Dias depois as audiências começavam. A rapariga foi com ele até ao tribunal, e fez-lhe companhia até ter de se ir sentar na assistência. A sala tinha alguns jornalistas e uns quantos curiosos a assistir. Ao centro, o juiz estava sentado numa cadeira de couro atrás de uma cúbica e enorme secretária, de martelo na mão e ar severo. À direita, os doze cidadãos do júri, com caras sonolentas e aborrecidas, fingiam tomar notas num caderninho que usavam para esconder o Sudoku. Os editores da revista Rabos da Semana alinhavam-se ao lado do seu advogado, e do lado oposto da sala encontrava-se o advogado da Bundas de Domingo, um homenzinho pequeno e de cabelo lambido para o lado. O homem foi sentar-se junto do advogado, que lhe perguntou o nome e cumprimentou. Disse-lhe que seria a primeira testemunha a ser interrogada, e que apenas tinha de dizer a verdade e nada mais que a verdade. Os editores da Bundas da Semana cumprimentaram-no também, com sorrisos abertos e apertos de mão calorosos.
- Está aberta a sessão! – resmungou o juiz, martelando na madeirinha circular à sua frente – Queiram os senhores advogados seguir com as alegações iniciais. Primeiro a acusação. Advogado Paulo Marques, queira começar.
O advogado minúsculo e de cabelo lambido levantou-se da cadeira e caminhou até ao centro da sala, apertando o botão do casaco aos quadradinhos.
- Senhor doutor juiz – disse ele, com ar solene – Estamos aqui hoje porque vivemos num estado de direito, onde a honestidade e respeito com a população são valores imprescindíveis. Por isso, quando alguém ousa desequilibrar a sensível balança da justiça, sempre surge alguém para a defender e voltar a pôr no sítio. Há uma semana atrás, senhor doutor juiz, os meus clientes, os editores de uma popular publicação dedicava a rabos femininos, receberam uma carta curiosa. Essa carta, de um leitor anónimo, denunciava uma situação inimaginável a todos nós: a Rabos da Semana, eterna rival dos meus clientes, ousava, em todas as suas edições, repetir sempre os mesmos rabos! Todas as semanas, os leitores da Rabos da Semana eram enganados e levados a acreditar por aqueles senhores – disse o advogado, apontando para os editores da Rabos da Semana de forma dramática– que estavam a ver rabos inteiramente novos. Felizmente, o leitor anónimo resolveu sair do anonimato e está aqui hoje connosco, para nos ajudar a terminar esta falsidade e a exigir da Rabos da Semana um pedido de desculpas público e pesada indemnização a todos os seus leitores, por danos morais causados em mais de dois anos de publicações enganosas! Muito obrigado.
O advogado da defesa foi a seguir, desmentindo as acusações e relembrando que um leitor anónimo não podia de nenhuma forma identificar os rabos supostamente repetidos, pois nenhum rabo é suficientemente único. Comprometeu-se a trazer um especialista em medicina plástica e reafirmou a falsidade das acusações.
O homem foi testemunhar a seguir. Chamado ao púlpito, olhou rapidamente para a rapariga que achava ser a sua vizinha, se bem que dali lhe fosse difícil, por entre as pessoas da assistência, ver-lhe o rabo. Ela sorriu-lhe e acenou-se, pelo que deduziu que era ela mesmo.
- Muito bom dia, como está? – perguntou-lhe o advogado da acusação, com um sorriso de vendedor.
- Muito bem, obrigado.
- Pode dizer-nos o seu nome, morada, e dados pessoais para que fiquem registados?
O homem assim fez.
- É leitor de alguma das publicações aqui representadas?
- Sim - disse o homem, engolindo
- Considera-se um leitor atento e crítico?
- Sim, sem dúvida.
- Aprecia rabos?
- Sim, de certa forma.
- Diga-me… O que viu quando olhou para as revistas Rabos da Semana?
- Rabos.
- E havia nesses rabos alguma particularidade que lhe chamasse a atenção?
- Sim. Na primeira semana em que comprei a revista nada estranhei, comprei-a apenas por curiosidade. Mas na segunda edição que adquiri, notei algo estranho e decidi comparar as duas edições.
- E o que o levou a estranhar?
- Os rabos da segunda edição que tinha comprado eram iguais aos da primeira edição.
- Iguais? Como assim? – perguntou o advogado, fazendo-se passar por confuso.
- Rabos da primeira edição apareciam de novo na segunda, com a agravante de que vinham acompanhados de uma legenda a garantir-nos que eram rabos novos e nunca antes vistos. Ora, isso é uma total falta de…
- Objecção, senhor doutor juiz! – gritou o advogado da defesa, levantando-se – A testemunha deve concentrar-se nos factos e não nas suas opiniões pessoais.
- Continue – ordenou o juiz, sem tirar os olhos do homem.
- Bem, era isso – disse o homem.
- Diga-me uma coisa – começou o advogado, levantando uma carta manuscrita à altura dos olhos – Reconhece esta folha de papel?
- Sim. É uma fotocópia da carta que escrevi para a redacção da Rabos da Semana.
- Pode ler-nos este excerto, por favor? – pediu o advogado, estendendo-lhe a carta e indicando com o dedo um dos parágrafos.
- “ … não posso deixar de me indignar com um facto com o qual me dei conta: as vossas edições integram exactamente os mesmos rabos, de semana a semana. Pior, fazem-no com o maior dos descaramentos, fazendo-os passar por rabos exclusivos e novidades da estação. Não posso deixar de me sentir enganado como leitor, e tenho a certeza que outros fãs da vossa revista sentiriam o mesmo se isto chegasse aos seus ouvidos.”
- Portanto, o senhor enviou uma carta à redacção dos acusados, chamando-lhes a atenção para o que está aqui em discussão.
- Sim.
- E que resposta obteve?
- Enviaram-me uma carta para casa, dizendo que se tratavam de falsas acusações.
- Falsas acusações?
- Sim. Que os rabos eram totalmente novos todas as semanas.
- O que sabe tratar-se de uma calúnia, certo?
- Objecção, senhor doutor juiz! Condução da testemunha! – vociferou o advogado da acusação de um salto. O juiz ignorou-o.
- Sim, como leitor daquela revista senti-me indignado.
- E o que fez?
- Tomei conhecimento da existência da Bundas de Domingo que, constatei, apresentava essa sim rabos novos todas as semanas…
- Objecção, senhor doutor juiz! – voltou a gritar o advogado da acusação - Publicidade descarada!
- Continue – disse o juiz para o homem, ignorando a defesa mais uma vez.
- … E enviei-lhes uma carta explicando a situação.
- Consegue reconhecer essa carta que escreveu? – perguntou o advogado, pegando noutra folha de papel manuscrito e estendendo-lha.
- Sim, é essa mesma.
- Pode ler-nos este excerto?
- “Achei ser de vosso interesse reportar-vos que a Rabos da Semana usa, em todas as suas edições, sempre os mesmos rabos, apenas mudando o ângulo ou a iluminação da fotografia para dar a nós, leitores, a ilusão de que compramos todas as semanas um semanário cheio de rabos novos e exclusivos.”
- Portanto, para além de repetir sempre os mesmos rabos… - disse calmamente o advogado, como que a tentar perceber uma coisa muito complicada – A Rabos da Semana tinha o cuidado e o sangue frio de os fotografar em posições e condições de iluminação diferentes, não é verdade…?
- Objecção, senhor doutor juiz! Factos, factos!
- Cale-se – resmungou o juiz.
- Sim, é verdade – concluiu o homem.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha, senhor doutor juiz – disse o advogado, indo sentar-se com ar satisfeito e piscando o olho homem.
- Queira a defesa avançar para o contra-interrogatório – recitou monocordicamente o juiz. O advogado da acusação levantou-se e caminhou até ao centro da sala.
- Diga-me uma coisa – começou, dirigindo-se ao homem – Qual é o seu emprego actual?
- Objecção, senhor doutor juiz – disse o advogado da acusação, levantando o corpo minúsculo da cadeira – Totalmente irrelevante.
- Responda – ordenou o juiz ao homem, que engoliu em seco e respondeu a medo.
- Bem, actualmente encontro-me desempregado. Procuro emprego há já algumas semanas.
- E ainda não encontrou nenhum?
- Infelizmente não.
- De certo que há algum emprego dentro das suas habilitações literárias que possa desempenhar com facilidade. Diga-me, é licenciado em…?
- Objecção, senhor doutor juiz!
- A testemunha responde.
- Bem… Infelizmente não segui o ensino superior.
- Então quais são as suas habilitações literárias? Praticamente nenhumas?
- Objecção! Senhor doutor juiz! Irrelevante!
- A testemunha responde.
- Bem… - disse o homem.
- Senhor doutor juiz, a defesa está claramente a tentar humilhar a minha testemunha e a desviar-nos dos assuntos aqui em discussão! – reclamou o advogado de acusação.
- A defesa quer clarificar qual a sua linha de raciocínio? – convidou o juiz.
- Claro, meritíssimo. A defesa procura apenas encontrar na testemunha os fundamentos sobre os quais acusou os meus clientes há uma semana. É especialista em anatomia?
- Bem, não, mas….
- Mas sente-se à vontade para falar de um assunto delicado como este?
- Repare… - começou o homem, mas não conseguiu acabar.
- É portanto justo afirmar que o senhor não tem qualquer fundamento material ou argumento teórico que apoie a sua acusação?
- Eu… Bem… Como explicar…?
- Não tenho mais perguntas, senhor doutor juiz – disse o advogado da defesa, que regressou ao seu lugar com um leve sorriso de orgulho profissional. Remexeu nuns papéis e anunciou a sua testemunha. Tratava-se de um médico de barbas brancas nariz arredondado, que se sentou no banco das testemunhas substituindo o homem.
- Senhor doutor, diga a este tribunal qual é a sua área de conhecimento. Em que ramo da medicina trabalha? – começou por perguntar o advogado da defesa.
- Anatomia – disse pesadamente o médico – Sou especializado em anatomia humana, essencialmente da cintura para baixo.
- Pode explicar a este tribunal em que consiste a sua área de especialidade?
- A anatomia visa estudar a constituição física dos indivíduos, passando pelas medidas, proporções e relações dos músculos, ossos, cartilagens…
- E disse-nos ser especialista em…?
- Anatomia focalizada nos membros inferiores, coxas, nádegas e pés.
- É, portanto, um especialista, entre outras coisas, de rabos?
- Dito de forma populista, está certo.
- Seria então capaz de, se lhe apresentássemos dois rabos distintos, os diferenciar?
- Dependendo do número de parâmetros a serem analisados, talvez. Repare, não há dois rabos iguais – disse o académico - Se bem que a estrutura óssea não varie muito na sua constituição e proporções de homem para homem, há outros factores a serem tidos
- E factores como a textura ou cor da pele, quantidade de pêlos…?
- Isso seria irrelevante se quiséssemos ordenar e classificar um grupo de rabos – explicou o médico com a maior seriedade – Porque dois rabos podem ser muito parecidos quando vistos a olho nu.
- Considera então excluída a hipótese da distinção de rabos apenas munido da sua observação?
- Sem medições, cálculos ou análises aprofundadas? Totalmente.
- Considera ser fácil a um leigo, portanto, olhar para dois rabos diferentes, de pessoas distintas, e identificá-los erradamente como sendo o mesmo rabo?
- Sem dúvida que aconteceria com facilidade se o tentassem.
- Não tenho mais perguntas – terminou o advogado da defesa, satisfeitíssimo.
O advogado da acusação levantou-se e dirigiu-se à testemunha.
- Senhor doutor, acabou de dizer que é fácil a um leigo confundir-se e identificar como sendo o mesmo rabo dois rabos parecidos, mas diferentes. Não é assim?
- Com certeza, é uma confusão comum.
- Pergunto-lhe: o inverso também pode acontecer?
- O inverso?
- Sim. Imagine que em vez de dois rabos diferentes lhe coloco à frente duas fotos do mesmo rabo, exactamente o mesmo rabo, mas em ângulos e condições de luz diferentes. Não seria fácil a um leigo achar que estava na presença de dois rabos diferentes?
- Não percebo o que quer dizer…
- Pergunto-lhe, senhor doutor, se não seria fácil a um qualquer leitor da Rabos da Semana olhar para duas fotografias de exactamente o mesmo rabo, mas tiradas em condições diferentes, e achar-se na presença de dois rabos distintos.
O médico olhou nervosamente para o advogado da defesa, que lhe devolveu o olhar de surpresa.
- Bem… Suponho que sim, seria.
- Ou seja, o que me está a dizer é que se a Rabos da Semana publicasse de edição em edição sempre os mesmos rabos, mas fotografados em condições e ângulos diferentes, ninguém daria pela semelhança… A menos que se tratassem de especialistas em anatomia, correcto?
O médico gesticulou afirmativamente, contrariado.
- O que significa que o leitor comum da Rabos da Semana pode muito bem estar a comprar revistas com rabos repetidos sem nunca se ter dado conta, não é?
O médico começou a suar.
- Outra coisa, senhor doutor – continuou o advogado, na calma e descontracção de quem já pressente o sucesso – Se lhe mostrasse um atestado médico, seria capaz de verificar a sua veracidade?
- Hum, talvez, talvez… - resmungou o médico, tentando recuperar a compostura e a seriedade.
O advogado da acusação foi até à sua mesa e regressou com a fotocópia do atestado passado pela psicanalista do homem, quando ainda era criança.
- Consegue compreender o que aí está escrito?
O médico leu o atestado, estupefacto.
- Mas… isto é…
- Diga, diga!
- É estranhíssimo!
- Diga-nos. Esse atestado parece-lhe falso?
- Não, de forma alguma. Inclusive está carimbado.
- E o que diz?
- Bem… Diz que a criança em questão tem um desconhecido e incurável distúrbio do foro sensorial, que o impede de reconhecer as mulheres pela cara, voz, cabelo ou resto do corpo, apenas pela observação do respectivo rabo.
- Este atestado, meritíssimo – anunciou o advogado, de cabeça erguida – Foi passado à minha testemunha quando esta tinha apenas 9 anos. A testemunha que aqui ouvimos e que fez a acusação tem um estranho distúrbio que a leva a conseguir distinguir as mulheres apenas e unicamente através do rabo!
O juiz estranhava tudo aquilo, os membros do júri também.
- O que significa, meritíssimo, que o homem por detrás desta acusação consegue melhor que ninguém distinguir, apenas com um olhar de alguns segundos, todas as mulheres que já conheceu. Doutor, dirijo-me a si para terminar. Um homem com este tipo de dom, que só seria capaz de reconhecer a própria mãe se lhe visse o rabo… Não o acha o melhor candidato a nos garantir que os rabos exclusivos e nunca antes vistos da Rabos da Semana são, de facto, sempre os mesmos?
O médico acenou afirmativamente, depois de uns segundos pensativos. O advogado da defesa enterrava a cabeça nas mãos,
Nesse dia jantou em casa da rapariga, com quem comemorou o emocionante dia
- Estou? – disse o homem, encostando o auscultador à orelha.
- Estou sim? Desculpe incomodá-lo a esta hora tão tardia.
O homem reconheceu a voz do advogado da Bundas de Domingo.
- Ora essa. Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu, sim. Uma coisa terrível. Tem de vir para cá imediatamente. Tem a morada do meu escritório?
O homem tinha-a.
- Mas de que se trata? – perguntou o homem, esfregando a cara para se manter alerta.
- De um crime, um horrível crime. Houve um assassinato... e se o meu instinto profissional não me engana, o senhor pode muito bem ser o próximo alvo.
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