quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Ensinar inglês com… a Bíblia?

Claro que pode parecer uma ideia um bocado estranha. Agarrar num texto milenar, cujas versões actuais em inglês são cópias de traduções de cópias traduzidas por copistas e tradutores vários, que não é, de longe, o melhor exemplo de literatura inglesa, e que viola descaradamente a (suposta) separação da religião e do estado; agarrar nesse texto, digo eu, e criar um programa para utilizá-lo em aulas de Inglês. É de loucos, certo?
Alguém na Escola Secundária D. Dinis (entre outras)achou uma boa ideia. Assim, a Bíblia é o texto central nas suas aulas. Mas o que pretende este projecto?
Pretende criar oportunidades reais de compreensão de texto oral ou escrito (em inglês ou, quando aplicável, em português ou noutra língua estrangeira) e promover a produção escrita em inglês, num contexto com propósito real. Pretende igualmente favorecer a utilização de diversas técnicas criativas plásticas como veículo de expressão de criatividade (lápis sobre folha A4, azulejo, multimédia, têxtil, metal, técnica mista, etc.) e promover o recurso às novas tecnologias de informação e comunicação enquanto elemento de suporte ou dinamizador.
Parece-me fantástico. Não há um único ponto com o qual não concorde. Sou, aliás, um defensor ferrenho de uma melhoria significativa do ensino do Inglês em Portugal, já que se trata da língua mais importante do mundo e é tratada desde o 5º ao 12º ano como um programa rotativo, repetitivo, e que abandona os alunos sem conseguirem manter uma única conversa no idioma.
No entanto há que perguntar numa coisa: para quê a Bíblia, uma obra que nem sequer foi escrita originalmente em inglês? Todos os trabalhos que parecem estar a ser realizados podem ser executados a partir de grande obras da literatura inglesa. Caramba, até os livros do Harry Potter ou d’As Crónicas de Nárnia, simples e que de certeza muitos miúdos gostariam de ler, seriam tão boas fontes de elementos interessantes para serem utilizados nas aulas.
Não quero parecer um tarado por conspirações, mas podemos dizer que a “verdadeira” intenção por detrás do projecto está bem definida algumas linhas antes. Começa logo pela explicação que o projecto AcrossTheBible tem como objectivo…
valorizar o diálogo intercultural e interpessoal através do contacto com o património bíblico internacional, privilegiador do primado da lei, dos valores basilares da verdade, da justiça, do livre arbítrio, do sentido eterno da vida, da compaixão, do perdão, do amor e felicidade.
De que forma o “contacto com o património bíblico internacional” é relevante numa escola pública num Estado laico é um mistério; até porque se, em termos disciplinares, a Bíblia será usada para promover as línguas e a produção de trabalhos criativos, não se percebe o que significa este “contacto” de carácter religioso. Muito menos é explicado o que raio estão a fazer esses “valores basilares” numa aula de inglês e de produção artística.
Isto, claro, deixando de lado a objecção mais óbvia: subentender que a Bíblia (e seu “património internacional”) é uma fonte prolífera destes valores é passar por cima do facto de que esse mesmo livro contém massacres, violências, guerras e chacinas que poderão, Deus nos livre, corromper a beleza dessas coisas bonitas que serão transmitidas às crianças. Claro está que, no espírito de passar os valores dos quais a Bíblia e o seu “património” parecem ser “priveligiadores”, com certeza que não se perderá tempo nestas aulas para meter os meninos a traduzir para português o que São Pedro diz sobre os homossexuais ou sobre as mulheres (que devem ser submissas aos seus maridos), ou desafiá-los a utilizar as “técnicas criativas plásticas” para representar criativamente o massacre das cidades de Sodoma e Gomorra.


Reprodução de um desenho feito por um dos alunos do projecto, em que a palavra “DESTRUCTION” foi muitíssimo bem aplicada a representação artística da Arca de Noé. O artista que desenhou os bonecos esqueceu-se de representar os corpos mortos de todos os pecadores assassinados pela cheia, cuja morte foi o único objectivo da cheia em primeiro lugar. Talvez porque isso não encaixe bem com os “valores basilares” que a AcrossTheBible procura transmitir aos nossos futuros artistas.

Ou seja, com certeza que haverá uma escolha nos temas a tratar; e é difícil perceber, pelo texto apresentado, se essa escolha valoriza mais os valores que o projecto acha que é seu dever transmitir do que a educação que a escola deveria estar a dar às crianças.



Reprodução de outro desenho executado por um dos alunos do projecto. No canto superior esquerdo lê-se “It’s not the place that matters. It is the attitude in your heart and mind. God is spirit, so He expects to be worshipped in spirit and truth.”

A imagem é uma demonstração flagrante de como o ensino das línguas e das competências artísticas e criativas é apenas uma parte daquilo que este projecto procura fazer. Independentemente de meterem os meninos a desenhar bonecos ou a escrever em inglês (o que, repito, pode ser feito com qualquer outra obra), a mensagem religiosa está lá, salta aos olhos, não repara nela apenas quem não quiser ou quem analisar a situação com extrema desonestidade.
Uma proposta: vamos fazer exactamente a mesma coisa, só que utilizando outros textos religiosos em inglês. O Alcorão, por exemplo. O Livro Tibetano da Vida e da Morte. Os mitos gregos. Com certeza o “diálogo intercultural” referido seria muito mais interessante e “dinamizador” ao tratarmos um texto de uma cultura completamente diferente da nossa, ao contrário da Bíblia. Conseguem imaginar o escândalo e o barulho que seria levantado se o Alcorão fosse utilizado nas salas de aula?
Eu consigo; é o mesmo barulho que deveria ser feito quando a Bíblia é usada exactamente da mesma forma, porque nenhuma mensagem religiosa deve ocupar lugar no ensino público, especialmente em aulas que nada têm que ver com ela (seria compreensível e até aconselhável que se tratasse o tema da religião em aulas de Filosofia, por exemplo). Mas como Portugal é um país onde o cristianismo e especialmente o catolicismo são dados adquiridos pela maioria da população, este projecto é uma coisa boa, até normal. Não há ondas, não há críticas, não há ninguém a levantar o dedo e dizer “Esperem lá um bocadinho…”.
Eu respeito as crenças religiosas alheias, e nunca me ouvirão dizer que cada pessoa não tem o direito de acreditar naquilo que bem entender; mas a esfera privada e a esfera pública não se devem encontrar neste assunto. O projecto em questão deve ser (esperemos) voluntário. Isso não faz dele menos esquisito, menos incoerente, e menos inconstitucional.
Daqui é um saltinho até chegarmos ao tipo de debates nos EUA, onde a educação das ciências naturais está a ser constantemente atacada por trupes bem organizadas e com grandes orçamentos de grupos cristãos fundamentalistas, cujo objectivo é “entrar” no sistema de educação público e misturar as mensagens religiosas com os conteúdos programáticos comuns.
Mais uma vez: isto não é uma teoria da conspiração (o que seria, eu sei, exactamente o que um maluquinho diria sobre a sua teoria da conspiração); no entanto, a AcrossTheBible parece gostar, apoiar e até sugerir como "visita de estudo" o Museu do Criacionismo que abriu recentemente em Mafra, do qual já falei aqui antes. Este não é um projecto que tenha como finalidade principal a educação dos jovens. A escolha específica da Bíblia (por parte de uma organização chamada AcrossTheBible) como livro central para as aulas demonstra uma óbvia tentativa de meter a religião onde ela não é chamada.
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