Barreiros como paradigma artístico popular
Nada
mais significativo aconteceu no panorama musical português do último século que
o surgimento de um grupo de artistas especializados num tipo de expressão musical
mais simples e popular. Um deles, sem dúvida um dos mais bem sucedidos, reúne
em si características físicas que o tornam familiar a todo o português: o
sorriso maroto, o chapéu, a estrutura encorpada mas de reduzido tamanho, o
profuso bigode: Quim Barreiros, mais que um criador musical, é uma persona.
Mas
como explicar o sucesso deste artista? Neste texto argumentaremos que a riqueza
artística de Quim Barreiros, e na verdade aquilo que o torna bem sucedido,
reside exactamente no facto de não se tratar de um letrista e músico comum;
mais especificamente, a sua utilização da metáfora é não só rica, como atribui
às suas canções uma profusão de significados e camadas que as tornam divertidas
para uns e motivo de estudo para outros.
Que
características permitem estudar a obra de Barreiros como um “todo” homogéneo?
- O sujeito
poético é normalmente um homem, sendo que Barreiros canta na primeira pessoa do
singular (o que por sua vez oferece várias leituras: Barreiros identifica-se
com as personagens que cria, ou as suas canções são de facto auto-biográficas?)
-
Referência a tradições portuguesas facilmente reconhecíveis (O nome “Maria” em
“Bacalhau à Portuguesa”, o brioche e as rabanadas em “O Brioche da Sofia”)
-
Fascínio pelo genital masculino e feminino, e seu encontro
-
Romantização da prática sexual, normalmente reduzida ao coito mas, por vezes,
obtendo características mais exóticas (“O Brioche da Sofia”), sempre pressupondo
a satisfação masculina.
-
Utilização de trocadilhos (“Ela estava contusa”; o verso “bater por letra” em
“Curso de Dactilografia”) todos eles perfeitamente justificados no contexto da
narrativa que está a ser contada
Vejamos
alguns casos práticos:
O masculino encontra o feminino: “A Garagem
da Vizinha”
Numa
primeira leitura, “A Garagem da Vizinha” é a história de um homem que encontra
na garagem da vizinha o lugar ideal para estacionar o seu veículo de trabalho.
Mera narrativa sobre a cooperação na vida do interior? Barreiros estabelece um
paralelo claro entre a cooperação Sujeito Poético / Vizinha e a actividade do
coito mas não se fica por aqui.
Símbolo
do futuro, do progresso e da velocidade, o estatuto fálico do automóvel não é
uma coincidência. O verso “Mas teu carro vai gostar” atribui ao pénis sensações
que são humanas, retratando-o como elemento principal da mentalidade masculina.
É o universo varonil reduzido ao falo? De facto; mas não é por acaso que a
canção se intitula “A Garagem da Vizinha”; sem ela o “carro” de Barreiros não
teria onde estacionar. É em relação à “garagem” da vizinha que o “carro” ganha
significado e a metáfora se constrói.
“Que garagem apertadinha / que doçura de
mulher”: a garagem é equiparada à vagina da mesma forma que o carro é
equiparado ao falo. Barreiros busca, acima de tudo, a redução do Homem e da
Mulher ao seu genital e, unindo-os, resume com a imagem do estacionamento a
profunda ligação sexual estabelecida entre os dois géneros. O estacionamento de
um automóvel simboliza o encontro físico entre o Homem e a Mulher, e a mudança
de óleo a troca de seus fluidos: em meia dúzia de versos, a ligação
homem-máquina, homem-mulher e homem-amor é explorada em simultâneo.
Numa
análise mais profunda, a canção não nos oferece uma razão realista para que o
carro não possa ser estacionado ao ar livre, e no entanto colocá-lo na garagem
parece uma necessidade de última ordem. De certa forma, a protecção da “garagem
da vizinha” é uma expressão clara da necessidade de encontrar um espaço
maternal e seguro, pressupondo que o protagonista do poema não encontra esse
conforto no seio da sua família.
A
troca de fluidos é simbolizada pela mudança de óleo, que por sua vez simboliza
a necessidade de transformação masculina do sujeito poético, e que por seu
turno é indicadora de uma mais abrangente necessidade de satisfação emocional.
Tal profusão de camadas de significado não está de todo presente noutros poetas
de menor gabarito.
Marota simplicidade: “O Brioche de Sofia”
Mas
se em “A Garagem da Vizinha” o paradigmático macho lusitano busca profundas
emoções, também há canções nas quais a sua veia mais sexual e pungente lidera a
reflexão. É o caso de “O Brioche da Sofia”, a história de uma pasteleira
chamada Sofia que anima a clientela com as suas capacidades.
O
brioche da Sofia é “mesmo bom”: o minimalismo da descrição, a contenção nos
adjectivos, a clareza da mensagem, o elogio às capacidades femininas de Sofia
em relação à satisfação do “freguês”; tudo contribui para que Quim Barreiros
consiga, num verso, resumir os temas que explora em toda a sua obra.
De
destacar é ainda a relação entre o erótico e a gula: “Até eu vou lá comer / O
Brioche da Sofia” não fará sentido se visto na perspectiva meramente simplista
segundo a qual este “brioche” é uma referência ao sexo oral praticado por Sofia
aos clientes. “Comer” o brioche estabelece um paralelo entre o prazer
luxuriante e o consumo de pastelaria popular: como sempre, Barreiros descobre
no popular e mundano algo de exótico e de luxuriante.
A eterna presença de Maria: “Bacalhau à
Portuguesa”
Mas
não só no quotidiano descobre Barreiros o combustível para o seu cantar: é,
acima de tudo, um utilizador profuso das tradições e paradigmas portugueses. Em
“Bacalhau à Portuguesa”, quiçá o seu maior sucesso até à data, Barreiros
interpela “Mariazinha” e pede-lhe para avaliar a qualidade do bacalhau que esta
guarda na cozinha. Esta ode não é um elogio a qualquer mulher: Barreiros canta
a mulher portuguesa e suas capacidades culinárias, especificamente na área do
bacalhau. Será redutor colocar Mariazinha na cozinha? Talvez; mas não obedecerá
a uma imagem que se enraizou no imaginário popular português deste o tempo do
Estado Novo? A rima fica facilitada e a mensagem adquire clareza e direcção:
nada é inocente em Barreiros.
O
aroma ganha em “Bacalhau à portuguesa” o lugar de mecanismo favorito de
identificação sensorial, o que por sua vez contrasta com o típico contacto
físico entre o sujeito poético e as mulheres com que se costuma relacionar.
Nesta cantiga, Barreiros não pressupõem imediatamente uma “mudança de óleos”,
acto físico e de contacto directo, mas sim um contacto sensorial mais sensível
e abstracto. É um Barreiros romântico aquele que pede a uma mulher para a
farejar? É a busca por um pequeno grau de subtileza que contraste com a
brutalidade típica do coito simplificado?
“Quero
cheirar teu bacalhau” é seguido de “Mariazinha, deixa-me ir à cozinha”: vejamos
como o machismo inerente a toda a obra de Barreiros dá lugar, na verdade, a um
pedido de autorização. O sujeito poético reconhece o valor do “bacalhau” da Mariazinha
e realça o seu território (a cozinha), não se atrevendo a violentá-lo sem antes
o elogiar longamente (“Teu bacalhau é mesmo uma beleza”).
Há
em Barreiros uma catalogação progressiva da mulher como um objecto utilizável sem,
no entanto, lhe negar as honras merecidas: o tratamento do genital feminino não
pressupõem uma inferiorização da mulher (como já o tínhamos visto em “A Garagem
da Vizinha”) mas sim, pelo contrário, uma ode ao seu poder sobre o homem que a
procura. A mulher e seu genital encontram-se, fundem-se, são indissociáveis em
Barreiros: e do encontro entre eles surge uma Mariazinha, uma Portuguesa-Total,
que dá prazer aos homens sem recorrer ao coito e usando apenas e exclusivamente
a fragrância das suas partes baixas.
Que
relações poderemos estabelecer entre o “cheiro do bacalhau” e a forte
identificação que os recém-nascidos estabelecem com o aroma materno ao nascer? É
o mito da fecundidade elevado ao extremo e levado com inocência aos ouvintes
que não o compreendem mas identificam intuitivamente. Neste sentido, Barreiros
trata um tema de apelo universal e complexas repercussões com a disposição de
uma piada marota: sintetizar os grandes sentidos e sentimentos em versos
simples não é, convenhamos, o objectivo da poesia desde Homero?
Em
suma: que é Barreiros senão o mais actual e intemporal dos poetas; o mais solto
nos tabus e o mais corajoso na abordagem; o mais claro na mensagem e complexo
na temática? Ninguém cantou como ele a glória da cópula lusitana nem carregou o
genital lusitano de tamanhas camadas de significado metafórico.
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