sábado, 7 de agosto de 2010

"A língua portuguesa não foi feita para marcas". Ai não?

Aqui há uns anos surgiu uma ridícula campanha comercial, que consistia no slogan “Mudasti!” para vender uma bebida em tudo igual ao Iced Tea, só que com outro nome (Nestea). A expressão “Mudasti”, que na prática significava “Muda de Iced Tea”, ganhou alguma fama e começou a fazer parte da gíria popular e da preguiça dos anúncios da marca em causa, que a utilizou como slogan durante todo este tempo.

Feitas as apresentações, vamos ao que importa: o departamento comercial da barata imitação do Iced Tea decidiu que seria uma boa ideia aproveitar-se da banalização do seu slogan e da omnipresente saloiice portuguesa. Como consequência, querem pôr “Mudasti” no dicionário; e há apoiantes.

Não sou nenhum puritano da língua portuguesa, mas devo dizer que sinto um arrepio pela espinha quando vejo que alguém quer colocar um anúncio à sua bebida no dicionário da língua portuguesa. No entanto, sinto um arrepio ainda maior quando assisto à criação de grupos que têm como objectivo combater a inclusão da (tremendamente estúpida e, a bem ver, inútil) palavra no dicionário. Afinal, “mudasti” não significa mais do que “muda”, só que com a pronúncia de alguém que não sabe falar português.

Parece-me óbvio que esta campanha de colocar “mudasti” no dicionário é, ela sim, a grande campanha publicitária da marca. A eles não lhes interessa que a palavra entre “oficialmente” no léxico português, porque sabem que as coisas não funcionam assim (por outras palavras, não se enfiam assim palavras no dicionário por causa de uma petição). Mas quem se opõe à marca e à sua estúpida forma de fazer publicidade, e por isso mesmo se movimenta para a combater, está exactamente a fazer a publicidade à Nestea que a marca tanto desejava, e pela qual não teve de pagar um tostão.

O ideal mesmo era ter todo o país a discutir o assunto, os grandes linguistas a virem aos telejornais opinar sobre a moção, e colocar o Nestea nas prateleiras de todos os supermercados nacionais devido ao óbvio crescimento na procura do produto. Não se trata de uma conspiração empresarial, mas sim de uma elegante estratégia de marketing. Graças à nossa recente mania de fazer petições na Internet por tudo e por nada, a notícia corre o país e centenas ou milhares de pessoas se reúnem para apoiar ou combater o Movimento Mudasti, atribuindo-lhe um simbolismo e uma importância que não lhe pertencem.

E a quem se sente doente só de pensar que “mudasti” (por se tratar de uma marca) pode entrar no dicionário (o grupo no Facebook que se dedica a combater a proposta da Nestea diz mesmo que “a língua portuguesa não foi feita para marcas”), sugiro que vão procurar “gilete” ao dicionário. Pelo menos no meu Dicionário Universal da Língua Portuguesa da Porto Editora a palavra surge com a classificação de “substantivo feminino”. O mesmo acontece com aspirina, que também é um substantivo e, originalmente, o nome de uma marca de medicamentos. Heroína, jipe, coca-cola, post-it: tudo exemplos de marcas que viraram palavras de uso comum.

No entanto, não ouvimos ninguém dizer que “ter gilete no dicionário é uma vergonha porque a nossa língua não foi feita para marcas”. Não foi; mas as línguas evoluem com os tempos, e pode ser que um dia mudasti ganhe um estatuto e uma importância na nossa língua que justifique a sua inclusão no léxico português. Duvido, mas pode acontecer. Afinal qual é a diferença entre “aspirina”, “gilete” e “mudasti” (para além de que o último soa um bocadinho pior do que os outros)?

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