quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O entusiasmo com a desgraça alheia (uma reflexão)

Quando o rapaz que ontem estava a nadar na Costa da Caparica desapareceu e, tudo indica e torna-se a cada hora que passa mais óbvio, morreu afogado, eu estava a uns cem ou duzentos metros do desenrolar da situação, a ler um livro debaixo do chapéu-de-sol. Só quando toda a gente à minha volta começou a olhar na mesma direcção, e duas figuras femininas com bóias em forma de nave espacial laranjas se atiraram às ondas, é que percebi que algo se estava a passar.
Na boa tradição portuguesa, todas as pessoas na praia largaram os lanches, gelados, jogos de raquetes e conversas banais para se reunirem umas com as outras, como se de um grupo de conhecidos separados há uns anos se tratasse, comentando uns com os outros o quanto tudo aquilo era incrível e horrendo, opinando sobre o que se tinha passado e assim multiplicando as histórias que corriam o areal e que tentavam explicar o que estavam a fazer aquelas duas pequenas cabeças muito atrás da linha de rebentação, uma delas desaparecendo dentro de água e voltando a aparecer ocasionalmente.
O grupo multiplicou-se, e a curiosidade mórbida que move massas mais do que o futebol ou a religião levou a que centenas, sem exagero, corressem com urgência na direcção do grupo crescente que se formava no areal, à beira da água, para assim todos assistirem juntos à luta daquelas duas cabeças pequenas contra a corrente da qual só uma das cabeças sobreviveu. Uma das nadadoras salvadoras saiu do mar trazendo consigo um rapaz, e a segunda lá ficou, mergulhando uma, duas, várias vezes. Por esta altura o cheiro a morte súbita tinha atraído meia praia, e um sentimento de quase entusiasmo contagiante fazia aproximar pessoas de todas as idades, algumas trazendo crianças, todas elas comentando e largando a sua opinião como se alguém se lhes tivesse dirigido a pedir satisfações.
Depois chegaram carros do INEM, dos nadadores salvadores, e algumas figuras de amarelo se atiraram ao mar. Uma mota de água aproximava-se, furando pela ondulação vinda de uma praia mais à direita. A guarda costeira também chegara. Meia hora depois ou nem isso, já um gigantesco helicóptero sobrevoava a zona, cinco ou seis motas de água andavam em círculos a ver se viam algum vulto perdido no mar, e o grupo de pessoas no areal já não era um grupo, era uma multidão.
(fazendo uma pausa no decorrer normal do texto para elogiar a rapidíssima acção dos meios de socorro, que fizeram o seu trabalho melhor do que qualquer pessoa pensa, contrariando a ideia generalizada e aliás impulsionada pelos idiotas dos jornalistas que cobriram o caso, quase que culpando os nadadores salvadores da desgraça porque “a praia em questão não era vigiada, pelo que a falta de meios poderia ter evitado o acidente”)
As buscas começaram, e com elas a curiosidade das pessoas aumentou. Não havia um interesse genuíno no encontro do rapaz, muito menos uma preocupação simples e humana despertada pelo desaparecimento de um jovem inocente; se assim fosse, não se reuniria tamanha multidão tão perto do desenrolar dos acontecimentos, procurando ouvir, como quem não quer a coisa, as conversas entre os nadadores salvadores e a guarda costeira. Havia, isso sim, uma mórbida curiosidade que era comum a todos, uma vontade inegável não de que o rapaz fosse encontrado, mas que ele fosse encontrado enquanto as pessoas ali estavam. Toda a gente sabia intuitivamente que o rapaz morrera; era impossível ter desaparecido dentro de água e, horas depois, ser resgatado com vida; pelo que o que mantinha um número crescente de pessoas à volta da acção não era uma preocupação genuína com o rapaz, mas sim uma vontade enorme de ver o que acontecia, de até, quem sabe com sorte, ver o corpo do rapaz (e não o rapaz) a ser resgatado ali ao vivo e a cores.
Este fenómeno é o mesmo que acontece quando uma fila de trânsito se forma só porque um acidente violento, que por si só não cortou ou condicionou necessariamente o normal fluir da via, desperta a curiosidade dos transeuntes e dos condutores. Toda a gente abranda, espreita pela janela, quase pára para ver o que aconteceu; e porque um carro virado do avesso não é suficiente, procuram incansavelmente uma perna, um corpo, quiçá um bebé esfolado. Visto o espectáculo, poderão continuar o caminho, sentindo-se chocados, dizendo “eu estava lá, foi horrível”, como se tudo tivesse acontecido à sua frente e o seu choque fosse a consequência de um acidente e de um azar e não da sua voluntária e entusiasta necessidade de ver a desgraça dos outros.
E não posso deixar de pensar que, no meio de tudo isto, está a possibilidade de que o ser humano chega mesmo a sentir um prazer entusiasmado com a desgraça alheia. Se um afogamento realmente horroriza as pessoas e lhes tira o sono, seria de esperar que todos evitassem ver o que se estava a passar e se afastassem do local do acidente, mas o contrário acontece. Centenas corriam, literalmente corriam, vindos das praias mais afastadas, procurando aproximar-se cada vez mais do centro da acção, furando pela multidão, movidos pela vontade de observar o que só podia ser, para juntar tanta gente, uma coisa mesmo terrível. Eu tenho a tendência de fugir daquilo que me choca e desperta tristeza e horror, não de me aproximar; pelo que fiquei debaixo do chapéu-de-sol, e continuei a ler; o que, talvez, fará de mim uma pessoa insensível. A sério? Qual será a posição mais sensível? Deixar as autoridades fazerem o seu trabalho sossegadas e dar alguma privacidade e margem de manobra quer à autoridade quer aos familiares e amigos das vítimas? Ou formar um espectáculo com multidões à volta, onde todos tentam perceber o que aconteceu para depois dizerem o quanto ficaram chocados com a informação?
E depois, ainda pegado com a acusação de insensibilidade, há a ideia de que este afogamento não é diferente de qualquer afogamento na história da humanidade; e no entanto, todas as pessoas que ali assistiam ao espectáculo com certeza vêem nas notícias dos jornais que centenas de pessoas morrem todos os anos nas praias e rios portugueses, e não é por isso que perdem o sono. Há algo a dizer quanto à proximidade da desgraça: quanto mais pessoal ela se torna, quanto mais próxima de nós acontece, mais nos desperta a sensibilidade. Forma-se uma hierarquia, e subitamente um afogamento que aconteceu na mesma praia onde estávamos é de alguma forma misteriosa mais terrível e comovente que um afogamento visto através do noticiário da TVI. Mais uma vez, sou um insensível: ao pensar que este afogamento, claro que terrível e infeliz, não é mais do que todos os afogamentos que já vi nas notícias; ao pensar que a família daquele jovem não terá mais ou menos consolo que as famílias de todos os outros jovens que morreram em afogamentos (ou, diga-se de passagem, qualquer outro acidente do género); ao pensar que o facto de eu estar lá presente no dia e no momento certos não atribuiu àquela infelicidade maior importância do que a qualquer outra; e ao pensar que, para ser coerente, teria de me chocar tanto com aquele como com qualquer notícia de qualquer afogamento no país e no mundo.
Claro que naturalmente damos mais importância ao que se passa à nossa frente, porque afinal o que os olhos não vêm o coração não sente; mas essa percepção é simplesmente uma demonstração do nosso egocentrismo. Este afogamento só chocou mais as pessoas a assistir que todos os outros porque as próprias pessoas quiseram aproximar-se, envolver-se, testemunhar o mais que podiam a situação; e são elas próprias a atribuir a este afogamento, na sua cabeça, uma maior importância que todos os outros afogamentos em que todas as outras vidas inocentes se perdem. É quem assiste que atribuiu ao que se passa à sua frente uma conotação muito mais negativa, e no entanto ignora, em termos relativos, todas as outras desgraças que passam na TV e que têm consequências tão ou mais negativas do que o acidente de que essas pessoas foram testemunhas; e assim se cria a sensação de que aquele afogamento foi comovente, para quem assistiu, porque um rapaz morreu. Não. Aquele afogamento foi comovente para as pessoas que assistiram porque aquele rapaz morreu enquanto elas lá estava.
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