Quando
comprei o unicórnio um amigo avisou-me logo para ter cuidado com os arco-íris
pastosos. Como era um tipo um bocado chato decidi ignorá-lo, como aliás ignoro todos
os amigos quando estes fingem perceber mais de alguma coisa do que eu. Neste
caso enganei-me; ele percebia mesmo de unicórnios. Certo dia cheguei a casa e chamei:
-
Pégaso?
Era
o nome do meu unicórnio. Uma prima minha pequenina, a quem tinha dado a honra de escolher o nome do bicho, tinha acabado de ver o Hércules
e relacionava todo e qualquer cavalo com o animal de estimação do herói. Ora,
toda a gente sabe (menos a minha prima) que o cavalo alado do Hércules não é um unicórnio. Disse ao meu tio:
-
Epá, eu entendo a posição da miúda mas não posso dar esse nome ao animal. Não faz sentido.
A
minha prima começou a chorar e a gritar Pégaso, Pégaso, e eu lá tive de dar
esse nome ao meu unicórnio não-alado.
Mas
pronto, retomando.
-
Pégaso? - chamei eu.
O
bicho lá apareceu. Trazia um livro preso no unicorno e percebi logo que tinha
andado à marretada na biblioteca. Furioso, aproximei-me dele e tirei o livro do
unicorno. Fi-lo esfregar o focinho no livro furado e depois sentei-o usando as
técnicas que via no Encantador de Cães, aquele programa do mexicano chefe de
matilha. Ele sentou-se, todo cabisbaixo, e percebi logo que a chatice
ultrapassava a minha cópia furada do “Carteiro de Pablo Neruda”.
-
Que fizeste, Pégaso?
Fui
até à sala e apanhei-a absolutamente coberta de arco-íris pastoso: parecia que
uma parada de orgulho gay se tinha aliado a um campeonato de paintball. Trouxe
o Pégaso até à sala e esfreguei-o no próprio, digamos, cocó. Ele ficou todo
colorido no nariz, espirrou e foi sentar-se a um canto.
-
Pégaso feio. Pégaso feio! – disse-lhe.
Lá
liguei ao meu amigo a pedir conselho.
- As
fezes estão todas pastosas, parecem tinta?
-
Não lhe destes as vitaminas? – perguntou-me ele; sim, era uma dessas pessoas
que não sabe conjugar verbos.
-
Não – resmunguei.
-
Fizestes mal – respondeu-me ele.
Ele
insistiu em ver o cocó colorido do Pégaso porque, teorizava, o bicho não estava
bem.
Chegámos
a casa e lá andou ele de rabo para o ar a analisar os arco-íris.
- Tem-ze-lhe
dado as nuvens?
-
Claro, claro – respondi; mentira, andava a dar-lhe algodão doce.
- O
teu bicharoco não tá bem. Já o levastes ao veterinário?
-
Sim, sim, está tudo em ordem.
- E
ao Feiticeiro?
- Ao
Feiticeiro?
-
Estavas à espera de cuidar de uma criatura mágica sem o levares ao Feiticeiro?
O
Pégaso olhou para mim como quem diz “Ora aí está, seu estúpido”.
-
Olha, olha – disse o meu amigo, de dedo enfiado numa pasta alaranjada – Os
arco-íris não estão completos. Falta o lilás e o verde.
- Ai
é?
- Tá
com um problema, o teu bicho. Tens de ir ao Feiticeiro.
Não
me chegava já o que gastava em amaciador para a crina e verniz para o unicorno.
- E
isso é coisa para ficar em quanto?
-
Umas setenta moedas de ouro.
Fui
até à loja de câmbio e troquei oitenta (leram bem; oitenta) euros por setenta
moedas de ouro. O gnomo que tratou da transação tinha mesmo cara de funcionário
de uma repartição qualquer; franziu logo as sobrancelhas cheias de musgo e
resmungou que não aceitava moedas de cinquenta cêntimos. Reclamei. Lá veio um
colega gnomo a esvoaçar, este mais simpático, para me dar uma mãozinha. Aceitou
os trocos e trocou-os por um saco de moedas de ouro, todo cheio de purpurinas.
De
seguida peguei no Pégaso pela trela e fui até Monsanto. O meu amigo
explicara-me que, como todos os Feiticeiros, este vivia numa densa floresta.
Dirigi-me ao pinheiro designado e disse “Abracadadra, dentes de cabra”, não sei
quê não sei que mais. As raízes da árvore arrancaram-se sozinhas do chão e
abriram caminho para umas escadas de pedra. Desci, com o Pégaso à perna, e fui
dar a uma sala enorme, circular, coberta com prateleiras de granito onde
descansavam poções, vasos com plantas e animais dentro de frascos. A uma mesa,
de frente para um Mac, estava um homem barbudo com um enorme manto branco e um
chapéu bicudo.
-
Boa tarde – disse eu.
O
Feiticeiro levantou os olhos baços do ecrã; pela musiquinha deduzi que estava a
jogar Bubble.
-
Quem é o senhor? – perguntou-me ele.
-
Chamo-me Renato Rocha, vim para a consulta das cinco.
-
Ora, ora, ora... – O Feiticeiro mirou uma ampulheta – São quatro e cinquenta e
dois. Dá-me só um momentinho? Tenho aqui que terminar uns relatórios para,
hum...
O
Feiticeiro jogou mais três minutos de Bubble e eu fiquei ali especado, com o
Pégaso preso por uma trela. De repente o bicho soltou um gemido, dobrou-se
dolorosamente e expeliu uma quantidade incalculável de arco-íris pelo mágico
traseiro. A parede que estava atrás de nós ficou toda colorida. O Feiticeiro lá
nos deu atenção e levantou-se da secretária com a ajuda de numa bengala com
cabaças penduradas.
-
Bela referência ao Rei Leão – disse eu, apontando para as cabaças.
- É
a primeira pessoa a reparar – sorriu ele, revelando uma dentição perfeita. Pudera,
era Feiticeiro. Com um agitar de braços e alguns encantamentos naquilo que
julguei ser uma língua imaginária, a parede do consultório ficou limpa de um
segundo para o outro. Pégaso, arrependido, sentara-se ao meu lado e pousara a
cabeça sobre os cascos.
-
Que se passa com o bicho?
-
Está a defecar uma coisa pastosa e faltam-lhe umas cores no arco-íris.
O
Feiticeiro dobrou-se sobre ele e começou a analisá-lo atentamente.
-
Ora vamos lá ver, como se chama este rapaz?
-
Pégaso.
-
Sabe que Pégaso era um cavalo alado e não um unicórnio.
-
Sei, sei.
-
Podia ter-lhe dado outro nome.
-
Foi uma prima minha.
- A
sua prima devia ver aquele filme do Hércules, talvez assim aprendesse a
diferença entre um cavalo alado e um unicórnio.
- O
que é que ele tem de errado, Sr. Feiticeiro?
-
Pressinto uma obstrução no sistema de decomposição
-
Sistema de decomposição? – vi o Feiticeiro aproximar-se do rabo do Pégaso e
estranhei.
-
Estudou Newton?
-
Sim.
-
Lembra-se da decomposição da luz?
-
Lembro pois.
O
feiticeiro foi a uma gavetinha e trouxe de lá uma poção. Deu-a a cheirar ao
Pégaso e ele adormeceu pesadamente. O Feiticeiro voltou a aproximar-se do seu
traseiro.
-
Segure aí a cabeça do bicho.
Segurei-o
pelo unicorno. O Feiticeiro enfiou o braço pelo rabo do Pégaso, remexeu duas ou
três vezes e voltou a tirá-lo. Na mão trazia um prisma triangular absolutamente
cristalino mas com um grande risco ao meio.
-
Ora aqui está – disse-me o Feiticeiro, aproximando-se de mim enquanto analisava
o prisma a contraluz – Estou a ver que entende pouco de anatomia de criaturas
mágicas.
- Só
tive gatos e cães até agora.
- Os
unicórnios não defecam arco-íris, defecam luz branca. Possuem é um sistema de decomposição,
que é o nome técnico para “prisma metido no rabo”, que faz a decomposição da
luz branca e permite um cocó mais exótico. Ora, o sistema de decomposição aqui
do Pégaso está estragado. Por isso é que lhe faltam comprimentos de onda e as
fezes estão tão moles.
- E
isso trata-se como?
-
Não se trata – respondeu o Feiticeiro, atirando o prisma riscado para dentro de
um caldeirão cheio de lixo mágico - O
prisma é insubstituível.
-
Não pode ser transplantado?
-
Não.
-
Nem se pode mandar fazer um?
-
Não. São setenta moedas de ouro.
-
Agora fico com um unicórnio que faz cocó em branco?
-
Não, fica com um unicórnio que faz cocó na forma de um jacto de luz branca, é
uma óptima lanterna. São setenta moedas de ouro.
-
Mas você é mágico, não consegue fazer aí um feitiço que...
- Se
está assim tão preocupado com a saúde do animal devia dar-lhe nuvens
verdadeiras e não algodão doce.
Engoli
em seco.
- Ou
acha que eu ando aqui a brincar? – resmungou o Feiticeiro. Coloquei a bolsa de
moedas de ouro na mão dele e vi-o regressar ao Bubble sem sequer se despedir.
Rude.
Cheguei
a casa com o Pégaso e dei-lhe uma boa dose de nuvens pôr-do-sol, bem
alaranjadas (são as mais doces). Descobri que lhe dão diarreia mas não há
problema. O Pégaso adora o sabor daquela porcaria e eu poupo imenso dinheiro em
electricidade.
1 comentário:
Adorei a história!!!
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