José Carlos e Manuel Resende conheceram-se pela primeira vez (que redundância, se estavam a conhecer-se tinha de ser pela primeira vez) quando o primeiro entrou num restaurante Burger King sentindo larica no estômago, e o segundo tinha aceite um emprego nesse mesmo restaurante. Manuel Resende perguntou ao cliente José Carlos,
- Boa noite, sou o Manuel. Posso anotar o seu pedido?
José Carlos olhava para os placards gigantes e coloridos, à procura de um hambúrguer volumoso.
- Podes. Quero o Dóble Cheese Bacon. Vocês não têm uma coisa tipo menu gigante?
Manuel Resende hesitou, pensou por momentos, estava no seu primeiro dia. Lembrou-se:
- Temos sim, o menu XXL. São mais cinquenta cêntimos.
- É verdade que esfolam animais vivos para fazer a carne? – perguntou José Carlos, careca, trinta e cinco anos, olhando Manuel Resende com uma curiosidade genuína.
- Teria de perguntar ao meu superior – respondeu estupidamente Manuel Resende – mas penso que não.
- Óptimo. Venha esse Bacon Dóble não sei quê. Não percebo nada disto, é a primeira vez que cá venho – resmungou José Carlos, e Manuel Resende, experimentando com os botões da máquina à sua frente, pensou “Já somos dois”.
***
Um ano tinha passado e Manuel Resende já sabia mexer na máquina, aceitava e despachava pedidos com uma rapidez infalível, nunca deixava cair batatas ou entornar bebidas. Foi empregado do mês umas quantas vezes, e os seus superiores diziam-lhe que se continuasse assim iria longe. José Carlos chegou-se à frente, era a sua vez, não se podia aproximar muito mais do balcão por causa da barriga que tinha crescido entretanto,
- Quero um Double Cheese Bacon, XXL, com Coca-cola sem gelo e maionese para as batatas. E um sundae com dupla dose de chocolate e avelãs – não precisou sequer de olhar para os placards. Tirou a quantia quase certa do bolso, para facilitar os trocos. Manuel Resende estendeu-lhe o tabuleiro e José Carlos aceitou-o. Foi comer para uma mesa ali perto, e Manuel Resende já estava a atender uma mulher com duas crianças quando pensou “Aquele já o conheço, é cliente habitual”.
***
José Carlos, gordo, arredondado, aproximou-se do balcão onde um estagiário registava pedidos. Disse o estagiário,
- Boa tarde, o meu, hum… - tossiu – É André, em que posso ser-lhe útil aliás indicar-lhe o pedido?
José Carlos soltou uma gargalhada divertida, vinda das profundezas de um corpo obeso.
- Bem, tu és novo por aqui!
Manuel Resende, roupa diferente dos outros trabalhadores e transportador de uma tabuleta junto ao mamilo que dizia SUPERVISOR DE LOJA, aproximou-se sorrindo.
- Queira desculpar, aqui o André está no seu primeiro dia. André, regista o pedido do senhor.
André tremia por todos os lados, José Carlos debitou o seu pedido habitual com toda a prática do mundo, Manuel Resende pensava:
“Meu Deus, como este está a ficar gordo”
***
Manuel Resende, quarenta anos, aproximou-se da porta do restaurante que ia visitar. A última vez que abrira esta porta fora para sair, antes como Supervisor de Loja, hoje como Coordenador Regional, que bom que é regressar ao local de origem para assim se ter melhor noção do quanto se subiu na vida. Vinha para falar com o Supervisor de Loja, um tipo chamado André Castro, sobre questões administrativas. Entrou, pensou, “Curioso, sempre trabalhei aqui e nunca aqui comi”, aproximou-se do balcão e pediu um hambúrguer dos pequenos.
Levou o tabuleiro com o hambúrguer e um sundae simples para uma mesa, a seu lado arrotou alguém. Manuel Resende olhou para o lado, ali estava um tipo careca e gordo, de cabelos naquela fronteira entre a cor e energia da juventude e o grisalho da idade. “Caramba”, pensou Manuel Resende, “Como este está!”
Manuel Resende comeu o seu hambúrguer e o seu sundae, já se levantara antes mesmo de José Carlos acabar de comer as batatas.
***
Manuel Resende sentou-se rodeado por outros homens de fato, todos eles da elite administrativa da empresa. Manuel Resende reflectiu, levou as mãos ao queixo e apoiou-o nelas.
- Quem é este individuo, afinal?
- Um tal de José Carlos Martinho – um dos homens de fato estendeu-lhe um jornal, lá está a foto do homem gordo com a família para puxar à lagrimita. A notícia dizia em letras gordas, HOMEM MORRE, DEIXA FILHOS PEQUENOS.
- Querem uma indemnização de dois milhões de euros por danos irreparáveis ao equilíbrio emocional da família – informou outro dos homens de fato – Aparentemente este tipo comeu dos nossos hambúrgueres todos os dias da sua vida, afogou-se em maionese e isso entupiu-lhe as artérias.
- Se podia ter comido saladas? – perguntou outro dos administrativos de sobrancelhas levantadas – Podia, mas escolheu a carne processada. Que se dane para isto, mandemos a malta do departamento jurídico esmagar estes oportunistas. Não estamos na América, lá é que se culpa quem fez a bala pela morte de quem levou com ela no peito.
Manuel Resende ainda tinha os olhos pregados na foto do gordo careca, pensava que o conhecia. Disse em voz baixa:
- Eu matei este homem.
Os administrativos olharam uns para os outros, riram. Um deles:
- Isso é o que eles pensam. Ele é que se matou a si próprio, até parece que fomos nós que lhe metemos a gordura pela boca abaixo.
***
O caixão é enorme, teria mesmo de o ser para alojar tamanho corpo. A família está a um canto, dois miúdos redondos e uma mulher com cara de galinha. Manuel Resende aproxima-se, teve o cuidado de vir de preto e de esperar pelo fim da cerimónia.
- Lamento muito pela sua perda – diz à viúva – e acredite que me sinto pessoalmente responsável.
- Tem de ter muita lata, para matar o meu marido com as suas comidas de plástico e vir para aqui com falinhas mansas – diz a viúva, ofendidíssima. Manuel Resende estende-lhe um envelope, diz-lhe:
- Cortemos os intermediários. Aqui está a sua indemnização, maior do que qualquer valor que conseguirá em tribunal. A minha empresa não teve mão nisto.
- E você teve?
Manuel Resende não responde. A viúva aceita o envelope, por sinal bem recheado, a luta entre ideais éticos dentro da sua cabeça pequena não deve ter sido nada complicada. A família afasta-se. Manuel Resende olha para a terra remexida e fresca, diz em voz alta:
- Eu matei este homem – e acrescenta, em nome do rigor – um pacote de maionese de cada vez.
Tem de rir, não há hipótese. Solta uma gargalhada sincera que ecoa pelo cemitério vazio. Nunca pensou que ia tornar-se assassino quando começou a virar hambúrgueres.
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