segunda-feira, 14 de maio de 2012

A estrada


O carro fora moderno antes de ambos terem nascido e estava prestes a desfazer-se há demasiado tempo. Ainda assim rondava aos tremeliques, a luz do óleo a piscar indiscriminadamente, o velocímetro avariado, a porta que só fecha quando é atirada como o portão da quinta. E é um orgulho: as pessoas param e vêem-no passar com  aquela curiosidade bacoca de quem assiste a um desfile de Carnaval.


Pararam numa gasolineira para abastecer e comprar chocolates. O pobre automóvel está seco, se pudesse roncava. Felizmente há dinheiro na carteira, sobraram umas notas amachucadas não se sabe bem de quê. Ela estaciona o carro e ele abre a porta para esticar as pernas. Não descontrai os joelhos à cem quilómetros e eles começam a dar de si: é um problema de infância. A medo, apoia-se na porta que chia e levanta-se de pés em cima de uma poça de gasóleo. Saltita para o lado, evitando-a, diz uma calinada, encosta-se de rabo contra o pára-choques e observa o céu. Àquela hora e naquela zona vêem-se as estrelas todas que é uma beleza: e há nele uma sonolência qualquer que o faz querer ali ficar, de pernas esticadas por fim, a estudar a potencialidade de viagens espaciais e saltos no tempo. Sempre fora dado a parvoíces.

- Dá-me isso – diz ela.

- A quê?

- A coisa – ela agita a mão feita parva.  Ele dá por isso: está estafada, mal se aguenta de sono. Ele tira a carteira do bolso de trás, curvada e quente.

- Agora conduzo eu.

- Vais, vais – diz ela, recebendo em pleno voo a carteira. Abre-a avidamente, tira as notas.

- Traz-me um chocolate.

- De quais?

- Quaisquer.

Ela balbucia dali para fora, espreguiçando os braços, fletindo o rabiosque e os pernões com aquelas agitações de felina. Ele olha-a: como pode tamanha amplitude de mulher caber naquela carroça é um mistério das estrelas. Ele ri-se: o sono mistura-se de súbito com uma luxúria preguiçosa, e dá com ele a procurar pelo escuro que rodeia a gasolineira. Haverá um parque vazio, uma casa de banho abandonada, um cantinho resguardado do frio? Ela congelava o rabo naquelas condições, não podia ser. Pensou em dormir outra vez dentro do carro e sentiu a necessidade de ter almofada. Esquecera-se dela, o parvalhão; ela também. Sem almofada o seu pescoço não ia longe.

Tranca o carro e atravessa o asfalto sem pressas, bocejando. O cafezinho tinha apenas uma vendedora em forma de cabaça, comendo um bolo cheio de creme. Na TV, as televendas. Um aspirador comprimia-se num movimento rápido e ergonómico, prometendo as maravilhas de um conforto estéril e pouco espaço para arrumação. Cospe vapores, lava cortinas, trinta e seis prestações mensais num valor que é o cúmulo da maravilha, uma oportunidade única para o conforto do seu lar. Compre já.

Perdido a ver aquilo ouviu-a sair do WC e ainda a viu apanhar o cabelo. Que juba domada, que promessa de cabelos perdidos na cama, que maravilhoso exemplo da perfeita aplicação de um amaciador. Quatro dias fora de casa, sem banho, e ainda tinha aquele cheiro. Começou a pensar que não era coisa de gaja, era mesmo do cabelo. Ali não havia fórmulas ou frascos, apenas a magia normal das mulheres.

Ela aproximou-se dele e encostou-se, pregando-lhe um beijo enquanto acabava o rabo de cavalo.

- Sem mãos – disse ele.

Ela largou o cabelo, levantou os bracinhos e beijou-o outra vez.

- O meu chocolate?

Ela afastou-se, deu uma voltinha, desceu as mãos pelo corpo como quem apresenta um novo modelo de automóvel. Ele riu-se. Ela foi até à bancada da vendedora-cabaça e pediu dois chocolates e vinte litros de gasolina. A vendedora-cabaça deslizou com gordurosa placidez até à caixa registadora e marcou o pedido. Ele olhou-as: que contraste! Aquele pedaço de futuro deslumbrante e, atrás de um balcão ranhoso, uma tipa que provavelmente fora à escola, agradara aos pais e fizera as coisas como deviam ser feitas.

Regressaram os dois ao carro, de mão dada, pé ante pé, com a tranquilidade típica da madrugada. Àquela hora não havia vivalma: os dois lados da autoestrada pareciam tão vazios que a gasolineira era um oásis de luz branca. As coisas mais aterrorizadoras poderiam acontecer naquele espaço e só na longínqua manhã é que o resto do mundo se daria conta do sucedido.

Ele olhou em volta, parou para reflectir sobre todas estas coisas e imaginar umas outras. Ela parou alguns passos mais à frente, virou-se, o cabelo dela preso a descrever um arco pequeno, atirando-se como a cauda de uma pantera para cima de um tronco de árvore.

- Que é?

Ao longe, tão ao longe, o arrastar de um camião numa estrada secundária qualquer. Lá dentro: a vendedora-cabaça a pensar se encomendava ou não o aspirador. Ele olhava para o breu à procura da estrada.

- Não sei por que lado entrámos.

- Tás parvo? – ela apontou para a esquerda. Lá estava ela, a entrada.

Ele olhou para lá sem se convencer.

- Então e depois?

- Depois o quê?

- Vamos por ali? – ele apontou para a direita.

- Que tem?

- Já viste? A estrada está escura dos dois lados.

Ela olhou para ele com uma impaciência imbecil, mastigando chocolate, a boca dela feita numa dentadura castanha e pachorrenta.

- Pões tu?

- Quê?

- A gasolina – disse ela, em voz alta demais – pões tu ou queres que faça tudo?

Ficou a ver os números brancos a rodopiar com toda a energia e divertiu-se a prolongar o momento: fazia força e os números multiplicavam-se; largava e a soma sustinha-se, à espera dele. Podia pôr o número que quisesse. Estavam pagos vinte euros, mas ele por alguma razão não os queria pôr todos. Quem disse? Pagou por eles, correcto? Então ia usá-los como quisesse. Só para chatear. Só para ser diferente, ou assim. Deixou correr até aos dezanove qualquer coisa, escolheu os cêntimos ao calhas e voltou a arrumar a mangueira. Ficou com a mão suja.

- Isso é para quando? – perguntou ela, com o lábio sujo de chocolate.

- Limpa a boca, sua porcalhona.

- Vê como falas – respondeu logo. Não estava para brincar.

- Tenho de limpar a mão, espera.

Foi à procura de papel mas não havia. Meteu a cabeça dentro do carro, pela janela aberta:

- Tens toalhitas?

- Toalhitas? – disse ela, com a boca cheia, um pedacinho de pneu nascendo na barriga dela por causa da pressão do cinto posto. Dali a barriga parecia flácida mas não era. Ele pelo menos pensava que não era.

- Sim, toalhitas. Fiquei com a mão suja.

- Porra, deixa lá estar isso.

Ele agarrou no chocolate que era seu por direito, rasgou-lhe o invólucro e enfiou-o na boca com pressa enquanto atravessava o espaço até ao café. Era grande, mal lhe cabia dentro da boca mas forçou-o. Mastigou, fez dançar o maxilar, abriu-o muito para reajustar o corpo estranho, deixou-se salivar para cima dos pedaços que começavam a derreter e engoliu-os num trago bruto. Entrara na casa de boca suja e com os últimos pedaços de amêndoas presos nos dentes mas continuava com uma necessidade parva de lavar as mãos. Foi de saboneteira em saboneteira até encontrar uma cheia. Serviu-se sem cidadania. Esfregou as mãos uma à outra e sentiu-se um assassino que tenta tirar sangue das mãos. Abriu a torneira, salpicou-se todo, ainda tinha o sabor a caramelo achocolatado na boca e já limpava as mãos molhadas às calças com infantil despreocupação.

Despediu-se com um aceno da vendedora-cabaça, que o mirou com um entusiasmo cadavérico. Ainda pensou eu dar-lhe a prenda de contar o seu segredo, dizer “Vamos a fugir e é pra não voltar”, trazer àquela pobre um pedacinho de transgressão para não ter de passar mais uma madrugada a pensar nas carpetes limpas. Disse apenas:

- Boa noite.

E saiu porta fora para a noite, com as mãos geladas por estarem molhadas e a namorada no lugar do passageiro do carro, de braços cruzados, preparando-se para o estilhaçar com aquele gozo idiota até ganhar sono algures lá para a frente. Talvez ela  adormecesse mesmo e ele se enganasse no caminho sem querer, e desse por si a regressar à cidade.  

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