O Trajectória Aleatória
está solidário com os tempos de crise. Nunca houve tanta gente indignada como
nos dias que correm; e, acima de tudo, nunca a indignação em massa permitiu
tantas mudanças na sociedade. Talvez por isso seja importante falar com Calisto
Pires, Presidente da Associação Portuguesa de Pessoas Indignadas.
Boa tarde, Sr. Pires. Talvez fosse interessante
começarmos pelo funcionamento da sua Associação.
Primeiro que tudo
deixe-me dizer o quanto estou indignado com a forma como se referiu a mim como
“Sr. Pires” e não pelo meu nome completo. Além disso, está a desejar-me boa
tarde quando na verdade já vai para as oito da noite.
Peço desculpa, não sabia que estas coisas o iriam
ofender.
Bem, você é que pediu que
lhe explicasse como funciona a Associação.
Não entendo...
O nosso trabalho é mesmo
este: ficar indignado com todas as coisas em relação às quais é possível ficar
indignado. É só entrarem em contacto connosco, descreverem-nos a situação
escandalosa e enviamos logo agentes bem indignados para o local. Pode ser uma
manifestação, um grupo no facebook, uma bancada de deputados... Trabalhamos em
qualquer terreno e sob qualquer circunstância desde que facilmente indignável.
E têm procura?
Se temos! Você não
imagina a quantidade de coisas que me indignam neste momento!
Pode dar alguns exemplos?
Olhe, neste momento
estou indignado com o facto de os passes sociais e os cartões sete colinas não
passarem bem nas entradas do metro. Uma pessoa fica ali e esfrega, esfrega,
esfrega o bilhetinho no coiso mas aquilo não abre.
Não me parece uma coisa de importância para estar
assim indignado...
Não lhe parece porque
você anda de carro, o que também me indigna. Sabe o trânsito que há em Lisboa?
E a poluição que isso faz?
Portanto, a sua Associação tem também preocupações
ambientais.
Essa é outra: você já
viu a quantidade de gente que não se cala com o ambiente? E as verdadeiras
causas? Está tudo a salvar árvores quando anda tanta gente a passar frio?
Explique-nos um pouco como nasceu a sua Associação.
Ora bem: isto começou
tudo num dia em que eu me indignei por não haver suficiente gente indignada com
as mesmas coisas que eu. Um primo tinha uma loja de artigos orientais, vendia
chamussas e daqueles gatinhos que agitam o punho de cima para baixo, enfim,
aquilo era um verdadeiro centro comercial. Ora, quando os chineses chegaram à
nossa terra estragaram-lhe o negócio. O meu primo ficou falido e eu é que tive
de ficar a pagar uma encomenda de Virgens Marias com termómetro fluorescente.
Isto indignou-me deveras, mas toda a gente estava demasiado ocupada a fazer as
compras de Natal no chinês para se indignar comigo. Então a minha mulher
disse-me “Ouve lá, por que é que não pagas às pessoas para se indignarem
contigo? Hoje em dia faz-se tudo por dinheiro”. E eu respondi “Sim senhor, é
uma boa ideia, aproveita-se e dá-se-lhes de brinde uma Virgem Maria com termómetro
fluorescente e o Carlos António pode reaver o seu quarto”. Pus a aldeia toda
indignada que foi uma beleza, foi tudo recambiado com Virgens Marias com
termómetro e os chineses fecharam dali a uns dias. Foi aí que compreendi o
poder da indignação.
Portanto, tudo começou como iniciativa individual
Sim, mas agora estamos
espalhados pelo continente e Açores. Temos mais de vinte e duas sucursais e
estamos a pensar expandir-nos para a América Latina. Não vamos é para a China,
que eles roubam-nos a ideia e não tarda andam por aí indignados chineses que
nem se sabem indignar em português. Mas como é mais barato...
Mas como funciona isso de ser agente indignado?
Olhe, todos os nossos
agentes recebem um intensivo curso de formação de pelo menos vinte, vinte cinco
minutos. Durante essa extenuante experiência de indignação, são-lhes dadas
ferramentas imprescindíveis para que a sua indignação seja realista e sentida.
Como se processa isso, então?
A pessoa primeiro
seleciona a situação em relação à qual se quer indignar. Olhe, por exemplo,
merd, quer dizer, cocó de cães. Se eu quero indignar-me com os cocós de cães,
tenho de pensar na última vez que pisei cocó de cães.
Um bocado como o sistema de Stanislavski
Não sei que eu não gosto
de ficção científica. Pronto, mas depois o agente indignado usa várias
estratégias, nomeadamente as frases chavão.
Quais são?
“É o país que temos”,
“Onde já vai Abril” e “Isto realmente”. Mas é preciso ter a entoação.
Como assim?
Ora, para se indignar à
portuguesa um agente indignado tem de falar muito alto e armar balbúrdia. Além
disso, tem de cruzar os braços e andar de um lado para o outro a olhar para
muitas coisas ao mesmo tempo mas nunca para a pessoa ou coisa em relação à qual
está indignada. Não chega murmurar ou apenas sugerir que “Isto realmente”; o
agente tem de falar alto como uma verdadeira peixeira. Só para ter uma ideia,
os nossos agentes vão estagiar ao Bulhão ou à repartição das Finanças do
Areeiro em dia de maior tráfego para captarem a verdadeira entoação pretendida.
Qualquer pessoa pode ser agente de indignação?
Isso é que era bom. Não,
não, e devo dizer que essa sugestão quase me indigna. Não, a pessoa é preciso
estar pré-disposta para se indignar. No outro dia apareceu-me um rapaz novo
todo muito zen e não sei quê, tinha um pivete a incenso, e disse-me que era
budista e que fazia meditação. Mandei-o logo ir dar uma curva, ele ficou
indignado e disse “Vê, como estou indignado?”, e eu respondi “Um verdadeiro
indignado não diz que está indignado; ele age indignadamente”. Foi uma saída
que o deixou embasbacado e a mim também, que não me sabia tão letrado. Até
mandei imprimir isto num poster para pôr lá na Associação.
E que preços pratica?
Olhe, depende muito. Se
quiser só um indignado para fazer escarcéu numas Finanças ou num restaurante, a
coisa fica baratinha. Pode escolher entre os vários tipos de agente: a velhota
gorda de buço, a tia que se acha superior a todos, a cinquentona de classe alta,
o brejeiro com inclinações violentas... Agora, se está à procura de gente para
encher uma manifestação, por exemplo, tem de somar à mão de obra os cartazes,
os megafones e as rimas foleiras. Temos um catálogo maravilhoso, olhe, olhe: “Não
sei quê, unidos, jamais serão vencidos!” Essa fui eu que inventei, toda a gente
a usa sem me pagar direitos de autor e isso por acaso é algo com o qual me
devia indignar um dia destes. Depois há as variações, por exemplo: “Os
funcionários da secção da charcutaria do Pingo Doce, unidos, já mais serão
vencidos!”
É personalizável, portanto
Isso não sei, mas que dá
para escolher um ao seu gosto dá.
Bem, penso que é tudo.
Quer uma Virgem Maria
com termómetro fluorescente?
Não, obrigado.
É dado, homem, aceite
lá.
Não quero, mas obrigado.
E recusa-me um presente?
Olhe, fiquei indignado com a sua má educação.
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