quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Perspectivas

É natural que haja, aquando da passagem de um sítio em que está escuro para um sítio onde há luz, um período curto de adaptação. Os olhos procuram focar figuras que antes não estavam ao seu alcance, gerindo a luz que lhe parece furar a córnea. O jovem rapaz olhou em volta, piscando os olhos, um pouco desorientado mas ciente dos sons à sua volta. Urros, gritos, batuques rítmicos que faziam adivinhar um espectáculo do gosto de todos. O rapaz piscou mais os olhos e levantou-se.

Estava num coliseu circular, os seus pés enfiados numa camada de areia, holofotes gigantes apontados ao seu corpo nu. Caramba, sentia-se observado.

- Hei! – gritou alguma coisa – Humano!

O jovem rapaz olhou em frente, de olhos no touro. O touro ergueu as patas, a multidão de figuras escuras, gordas e encornadas aplaudiu.

- Hei, humano! – gritou outra vez.

O jovem pensou, Que raio?

- Anda, humano lindo! – gritou o touro. Segurava um bastão brilhante, atraente.

Ei, aquele tipo está a provocar-me, pensou o jovem rapaz. Deus uns passos em frente.

- Humano lindo! – o touro deitou o peito para fora.

O jovem rapaz pensou, não te ris de mim de certeza, e desatou a correr. A multidão de touros começou a dar com as patas nas bancadas de madeira. Havia o som de uma corneta irritante no ar. O touro à sua frente ergueu o bastão, o jovem rapaz dobrou-se para lhe dar um encontrão, ia rasteirá-lo com os ombros, ia dar-lhe uma lição.

O touro agitou-se no último momento, esquivou-se com uma rapidez que não podia ser adivinhada pelo seu peito gordo e orgulhoso. O bastão com folhos verdes e vermelhos brilhantes transformou-se numa mancha indistinta, o touro atirou o seu peso sobre o do jovem rapaz, e o bastão de ferro enfiou-se na pele do rapaz, sem resistência. Um enchicho de sangue pareceu entusiasmar a multidão. O jovem rapaz caiu de boca na areia, perguntando-se, o que é esta dor que me prende as pernas? Sentiu-se molhado pelas costas abaixo, não sabendo que aquele calor que sentia era o seu sangue. Levantou-se com dificuldade, bastão de ferro espetado nas costas. Desequilibrou-se, apanhou do canto do olho o touro a agradecer à multidão.

Mas que merda é esta? Pensou o jovem rapaz, caindo outra vez. O touro voltou a aproximar-se dele, olhou-o de cima, os holofotes à volta da sua cabeça atribuindo-lhe um carácter quase divino.

- Não me leves a mal. É tradição – disse o touro ao jovem rapaz.

- Ah, ok – respondeu ele – Estava mesmo a perguntar-me porque estariam a fazer-me uma coisa destas.

- Os touros gostam – respondeu o touro, encolhendo os ombros como se fosse óbvio.

Fazia todo o sentido, pensou o jovem rapaz. Aliás, se tivesse a possibilidade de escolha, com certeza escolheria ter ido para ali ser espetado em público; não queria que as liberdades individuais dos espectadores fossem afectadas. Isso não.

Ele levantou o pescoço com cuidado, para não deslocar ainda mais as vértebras. Já não sentia as pernas, e estava a começar a ficar tonto. O touro deu-lhe com outro ferro nas costas, o sangue do jovem rapaz sujou-lhe a pele e a areia, e a multidão aplaudiu e levantou-se numa ovação comovida. Depois foram todos para casa, onde os pais touros ensinaram aos filhos touros que não se deve mal tratar os seres humanos.

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