terça-feira, 10 de agosto de 2010

Smith e as Sereias - episódio 2

Previamente, no primeiro episódio de Smith e as Sereias, o jovem marujo Smith descobre num momento de desesperante deriva no Oceano Atlântico que engravidara Ariel num dos muitos encontros amorosos que tivera nas suas viagens. Ariel é uma sereia, e como todas as criaturas dos mares filha de Poseidon, o Rei dos Oceanos. Poseidon confronta Smith e obriga-o a ir trabalhar consigo para o palácio nas infinitas profundezas do mar, de forma a poder desempenhar as suas responsabilidades de pai e marido de Ariel.

A pressão oceânica quase me esmagou os ouvidos, e pedi a Poseidon, meu futuro sogro, para me resolver o problema. Com um esvoaçar de tridente, Poseidon plantou-me qualquer sistema auditivo que me permitiu finalmente ouvir debaixo de água e esquecer a pressão que me esmagava os muito humanos tímpanos.

À minha volta as sereias olhavam-me com curiosidade, rindo-se da minha figura desadaptada de humano a chafurdar mar abaixo. De Ariel, de todas a que tinha melhores seios mas de todas a que parecia mais acesa para discussões, não havia sinais. Era bom que a reencontrasse, uma vez que teríamos um filho em conjunto. Tinha também interesse na eminente noite de núpcias, mas isso era outra questão.

Não sei durante quantas horas nadei, mas foram muitas. A escuridão das profundezas foi iluminada por uma súbito círculo de luzes amarelas, como uma circunferência de pequenos pontos luminosos desenhada mais abaixo. Estava maravilhado. Ouvira falar de todo aquele tipo de magias subaquáticas nos livros de aventura que roubara a um primo judeu, mas vivê-lo era demais.

Centenas ou milhares de sereias saíram de dentro do círculo, passando por mim e fazendo-me olhinhos. Uma a uma, nadaram até Poseidon e cumprimentaram-no com um beijinho carinhoso. Chamavam-no de Papá.

Nadámos mais ou pouco e dei por mim de frente a uma incrível concha, enorme, vinte ou trinta vezes maior do que o corpo de Poseidon. Ele deu-lhe uma festinha com o tridente. A concha tremeu e abrir-se como um presente. Era a porta para o palácio, que agora se estendendia à nossa frente: uma construção dourada e azul, cheia de luzes de origem misteriosa (a essa profundidade costuma estar um escuro do caraças) e janelas pequenas que deixam adivinhar milhares de divisões. As sereias transitam de um lado para o outro. Poseidon chegou-se ao pé de mim e disse-me:

- Bem vindo ao meu Palácio. Será a tua casa. Deixa-me desde já que te diga, para justificar uns quantos paradoxos que possam surgir, que aqui debaixo há uma quantidade de magia que tu nunca poderás compreender, e que faz com que o tempo passe de forma diferente.

- Isso na prática significa o quê?

- Que vais envelhecer mais devagar, por exemplo.

- Fixe – respondi.

Nesse preciso momento, sereias a esvoaçar à nossa volta, cânticos saindo das suas bocas carnudas, uma construção negra e esfumada desceu como uma pena de quinze toneladas e esmagou, com um estrondo, a ala oeste do Palácio. A construção tremeu, abriu-se um buraco nas paredes douradas, e uma onda de poeira sub-aquática entrou-me para dentro os olhos.

- Que vem a ser isto? – berrou Poseidon, movendo-se pela água como o patrão que chega ao escritório para o encontrar desarrumado. Nadei atrás dele, a poeira assentando. As sereias estavam todas com ar de preocupadas, cochichavam umas para as outras, investigavam a enorme construção em forma de barco que tinha caído em cima do palácio. Aproximei-me da proa do navio que furara o tecto do Palácio, nadei (ainda a habituar-me às guelras, que me faziam comichão) até mais acima e dei por mim frente a um conjunto de letras pintadas na madeira preta do navio: TITANIC.

- Meu pai, é um navio naufragado! – disse uma das sereias. Reparei que era bastante atraente. Ela olhou para mim. Eu olhei para ela. Ela sorriu para mim, eu sorri para ela, o sorriso dela desapareceu, perguntou-me:

- Tu não foste aquele que emprenhou a Ariel?

Corei.

- Ela bem disse que tu eras giro – disse-me a sereia, afastando-se. Senti-me orgulhoso.

- Smith! Venha cá! – era Poseidon, a chamar por mim. Nadei até perto do meu gigantesco futuro-patrão. Ele estava de pé, com o tridente a remexer por entre os destroços do navio misturados com as paredes caídas do seu palácio.

- De onde vem este navio? Conhece-o?

- Nem por isso, Poseidon.

- Poseidon? Tratas-me assim, dessa forma? Poseidon?

- Senhor. Perdão, senhor.

- Ouve, tu és meu genro, para todos os efeitos. Serás, quando casares com a Ariel. Trata-me por Senhor Poseidon, então.

Olhei para a sereia que me fizera corar, ela piscou-me o olho. Tinha um cabelo louro longo e atraente, um corpo que avaliei como sendo maravilhoso. Perguntei-me se por aqui no Palácio também teriam salas de arrumação pouco frequentadas, como numa série de TV que a minha mãe costumava ver em que um monte de médicos fazia sexo uns com os outros. Anatomia de não sei do quê.

- Sereias, minhas filhas, teremos de limpar esta confusão! Chamem-me o Engenheiro, necessitarei de informações sobre como reerguer o palácio! Chamem os trabalhadores! Vamos!

As sereias afastaram-se, mais ou menos na altura em que uma coisa pequena e com pernas caiu água abaixo, aterrando no local onde estávamos. Todas as sereias pararam para olhar, uma delas deu um grito.

- É um humano!

Era mesmo. Poseidon dobrou-se sobre ele. As sereias, dezenas delas, cada uma mais atraente que as outras, cada uma com a sua cauda sensual e um par de conchas ou algas ou corais a tapar o que só poderiam ser uns maravilhosos, onde ia eu? As sereias, dizia, reuniram-se à nossa volta.

No centro do círculo por nós formado estava um rapazinho louro, ar de miúdo, pelo qual as sereias começaram imediatamente a suspirar.

- Parece aquele actor!

Oh, não, pensei eu.

- Tom Cruise?

- Não! – disse uma das sereias.

O rapaz louro parecia congelado, imóvel, mas começou logo a mexer-se no momento em que Poseidon lhe tocou com o tridente na cabeça. Parecia enregelado, tremia, por momentos engoliu água que o teria afogado não fosse o par de guelras que lhe cresceu no pescoço.

- Rose? – perguntou ele – Rose, meu amor? Onde estou?

- Como era? Aquele que fez o homem da máscara não sei que! – dizia uma sereia.

- Como te chamas, meu rapaz? – perguntou Poseidon – aquele barco era teu?

- Rose?

- Senhor Poseidon, ele parece confuso – disse eu.

- Ah, já sei! É o rapazinho d’A Praia! Espera, espera, espera… - a sereia fechou os olhos, puxando pela memória.

- Da praia não, do TITANIC – disse outra sereia.

- O teu barco destruiu-me a ala oeste do palácio – informou Poseidon como quem espera um pedido de desculpas.

- Eu sempre pensei que ele era um terrível actor, mas nos últimos filmes com o Scorsese tem sido espectacular – disse uma das sereias, um bocado gorda.

- Rose? – perguntou outra vez o mocinho louro, extremamente parecido com um actor cujo nome não me ocorreu na altura.


(continua)


Todas as Terças e Quintas contem com novos episódios de Smith e as Sereias.

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