
de banho abandonada, um cantinho resguardado do frio? Ela congelava o rabo naquelas
condições, não podia ser. Pensou em dormir outra vez dentro do carro e sentiu a
necessidade de ter almofada. Esquecera-se dela, o parvalhão; ela também. Sem
almofada o seu pescoço não ia longe.
Tranca
o carro e atravessa o asfalto sem pressas, bocejando. O cafezinho tinha apenas
uma vendedora em forma de cabaça, comendo um bolo cheio de creme. Na TV, as
televendas. Um aspirador comprimia-se num movimento rápido e ergonómico,
prometendo as maravilhas de um conforto estéril e pouco espaço para arrumação. Cospe
vapores, lava cortinas, trinta e seis prestações mensais num valor que é o
cúmulo da maravilha, uma oportunidade única para o conforto do seu lar. Compre
já.
Perdido
a ver aquilo ouviu-a sair do WC e ainda a viu apanhar o cabelo. Que juba
domada, que promessa de cabelos perdidos na cama, que maravilhoso exemplo da
perfeita aplicação de um amaciador. Quatro dias fora de casa, sem banho, e
ainda tinha aquele cheiro. Começou a pensar que não era coisa de gaja, era
mesmo do cabelo. Ali não havia fórmulas ou frascos, apenas a magia normal das
mulheres.
Ela
aproximou-se dele e encostou-se, pregando-lhe um beijo enquanto acabava o rabo
de cavalo.
-
Sem mãos – disse ele.
Ela
largou o cabelo, levantou os bracinhos e beijou-o outra vez.
- O
meu chocolate?
Ela
afastou-se, deu uma voltinha, desceu as mãos pelo corpo como quem apresenta um
novo modelo de automóvel. Ele riu-se. Ela foi até à bancada da vendedora-cabaça
e pediu dois chocolates e vinte litros de gasolina. A vendedora-cabaça deslizou
com gordurosa placidez até à caixa registadora e marcou o pedido. Ele olhou-as:
que contraste! Aquele pedaço de futuro deslumbrante e, atrás de um balcão
ranhoso, uma tipa que provavelmente fora à escola, agradara aos pais e fizera
as coisas como deviam ser feitas.
Regressaram
os dois ao carro, de mão dada, pé ante pé, com a tranquilidade típica da
madrugada. Àquela hora não havia vivalma: os dois lados da autoestrada pareciam
tão vazios que a gasolineira era um oásis de luz branca. As coisas mais
aterrorizadoras poderiam acontecer naquele espaço e só na longínqua manhã é que
o resto do mundo se daria conta do sucedido.
Ele
olhou em volta, parou para reflectir sobre todas estas coisas e imaginar umas
outras. Ela parou alguns passos mais à frente, virou-se, o cabelo dela preso a
descrever um arco pequeno, atirando-se como a cauda de uma pantera para cima de
um tronco de árvore.
-
Que é?
Ao
longe, tão ao longe, o arrastar de um camião numa estrada secundária qualquer.
Lá dentro: a vendedora-cabaça a pensar se encomendava ou não o aspirador. Ele
olhava para o breu à procura da estrada.
-
Não sei por que lado entrámos.
-
Tás parvo? – ela apontou para a esquerda. Lá estava ela, a entrada.
Ele
olhou para lá sem se convencer.
-
Então e depois?
-
Depois o quê?
-
Vamos por ali? – ele apontou para a direita.
-
Que tem?
- Já
viste? A estrada está escura dos dois lados.
Ela
olhou para ele com uma impaciência imbecil, mastigando chocolate, a boca dela
feita numa dentadura castanha e pachorrenta.
-
Pões tu?
-
Quê?
- A
gasolina – disse ela, em voz alta demais – pões tu ou queres que faça tudo?
Ficou
a ver os números brancos a rodopiar com toda a energia e divertiu-se a
prolongar o momento: fazia força e os números multiplicavam-se; largava e a
soma sustinha-se, à espera dele. Podia pôr o número que quisesse. Estavam pagos
vinte euros, mas ele por alguma razão não os queria pôr todos. Quem disse?
Pagou por eles, correcto? Então ia usá-los como quisesse. Só para chatear. Só
para ser diferente, ou assim. Deixou correr até aos dezanove qualquer coisa,
escolheu os cêntimos ao calhas e voltou a arrumar a mangueira. Ficou com a mão
suja.
-
Isso é para quando? – perguntou ela, com o lábio sujo de chocolate.
-
Limpa a boca, sua porcalhona.
- Vê
como falas – respondeu logo. Não estava para brincar.
-
Tenho de limpar a mão, espera.
Foi
à procura de papel mas não havia. Meteu a cabeça dentro do carro, pela janela
aberta:
-
Tens toalhitas?
-
Toalhitas? – disse ela, com a boca cheia, um pedacinho de pneu nascendo na
barriga dela por causa da pressão do cinto posto. Dali a barriga parecia
flácida mas não era. Ele pelo menos pensava que não era.
-
Sim, toalhitas. Fiquei com a mão suja.
-
Porra, deixa lá estar isso.
Ele
agarrou no chocolate que era seu por direito, rasgou-lhe o invólucro e enfiou-o
na boca com pressa enquanto atravessava o espaço até ao café. Era grande, mal
lhe cabia dentro da boca mas forçou-o. Mastigou, fez dançar o maxilar, abriu-o
muito para reajustar o corpo estranho, deixou-se salivar para cima dos pedaços
que começavam a derreter e engoliu-os num trago bruto. Entrara na casa de boca
suja e com os últimos pedaços de amêndoas presos nos dentes mas continuava com
uma necessidade parva de lavar as mãos. Foi de saboneteira em saboneteira até
encontrar uma cheia. Serviu-se sem cidadania. Esfregou as mãos uma à outra e
sentiu-se um assassino que tenta tirar sangue das mãos. Abriu a torneira,
salpicou-se todo, ainda tinha o sabor a caramelo achocolatado na boca e já
limpava as mãos molhadas às calças com infantil despreocupação.
Despediu-se
com um aceno da vendedora-cabaça, que o mirou com um entusiasmo cadavérico.
Ainda pensou eu dar-lhe a prenda de contar o seu segredo, dizer “Vamos a fugir
e é pra não voltar”, trazer àquela pobre um pedacinho de transgressão para não
ter de passar mais uma madrugada a pensar nas carpetes limpas. Disse apenas:
-
Boa noite.
E
saiu porta fora para a noite, com as mãos geladas por estarem molhadas e a
namorada no lugar do passageiro do carro, de braços cruzados, preparando-se
para o estilhaçar com aquele gozo idiota até ganhar sono algures lá para a
frente. Talvez ela adormecesse mesmo e
ele se enganasse no caminho sem querer, e desse por si a regressar à cidade.
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