sábado, 26 de maio de 2012

Associação Portuguesa de Pessoas Indignadas


O Trajectória Aleatória está solidário com os tempos de crise. Nunca houve tanta gente indignada como nos dias que correm; e, acima de tudo, nunca a indignação em massa permitiu tantas mudanças na sociedade. Talvez por isso seja importante falar com Calisto Pires, Presidente da Associação Portuguesa de Pessoas Indignadas.



Boa tarde, Sr. Pires. Talvez fosse interessante começarmos pelo funcionamento da sua Associação.

Primeiro que tudo deixe-me dizer o quanto estou indignado com a forma como se referiu a mim como “Sr. Pires” e não pelo meu nome completo. Além disso, está a desejar-me boa tarde quando na verdade já vai para as oito da noite.

Peço desculpa, não sabia que estas coisas o iriam ofender.

Bem, você é que pediu que lhe explicasse como funciona a Associação.

Não entendo...

O nosso trabalho é mesmo este: ficar indignado com todas as coisas em relação às quais é possível ficar indignado. É só entrarem em contacto connosco, descreverem-nos a situação escandalosa e enviamos logo agentes bem indignados para o local. Pode ser uma manifestação, um grupo no facebook, uma bancada de deputados... Trabalhamos em qualquer terreno e sob qualquer circunstância desde que facilmente indignável.

E têm procura?

Se temos! Você não imagina a quantidade de coisas que me indignam neste momento!

Pode dar alguns exemplos?

Olhe, neste momento estou indignado com o facto de os passes sociais e os cartões sete colinas não passarem bem nas entradas do metro. Uma pessoa fica ali e esfrega, esfrega, esfrega o bilhetinho no coiso mas aquilo não abre.

Não me parece uma coisa de importância para estar assim indignado...

Não lhe parece porque você anda de carro, o que também me indigna. Sabe o trânsito que há em Lisboa? E a poluição que isso faz?

Portanto, a sua Associação tem também preocupações ambientais.

Essa é outra: você já viu a quantidade de gente que não se cala com o ambiente? E as verdadeiras causas? Está tudo a salvar árvores quando anda tanta gente a passar frio?

Explique-nos um pouco como nasceu a sua Associação.

Ora bem: isto começou tudo num dia em que eu me indignei por não haver suficiente gente indignada com as mesmas coisas que eu. Um primo tinha uma loja de artigos orientais, vendia chamussas e daqueles gatinhos que agitam o punho de cima para baixo, enfim, aquilo era um verdadeiro centro comercial. Ora, quando os chineses chegaram à nossa terra estragaram-lhe o negócio. O meu primo ficou falido e eu é que tive de ficar a pagar uma encomenda de Virgens Marias com termómetro fluorescente. Isto indignou-me deveras, mas toda a gente estava demasiado ocupada a fazer as compras de Natal no chinês para se indignar comigo. Então a minha mulher disse-me “Ouve lá, por que é que não pagas às pessoas para se indignarem contigo? Hoje em dia faz-se tudo por dinheiro”. E eu respondi “Sim senhor, é uma boa ideia, aproveita-se e dá-se-lhes de brinde uma Virgem Maria com termómetro fluorescente e o Carlos António pode reaver o seu quarto”. Pus a aldeia toda indignada que foi uma beleza, foi tudo recambiado com Virgens Marias com termómetro e os chineses fecharam dali a uns dias. Foi aí que compreendi o poder da indignação.

Portanto, tudo começou como iniciativa individual

Sim, mas agora estamos espalhados pelo continente e Açores. Temos mais de vinte e duas sucursais e estamos a pensar expandir-nos para a América Latina. Não vamos é para a China, que eles roubam-nos a ideia e não tarda andam por aí indignados chineses que nem se sabem indignar em português. Mas como é mais barato...

Mas como funciona isso de ser agente indignado?

Olhe, todos os nossos agentes recebem um intensivo curso de formação de pelo menos vinte, vinte cinco minutos. Durante essa extenuante experiência de indignação, são-lhes dadas ferramentas imprescindíveis para que a sua indignação seja realista e sentida.

Como se processa isso, então?

A pessoa primeiro seleciona a situação em relação à qual se quer indignar. Olhe, por exemplo, merd, quer dizer, cocó de cães. Se eu quero indignar-me com os cocós de cães, tenho de pensar na última vez que pisei cocó de cães.

Um bocado como o sistema de Stanislavski

Não sei que eu não gosto de ficção científica. Pronto, mas depois o agente indignado usa várias estratégias, nomeadamente as frases chavão.

Quais são?

“É o país que temos”, “Onde já vai Abril” e “Isto realmente”. Mas é preciso ter a entoação.

Como assim?

Ora, para se indignar à portuguesa um agente indignado tem de falar muito alto e armar balbúrdia. Além disso, tem de cruzar os braços e andar de um lado para o outro a olhar para muitas coisas ao mesmo tempo mas nunca para a pessoa ou coisa em relação à qual está indignada. Não chega murmurar ou apenas sugerir que “Isto realmente”; o agente tem de falar alto como uma verdadeira peixeira. Só para ter uma ideia, os nossos agentes vão estagiar ao Bulhão ou à repartição das Finanças do Areeiro em dia de maior tráfego para captarem a verdadeira entoação pretendida.

Qualquer pessoa pode ser agente de indignação?

Isso é que era bom. Não, não, e devo dizer que essa sugestão quase me indigna. Não, a pessoa é preciso estar pré-disposta para se indignar. No outro dia apareceu-me um rapaz novo todo muito zen e não sei quê, tinha um pivete a incenso, e disse-me que era budista e que fazia meditação. Mandei-o logo ir dar uma curva, ele ficou indignado e disse “Vê, como estou indignado?”, e eu respondi “Um verdadeiro indignado não diz que está indignado; ele age indignadamente”. Foi uma saída que o deixou embasbacado e a mim também, que não me sabia tão letrado. Até mandei imprimir isto num poster para pôr lá na Associação.

E que preços pratica?

Olhe, depende muito. Se quiser só um indignado para fazer escarcéu numas Finanças ou num restaurante, a coisa fica baratinha. Pode escolher entre os vários tipos de agente: a velhota gorda de buço, a tia que se acha superior a todos, a cinquentona de classe alta, o brejeiro com inclinações violentas... Agora, se está à procura de gente para encher uma manifestação, por exemplo, tem de somar à mão de obra os cartazes, os megafones e as rimas foleiras. Temos um catálogo maravilhoso, olhe, olhe: “Não sei quê, unidos, jamais serão vencidos!” Essa fui eu que inventei, toda a gente a usa sem me pagar direitos de autor e isso por acaso é algo com o qual me devia indignar um dia destes. Depois há as variações, por exemplo: “Os funcionários da secção da charcutaria do Pingo Doce, unidos, já mais serão vencidos!”

É personalizável, portanto

Isso não sei, mas que dá para escolher um ao seu gosto dá.

Bem, penso que é tudo.

Quer uma Virgem Maria com termómetro fluorescente?

Não, obrigado.

É dado, homem, aceite lá.

Não quero, mas obrigado.

E recusa-me um presente? Olhe, fiquei indignado com a sua má educação. 

Sem comentários: