terça-feira, 17 de agosto de 2010

Smith e as Sereias - episódio 4

Previamente, em Smith e as Sereias, o marujo Smith encontra um desenho de uma senhora nua no navio que destruiu parte do Palácio, e mais ou menos ao mesmo tempo é vítima de uma óbvia tentativa de sedução por parte da sereia loura. Poseidon pede-lhe que vá obter informações sobre o moço louro, que, na enfermaria, está a ser tratado por Ariel. O encontro entre Smith e Ariel traz à baila a história do bebé que ele quer mas ela não; e para surpresa geral, Smith tem ainda tempo de confrontar o facto de a médica da sua futura-mulher Ariel ser a sereia loura que procura a todo o custo saltar-lhe em cima.

O meu escritório era na parte Este do Palácio Real, e tinha uma tabuleta na porta que dizia que ali estava Smith, Departamento de Relações Extra-Marinas. Tinha trazido uma poltrona do Titanic, na qual me sentava de pés em cima de uma secretária e apreciava o desenho da rapariga nua que tinha guardado numa gaveta. Há algumas horas as limpezas do navio tinham terminado, e a ala oeste ia começar a ser reconstruída. O meu trabalho, explicara-me Poseidon, era entreter o moço louro e tratá-lo como um convidado da casa. Eu próprio era um convidado da casa, por isso não sabia o que fazer. Bolas, a rapariga de carvão era mesmo gira. Parecia aquela actriz, a Kate não sei quê.

Bateram à porta.

- Entre!

Era o moço louro. Empurrei o desenho para dentro da gaveta.

- Estou curado, a tua esposa é muito simpática e uma excelente profissional – disse-me ele – E tu tens uma tabuleta na porta. Com teu nome.

- Ainda bem que reparaste. O que posso fazer por ti?

- Preciso de encontrar a Rose. Tu és… a julgar pelo escritório deserto, o único agente do Departamento de Relações Extra-Marinas. Preciso de saber se a Rose está bem.

- Tu gostas mesmo desta rapariga, não gostas? – perguntei-lhe.

- Ela é o amor da minha vida. Uma viagem num barco durante alguns dias deu para deixar isso mais do que confirmado.

- Não achas que seria melhor abrir o leque de possibilidades? Afinal, estás num palácio cheio de sereias atraentes e…

- Já ouço essas histórias de sereias atraentes e salas desertas há bastante tempo mas ainda não vi nada semelhante acontecer.

- Ouve, eu neste momento não tenho nenhuma forma prática de contactar com o mundo exterior. Ainda estou, digamos, em estágio. Mas Heath, pensa bem…

- Quem? – o moço louro estava confuso.

- Heath. Não? Como te chamas, afinal?

Bateram à porta, abriram-na, uma cara de olhos azuis e cabelos louros espreitou.

- Ah, Smith. Pensei que estivesses sozinho – disse a sereia loura.

O moço louro olhou para a sereia loura e nem teve a boa vontade de se sentir a mais e sair. Especado, olhou para mim, depois para ela.

- É pena, porque precisava de falar contigo a sós – disse-me a sereia.

- De falar, claro. Ouve, vou fazer o que puder para encontrar a Rose, mas é como te digo…

- Eu compreendo, Smith, e agradeço a tua boa vontade. Vou visitar os destroços do navio, quero ver se encontro um desenho romântico a carvão que fiz da Rose. É um bocado privado, não queria que algum trabalhador o encontrasse e o escondesse em algum local privado para olhar para ele e daí retirar algum tipo de fruição artística.

Corei. O moço louro piscou-me o olho e disse-me baixinho:

- Não precisas de corar, eu saio já para poderes ficar a sós com ela.

Saiu ele, entrou a sereia loura. Sentou-se na cadeira à minha frente.

- Pedi transferência – disse ela, brincando com a cauda de peixe.

- Para onde?

Ela olhou para mim.

- Ah – disse eu – Ouve, essa coisa de ter uma secretária tão, er, como tu, implica um voto de confiança da Ariel que neste momento deverá estar um bocado acima do que eu posso exigir dela.

- Eu falei com a Ariel sobre tudo isto, Smith – disse a sereia loura – Ela falou-me da criança. Sabes bem que ela te odeia, e que só quer despachar este filho para poder seguir com a sua carreira cinematográfica. E sabes bem que eu quero seguir com esta promissora carreira de secretariado – ela piscou-me um olho, eu mudei o peso do corpo de uma nádega para a outra evidenciando desconforto.

- Eu tenho é de tentar que a minha relação com a Ariel resulte.

- Então suponho que vais precisar de ajuda feminina.

- Da tua parte?

- Serei a tua secretária, certo? – ela encolheu os ombros - Para alguma coisa hei-de servir.

- Espera, espera, espera. Como sei que não vais fazer de propósito para me fazer passar figura de parvo e assim afastar ainda mais a Ariel de mim?

A sereia loura parou para pensar. Revirou os olhos lentamente, numa espécie de reflexão cuidada. Respondeu:

- Porque se conseguires mesmo conquistar a Ariel e ganhar a sua confiança podes finalmente cair nas boas graças totais de Poseidon. E da Ariel. E pedir da sua parte o tal extra grau de confiança que tanto desejavas, o que implica, por exemplo, trabalhar até tarde. E assim, como quem não quer a coisa, ganhas a tua esposa querida e uma secretária de confiança.

A sereia loura tinha uma forma extremamente desconfortável mas ao mesmo tempo atractiva de olhar para mim nos olhos.

- Isto está a aproximar-se perigosamente daqueles livros com homens despidos e musculados na capa que a minha mãe lia e que lhe davam calores – comentei.

- Vamos começar, humano. Percebes alguma coisa sobre como agradar a uma sereia?

***

Poseidon estava sentado na sua enorme poltrona, localizada num salão gigantesco com cúpulas e colunatas lindíssimas no centro do palácio. Remexia por entre a correspondência do dia. Coisas de governante. As portas do salão abriram-se e Ariel entrou a nadar.

- Meu pai, queria ver-me?

Poseidon largou as cartas no seu colo e fez cara de caso.

- Tenho de ser sincero contigo. Não respeitei na totalidade a tua opinião quando a decisão referente ao Smith estava a ser tomada. Aliás, não tiveste grande oportunidade sequer para me dizer o que achas do homem que no fundo será teu marido. Queria, por isso, pedir desculpas. Fui um terrível diplomata e um pai desinteressado.

Ariel não disse nada, sabia que o pai tinha razão. Aliás, a sua pouco normal sensibilidade surpreendeu-a.

- No entanto… - continuou Poseidon.

“Porra”, pensou Ariel.

- Temos de admitir que não ficará bem às criaturas dos mares, muito menos àqueles invejosos dos Atlantes, que o neto de Poseidon, filho de um encontro irresponsável entre uma sereia legítima e um marujo qualquer, cresça sem um pai para o ensinar a jogar futebol e a ligar a Powerbox às televisões. Consequentemente, devo ordenar-te educadamente que te instales com Smith no quarto do Principado. Viverão como um casal pelo menos até o bebé nascer.

Ariel estava vermelha e tremia. Estava furiosa e comportava-se da forma mais estereotipada de todas.

- A propósito, veio correio para ti – disse Poseidon, estendendo-lhe uma carta. Ariel agarrou-a. O selo tinha o desenho de um rato sorridente, com duas orelhas redondas e anatomicamente incorrectas. Ariel sorriu mais do que o rato do desenho.

- É alguma coisa importante? – perguntou o pai, remexendo pelo resto do correio.

- Não, meu pai. Muito obrigado.

Ariel nadou dali para fora rapidamente, aconchegando a carta perto do peito como quem transporta um diamante ou o último pedaço de carne num buffet.

- Eu sabia que ela ia compreender – murmurou Poseidon. Uma carta chamou-lhe a atenção. Estava assinada com uma caligrafia cuidada, em tinta lilás: Princesa dos Mares. Sorriu, sentiu-se um miúdo, e enfiou a calça num dos bolsos para a poder ler mais tarde na privacidade dos seus aposentos.

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