quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Homem que Reconhecia as Mulheres pelo Rabo (parte 3 de 4)

Dias depois as audiências começavam. A rapariga foi com ele até ao tribunal, e fez-lhe companhia até ter de se ir sentar na assistência. A sala tinha alguns jornalistas e uns quantos curiosos a assistir. Ao centro, o juiz estava sentado numa cadeira de couro atrás de uma cúbica e enorme secretária, de martelo na mão e ar severo. À direita, os doze cidadãos do júri, com caras sonolentas e aborrecidas, fingiam tomar notas num caderninho que usavam para esconder o Sudoku. Os editores da revista Rabos da Semana alinhavam-se ao lado do seu advogado, e do lado oposto da sala encontrava-se o advogado da Bundas de Domingo, um homenzinho pequeno e de cabelo lambido para o lado. O homem foi sentar-se junto do advogado, que lhe perguntou o nome e cumprimentou. Disse-lhe que seria a primeira testemunha a ser interrogada, e que apenas tinha de dizer a verdade e nada mais que a verdade. Os editores da Bundas da Semana cumprimentaram-no também, com sorrisos abertos e apertos de mão calorosos.

- Está aberta a sessão! – resmungou o juiz, martelando na madeirinha circular à sua frente – Queiram os senhores advogados seguir com as alegações iniciais. Primeiro a acusação. Advogado Paulo Marques, queira começar.

O advogado minúsculo e de cabelo lambido levantou-se da cadeira e caminhou até ao centro da sala, apertando o botão do casaco aos quadradinhos.

- Senhor doutor juiz – disse ele, com ar solene – Estamos aqui hoje porque vivemos num estado de direito, onde a honestidade e respeito com a população são valores imprescindíveis. Por isso, quando alguém ousa desequilibrar a sensível balança da justiça, sempre surge alguém para a defender e voltar a pôr no sítio. Há uma semana atrás, senhor doutor juiz, os meus clientes, os editores de uma popular publicação dedicava a rabos femininos, receberam uma carta curiosa. Essa carta, de um leitor anónimo, denunciava uma situação inimaginável a todos nós: a Rabos da Semana, eterna rival dos meus clientes, ousava, em todas as suas edições, repetir sempre os mesmos rabos! Todas as semanas, os leitores da Rabos da Semana eram enganados e levados a acreditar por aqueles senhores – disse o advogado, apontando para os editores da Rabos da Semana de forma dramática– que estavam a ver rabos inteiramente novos. Felizmente, o leitor anónimo resolveu sair do anonimato e está aqui hoje connosco, para nos ajudar a terminar esta falsidade e a exigir da Rabos da Semana um pedido de desculpas público e pesada indemnização a todos os seus leitores, por danos morais causados em mais de dois anos de publicações enganosas! Muito obrigado.

O advogado da defesa foi a seguir, desmentindo as acusações e relembrando que um leitor anónimo não podia de nenhuma forma identificar os rabos supostamente repetidos, pois nenhum rabo é suficientemente único. Comprometeu-se a trazer um especialista em medicina plástica e reafirmou a falsidade das acusações.

O homem foi testemunhar a seguir. Chamado ao púlpito, olhou rapidamente para a rapariga que achava ser a sua vizinha, se bem que dali lhe fosse difícil, por entre as pessoas da assistência, ver-lhe o rabo. Ela sorriu-lhe e acenou-se, pelo que deduziu que era ela mesmo.

- Muito bom dia, como está? – perguntou-lhe o advogado da acusação, com um sorriso de vendedor.

- Muito bem, obrigado.

- Pode dizer-nos o seu nome, morada, e dados pessoais para que fiquem registados?

O homem assim fez.

- É leitor de alguma das publicações aqui representadas?

- Sim - disse o homem, engolindo em seco. Não tinha grande vocação para falar em público – Sou leitor da Rabos da Semana.

- Considera-se um leitor atento e crítico?

- Sim, sem dúvida.

- Aprecia rabos?

- Sim, de certa forma.

- Diga-me… O que viu quando olhou para as revistas Rabos da Semana?

- Rabos.

- E havia nesses rabos alguma particularidade que lhe chamasse a atenção?

- Sim. Na primeira semana em que comprei a revista nada estranhei, comprei-a apenas por curiosidade. Mas na segunda edição que adquiri, notei algo estranho e decidi comparar as duas edições.

- E o que o levou a estranhar?

- Os rabos da segunda edição que tinha comprado eram iguais aos da primeira edição.

- Iguais? Como assim? – perguntou o advogado, fazendo-se passar por confuso.

- Rabos da primeira edição apareciam de novo na segunda, com a agravante de que vinham acompanhados de uma legenda a garantir-nos que eram rabos novos e nunca antes vistos. Ora, isso é uma total falta de…

- Objecção, senhor doutor juiz! – gritou o advogado da defesa, levantando-se – A testemunha deve concentrar-se nos factos e não nas suas opiniões pessoais.

- Continue – ordenou o juiz, sem tirar os olhos do homem.

- Bem, era isso – disse o homem.

- Diga-me uma coisa – começou o advogado, levantando uma carta manuscrita à altura dos olhos – Reconhece esta folha de papel?

- Sim. É uma fotocópia da carta que escrevi para a redacção da Rabos da Semana.

- Pode ler-nos este excerto, por favor? – pediu o advogado, estendendo-lhe a carta e indicando com o dedo um dos parágrafos.

- “ … não posso deixar de me indignar com um facto com o qual me dei conta: as vossas edições integram exactamente os mesmos rabos, de semana a semana. Pior, fazem-no com o maior dos descaramentos, fazendo-os passar por rabos exclusivos e novidades da estação. Não posso deixar de me sentir enganado como leitor, e tenho a certeza que outros fãs da vossa revista sentiriam o mesmo se isto chegasse aos seus ouvidos.”

- Portanto, o senhor enviou uma carta à redacção dos acusados, chamando-lhes a atenção para o que está aqui em discussão.

- Sim.

- E que resposta obteve?

- Enviaram-me uma carta para casa, dizendo que se tratavam de falsas acusações.

- Falsas acusações?

- Sim. Que os rabos eram totalmente novos todas as semanas.

- O que sabe tratar-se de uma calúnia, certo?

- Objecção, senhor doutor juiz! Condução da testemunha! – vociferou o advogado da acusação de um salto. O juiz ignorou-o.

- Sim, como leitor daquela revista senti-me indignado.

- E o que fez?

- Tomei conhecimento da existência da Bundas de Domingo que, constatei, apresentava essa sim rabos novos todas as semanas…

- Objecção, senhor doutor juiz! – voltou a gritar o advogado da acusação - Publicidade descarada!

- Continue – disse o juiz para o homem, ignorando a defesa mais uma vez.

- … E enviei-lhes uma carta explicando a situação.

- Consegue reconhecer essa carta que escreveu? – perguntou o advogado, pegando noutra folha de papel manuscrito e estendendo-lha.

- Sim, é essa mesma.

- Pode ler-nos este excerto?

- “Achei ser de vosso interesse reportar-vos que a Rabos da Semana usa, em todas as suas edições, sempre os mesmos rabos, apenas mudando o ângulo ou a iluminação da fotografia para dar a nós, leitores, a ilusão de que compramos todas as semanas um semanário cheio de rabos novos e exclusivos.”

- Portanto, para além de repetir sempre os mesmos rabos… - disse calmamente o advogado, como que a tentar perceber uma coisa muito complicada – A Rabos da Semana tinha o cuidado e o sangue frio de os fotografar em posições e condições de iluminação diferentes, não é verdade…?

- Objecção, senhor doutor juiz! Factos, factos!

- Cale-se – resmungou o juiz.

- Sim, é verdade – concluiu o homem.

- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, senhor doutor juiz – disse o advogado, indo sentar-se com ar satisfeito e piscando o olho homem.

- Queira a defesa avançar para o contra-interrogatório – recitou monocordicamente o juiz. O advogado da acusação levantou-se e caminhou até ao centro da sala.

- Diga-me uma coisa – começou, dirigindo-se ao homem – Qual é o seu emprego actual?

- Objecção, senhor doutor juiz – disse o advogado da acusação, levantando o corpo minúsculo da cadeira – Totalmente irrelevante.

- Responda – ordenou o juiz ao homem, que engoliu em seco e respondeu a medo.

- Bem, actualmente encontro-me desempregado. Procuro emprego há já algumas semanas.

- E ainda não encontrou nenhum?

- Infelizmente não.

- De certo que há algum emprego dentro das suas habilitações literárias que possa desempenhar com facilidade. Diga-me, é licenciado em…?

- Objecção, senhor doutor juiz!

- A testemunha responde.

- Bem… Infelizmente não segui o ensino superior.

- Então quais são as suas habilitações literárias? Praticamente nenhumas?

- Objecção! Senhor doutor juiz! Irrelevante!

- A testemunha responde.

- Bem… - disse o homem.

- Senhor doutor juiz, a defesa está claramente a tentar humilhar a minha testemunha e a desviar-nos dos assuntos aqui em discussão! – reclamou o advogado de acusação.

- A defesa quer clarificar qual a sua linha de raciocínio? – convidou o juiz.

- Claro, meritíssimo. A defesa procura apenas encontrar na testemunha os fundamentos sobre os quais acusou os meus clientes há uma semana. É especialista em anatomia?

- Bem, não, mas….

- Mas sente-se à vontade para falar de um assunto delicado como este?

- Repare… - começou o homem, mas não conseguiu acabar.

- É portanto justo afirmar que o senhor não tem qualquer fundamento material ou argumento teórico que apoie a sua acusação?

- Eu… Bem… Como explicar…?

- Não tenho mais perguntas, senhor doutor juiz – disse o advogado da defesa, que regressou ao seu lugar com um leve sorriso de orgulho profissional. Remexeu nuns papéis e anunciou a sua testemunha. Tratava-se de um médico de barbas brancas nariz arredondado, que se sentou no banco das testemunhas substituindo o homem.

- Senhor doutor, diga a este tribunal qual é a sua área de conhecimento. Em que ramo da medicina trabalha? – começou por perguntar o advogado da defesa.

- Anatomia – disse pesadamente o médico – Sou especializado em anatomia humana, essencialmente da cintura para baixo.

- Pode explicar a este tribunal em que consiste a sua área de especialidade?

- A anatomia visa estudar a constituição física dos indivíduos, passando pelas medidas, proporções e relações dos músculos, ossos, cartilagens…

- E disse-nos ser especialista em…?

- Anatomia focalizada nos membros inferiores, coxas, nádegas e pés.

- É, portanto, um especialista, entre outras coisas, de rabos?

- Dito de forma populista, está certo.

- Seria então capaz de, se lhe apresentássemos dois rabos distintos, os diferenciar?

- Dependendo do número de parâmetros a serem analisados, talvez. Repare, não há dois rabos iguais – disse o académico - Se bem que a estrutura óssea não varie muito na sua constituição e proporções de homem para homem, há outros factores a serem tidos em conta. A musculatura, maior ou menos índice de gordura, a forma como essa musculatura e essa gordura se encontram distribuídas…

- E factores como a textura ou cor da pele, quantidade de pêlos…?

- Isso seria irrelevante se quiséssemos ordenar e classificar um grupo de rabos – explicou o médico com a maior seriedade – Porque dois rabos podem ser muito parecidos quando vistos a olho nu.

- Considera então excluída a hipótese da distinção de rabos apenas munido da sua observação?

- Sem medições, cálculos ou análises aprofundadas? Totalmente.

- Considera ser fácil a um leigo, portanto, olhar para dois rabos diferentes, de pessoas distintas, e identificá-los erradamente como sendo o mesmo rabo?

- Sem dúvida que aconteceria com facilidade se o tentassem.

- Não tenho mais perguntas – terminou o advogado da defesa, satisfeitíssimo.

O advogado da acusação levantou-se e dirigiu-se à testemunha.

- Senhor doutor, acabou de dizer que é fácil a um leigo confundir-se e identificar como sendo o mesmo rabo dois rabos parecidos, mas diferentes. Não é assim?

- Com certeza, é uma confusão comum.

- Pergunto-lhe: o inverso também pode acontecer?

- O inverso?

- Sim. Imagine que em vez de dois rabos diferentes lhe coloco à frente duas fotos do mesmo rabo, exactamente o mesmo rabo, mas em ângulos e condições de luz diferentes. Não seria fácil a um leigo achar que estava na presença de dois rabos diferentes?

- Não percebo o que quer dizer…

- Pergunto-lhe, senhor doutor, se não seria fácil a um qualquer leitor da Rabos da Semana olhar para duas fotografias de exactamente o mesmo rabo, mas tiradas em condições diferentes, e achar-se na presença de dois rabos distintos.

O médico olhou nervosamente para o advogado da defesa, que lhe devolveu o olhar de surpresa.

- Bem… Suponho que sim, seria.

- Ou seja, o que me está a dizer é que se a Rabos da Semana publicasse de edição em edição sempre os mesmos rabos, mas fotografados em condições e ângulos diferentes, ninguém daria pela semelhança… A menos que se tratassem de especialistas em anatomia, correcto?

O médico gesticulou afirmativamente, contrariado.

- O que significa que o leitor comum da Rabos da Semana pode muito bem estar a comprar revistas com rabos repetidos sem nunca se ter dado conta, não é?

O médico começou a suar.

- Outra coisa, senhor doutor – continuou o advogado, na calma e descontracção de quem já pressente o sucesso – Se lhe mostrasse um atestado médico, seria capaz de verificar a sua veracidade?

- Hum, talvez, talvez… - resmungou o médico, tentando recuperar a compostura e a seriedade.

O advogado da acusação foi até à sua mesa e regressou com a fotocópia do atestado passado pela psicanalista do homem, quando ainda era criança.

- Consegue compreender o que aí está escrito?

O médico leu o atestado, estupefacto.

- Mas… isto é…

- Diga, diga!

- É estranhíssimo!

- Diga-nos. Esse atestado parece-lhe falso?

- Não, de forma alguma. Inclusive está carimbado.

- E o que diz?

- Bem… Diz que a criança em questão tem um desconhecido e incurável distúrbio do foro sensorial, que o impede de reconhecer as mulheres pela cara, voz, cabelo ou resto do corpo, apenas pela observação do respectivo rabo.

- Este atestado, meritíssimo – anunciou o advogado, de cabeça erguida – Foi passado à minha testemunha quando esta tinha apenas 9 anos. A testemunha que aqui ouvimos e que fez a acusação tem um estranho distúrbio que a leva a conseguir distinguir as mulheres apenas e unicamente através do rabo!

O juiz estranhava tudo aquilo, os membros do júri também.

- O que significa, meritíssimo, que o homem por detrás desta acusação consegue melhor que ninguém distinguir, apenas com um olhar de alguns segundos, todas as mulheres que já conheceu. Doutor, dirijo-me a si para terminar. Um homem com este tipo de dom, que só seria capaz de reconhecer a própria mãe se lhe visse o rabo… Não o acha o melhor candidato a nos garantir que os rabos exclusivos e nunca antes vistos da Rabos da Semana são, de facto, sempre os mesmos?

O médico acenou afirmativamente, depois de uns segundos pensativos. O advogado da defesa enterrava a cabeça nas mãos, em desespero. O júri parecia agradado com o espectáculo. O homem sorriu e sentiu dentro de si um orgulho imenso. A justiça seria feita!

Nesse dia jantou em casa da rapariga, com quem comemorou o emocionante dia em tribunal. Mas a alegria durou pouco. O telefone tocou-lhe a meio da noite, acordando-o estremunhado.

- Estou? – disse o homem, encostando o auscultador à orelha.

- Estou sim? Desculpe incomodá-lo a esta hora tão tardia.

O homem reconheceu a voz do advogado da Bundas de Domingo.

- Ora essa. Aconteceu alguma coisa?

- Aconteceu, sim. Uma coisa terrível. Tem de vir para cá imediatamente. Tem a morada do meu escritório?

O homem tinha-a.

- Mas de que se trata? – perguntou o homem, esfregando a cara para se manter alerta.

- De um crime, um horrível crime. Houve um assassinato... e se o meu instinto profissional não me engana, o senhor pode muito bem ser o próximo alvo.


As coisas complicam-se. O julgamento está terminado, mas uma ameaça paira sobre o protagonista. Poderá a indústria corrupta das revistas de rabos femininos levar a melhor? Reúnam a família e amigos para a conclusão desta mini-série já amanhã.

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