Dei por mim numa rua longuíssima, aos ziguezagues, cheia de
poças por entre os solavancos que as raízes das árvores davam ao chão.
Procurei não molhar os pés: estava gelado. A chuva que caíra até há uns minutos
atrás deixara o céu cinzento, abaulado; e viera gordíssima, a sacanear os
transeuntes que não contavam com ela. Eu incluído. Mas segui em frente sem
remorsos nenhuns: há qualquer coisa de melancólico mas belo em caminhar por uma
rua molhada, ouvir o chapinhar das coisas e a mecânica dos carros transformada
em salpicos transtornados.
Passei por uma praça pequena e cruzei-me com uma velhota
magríssima, daquelas curvadas por um peso invisível, que me olhou como quem se
defende de um leão. Desenhei um círculo à volta dela, mais para não a assustar
que para me defender. Ela continuou a olhar-me nos olhos por momentos mas
depois pô-los no chão, baços e tristonhos. Deve ter percebido que eu não era
ameaça nenhuma e que não a ia atacar. Virou uma esquina e foi envelhecer para
outro lado.
A praça dava para uma bifurcação: direita ou esquerda?
Recordo-me da razão por que vim passear: não tomar decisão alguma. Fugir das
obrigações com a descontração do irresponsável. Virei para a direita mas também
podia ter virado para a esquerda. Vá-se lá saber como funcionam estas coisas.
A rua era escura e tive medo: do outro lado aproximava-se um
homem vestido de negro, coberto com uma barba cinzenta e pastosa, com uma
bocarra aberta a bocejar placidamente. Rua abaixo, rua acima, tudo cinzento e vazio:
só eu e ele. As lojas estavam fechadas, havia lixo molhado na calçada e os
carros estacionados estavam embaciados por dentro. Observei o homem enquanto
pontapeava uma pedrita. Ele não me viu. Pontapeei a pedrita até ao fundo da rua
e olhei para trás: o homem entrava por um buraco na parede. Decidi voltar atrás
e esquecer a pedrita. Quando me aproximei vi que a abertura na parede dava para
um espaço abandonado, cheio de plantas rasteiras molhadas e montanhas de tralha que
prometiam ratos e cheiros. O homem desaparecera algures por ali. Procurei-o mas
não o voltei a ver.
Meti-me no metro. A vida à superfície estava a adormecer-me.
Queria alguma velocidade. Queria aquela sensação de poder ir de um ponto ao
outro da cidade calmamente, sentado no meio de estranhos. Não precisava de
andar: sentava-me e ia. Podia dar a volta, voltar para trás e atravessar a
cidade as vezes que quisesse que ninguém me diria nada. Podia olhar para os
outros e os outros poderiam olhar para mim e saber que só nos voltaríamos a ver
graças a uma coincidência daquelas.
Sentei-me à espera. Nada mais solitário que uma estação de
metro que faz eco. O zumbido do metro ainda vem distante. Faço cálculos: três
pessoas dispersas, sabe-se lá há quanto tempo esperam. Pouco me importa. Entrei
ali para andar sem pressas: sento-me, tiro um livro do bolso. O zumbido do
metro lá está ao fundo. Uma coluna rouca cospe uns sons que são música segundo
o critério de alguém; a mim soa-me a rádio desgastado. Levanto os olhos do
livro que finjo ler e dou com um casal de namorados enrolado: beijam-se com uma
sofreguidão badalhoca, uma urgência desesperada. Tanta luxúria por soltar,
compressa debaixo das roupas pelo espaço público. Uma senhora observa-os,
tímida: não sabe que a observo também.
Forma-se ali um triângulo voyeurista de esquisitíssimas
potencialidades: os namorados puxam-se um para o outro, dizem coisas ao ouvido,
riem com a discrição com que foram educados. A senhora, pudica, endireita o
casaco comprido: tem collants, sapatos, uma saia longa, tudo em tons distintos
de creme. Aquele espaço todo fica cheio de uma eletricidade fraca qualquer, a contenção daquela senhora toda
muito séria a roê-la por dentro e a fazer com que mexa apenas os olhos arrebitados.
Desce e sobe com o olhar o corpo dos namorados, incomodada com as roupas, com
os movimentos, com a proximidade, com uma coisa qualquer indefinida que as
gerações que a seguem devem ter e que ela já não reconhece em si. Ou sou eu que
estou a meter-lhe coisas na cabeça sem saber o que digo? Dou por mim feito
parvo a fitá-la nos olhos: topou-me em flagrante. Desço depressa para o meu
livro, curvado de vergonha, sinto a pulsação toda nas têmporas e leio a mesma frase quatro ou cinco vezes antes de
espreitar pela periferia. A senhora está a apertar o casaco e a ver as horas
num relógio pequenino, e o casal de namorados parece querer resgatar qualquer
coisa da garganta um do outro usando a língua. Que imagem.
Chega o metro. Entramos. A carruagem vai quase vazia: um
gordíssimo lê um jornal, um homem corta as unhas para um canto e um cego, ao
fundo, vem a descer o corredor tocando um instrumento e pedindo solidariedade
com o metro a engolir-lhe as preces. A senhora senta-se toda erguida, procurando
não encostar-se em sítio algum, mas deposita uma moeda no recipiente do cego
quando ele passa por ela a cantarolar numa voz rouca. O casal de namorados está
a rir sabe-se lá porquê, umas gargalhadas deslocadas daqueles sons todos. O
metro chia. Paramos numa estação, não entra ninguém, sai o cego. O metro
arranca, a senhora olha pela janela, o gordo atende o telemóvel e fala alto, o
namorado troca de lugar e fica de frente para a respectiva, mastigam agora umas
gomas amarelas e cor de rosa que deitam um cheiro a borracha, o homem que corta
as unhas acabou e agora lima-as com a atenção do engenheiro, de repente estou
enjoado de ali estar e saio a correr.
Acelero escada acima: lá fora está a chover outra vez,
daquelas gotas minúsculas que não são água mas vapor. Aquilo respira-se, entra
pela boca e faz-nos engolir em seco e respirar molhado. Por alguma razão começo
a correr. As lojas estão fechadas e as pessoas que passam são corpos
impermeáveis, equilibrando guarda-chuvas contra o vento. Tenho o livro
amachucado dentro do bolso, quero guardá-lo noutro sítio e não posso. Procuro
um café; não há nenhum aberto. Vou a correr. Mal consigo respirar, engulo ar
aos solavancos mas continuo, não vá eu parar sem me dar conta.
Dou por mim numa rua longuíssima, aos ziguezagues, cheia de
poças por entre os solavancos que as raízes das árvores davam ao chão. Mas
sigo em frente sem remorsos nenhuns: há qualquer coisa de melancólico mas belo
em correr por uma rua molhada, ouvir o chapinhar das coisas e a mecânica dos
carros transformada em salpicos transtornados.
1 comentário:
Gosto mesmo deste teu "Deambulatório". Está muito bem escrito, descreves o essencial com um toque de humor que te é característico. Identifiquei-me com o texto e acho incríveis este tipo de experiências. Perdemos tanto de peculiar, de ordinário e maravilhoso quando andamos na rua enclausurados no nosso invólucro! Quando prestamos atenção entramos em verdadeiras aventuras. E no entanto rematas o texto tornando ao início. A rua é a mesma, mas já não é a mesma rua, a história repete-se mas de certo não com os mesmos contornos...
Já divaguei demais.
Madalena
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