quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O Homem que Reconhecia as Mulheres pelo Rabo (parte 4 de 4)

O advogado desligou o telefone e o homem pousou o auscultador no sítio. Um assassinato? E como poderia ser ele o próximo alvo? Até que compreendeu: era a testemunha principal num caso contra uma revista importante, e estavam a meio do julgamento. Se havia alguém neste mundo que pudesse ser morta a sangue frio era ele. De repente sentiu-se com uma enorme falta de ar. Saltou da cama, mas assim que pôs os pés descalços no soalho de madeira uma sensação de pânico escorreu-lhe pelo peito como água gelada. O seu coração batia depressa. Quereriam mesmo matá-lo?

Correu para a porta da sua casa, e viu que estava devidamente trancada. Pelo sim pelo não deu outra volta à chave e fugiu para ao pé da cama outra vez. Tremia, transpirava. Durante uns segundos, uma vontade incontrolável de chorar consumiu-o. Há um mês atrás viva no conforto e na segurança da casa dos pais. O mundo era grande e assustador, mas estava lá fora, muito longe. E apenas um mês depois aqui estava ele, com a sua casa e a sua vida, perdido no mundo no qual não se enquadrava. O dom de reconhecer as mulheres pelo rabo já não era apenas um atrito na sua vida social e amorosa, mas sim uma maldição que lhe ameaçava a vida. Sentia-se perdido e assustado. Continuava a tremer. Esteve para ir chamar a rapariga, mas não a queria nem acordar tão tarde nem preocupá-la com a situação. Decidiu respirar fundo, controlar-se. Respirou fundo, controlou-se. Agarrou numas roupas e vestiu-se. Chamou um táxi pelo telefone. Cinco minutos depois, espreitando pela janela, viu o táxi a parar à frente do prédio. Correu à cozinha, meteu uma faca de manteiga no bolso, pois era a que estava mais à mão, e saiu de casa.

Puxou o elevador mas o pânico regressou, e decidiu tomar as escadas. À medida que descia cada lance de escadas lembrou-se que um assassino profissional poderia estar à sua espera, pelo que espreitava cuidadosamente o próximo lance de escadas antes de continuar. Quando lá chegou a baixo olhou para os dois lados da rua deserta e entrou depressa no táxi. O taxista não parecia ter nenhuma arma escondida. Indicou a morada e arrancou.

O escritório do advogado era num prédio moderno. Ao chegar lá, pagou a conta do táxi, pediu ao taxista para esperar um pouco até ele entrar no prédio e tocou à campainha. Abriram-lhe a porta. O táxi arrancou, e ele subiu as escadas até ao primeiro andar, onde o advogado o esperava meio sonolento e de café na mão. O seu cabelo continuava, no entanto, miraculosamente lambido para o lado.

- Entre, entre. Ainda bem que pôde vir, não imagina o que aconteceu.

O homem entrou, e o advogado levou-o até ao seu escritório. Convidou-o a sentar-se à frente da sua secretária, onde tomou o seu lugar e retomou a conversa:

- Um dos editores da Bundas de Domingo foi assassinado esta noite.

O homem inquietou-se, chegando-se mais para a frente na cadeira.

- Assassinado? A sério?

- Sim. Encontraram o corpo há apenas umas horas, e um dos outros editores achou por bem avisar-me. Digo-lhe, este assassínio só pode tratar-se de vingança pela acção judicial.

- Acha que o assassino foi alguém da Rabos da Semana?

- Tenho a certeza. Daí a tê-lo chamado cá. Aqui estará perfeitamente seguro, já chamei alguns detectives amigos e a polícia. Os outros editores da revista também vêm a caminho. Quer café?

O homem aceitou, e o café quente soube-lhe bem. Alguns minutos depois os editores da Bundas de Domingo chegaram, acompanhados por um detective que aparentemente era conhecido do advogado. Os editores cumprimentaram o homem, pediram-lhe desculpa pela confusão. O homem ofereceu-lhes as suas condolências. Os editores agradeceram com pesar.

- Encontraram alguma pista? Não há testemunhas? – perguntou o advogado.

- Um vizinho da vítima acordou com barulho e foi ver o que se passava. Quando viu um homem vestido de preto a correr pela rua abaixo e gritos no andar de cima, correu a pegar na sua máquina fotográfica e conseguiu tirar algumas fotografias ao suspeito.

- Incrível! – disse o homem.

- Incrível, realmente. É maravilhoso! – disse o advogado, bebendo café – Isso significa que temos fotografias do criminoso. Onde estão? Podemos vê-las?

- Estão a ser reveladas, vão chegar a qualquer momento – esclareceu o detective.

Esperaram. Meia hora depois, um outro detective chegou e com ele trouxe um envelope amarelo.

- Aqui estão elas – anunciou, estendendo o envelope ao primeiro detective. Este pegou no envelope, abriu-o e tirou de lá de dentro as fotografias.

- Meu deus…

- Então? Temos o nosso criminoso? – perguntou um dos editores. O homem, entusiasmado, tentou espreitar por cima do ombro do detective para ver as fotografias, mas antes de conseguir ver alguma coisa o detective virou-as para o resto das pessoas no escritório verem.

- Não acredito… - resmungou o advogado, a olhar para as fotografias.

Todas elas, aparte de uma, estavam desfocadas ou escuras demais para se distinguir algo mais que um vulto. A única em que algo era visível era a fotografia meio escura do rabo e das pernas do criminoso, tirada enquanto ele corria rua acima.

- Para que nos servirão as pernas do criminoso? – resmungou um dos editores. A sala caiu no desânimo; o homem, no entanto, não desmoralizou.

- Mas… vê-se o rabo do criminoso na perfeição… - disse ele.

- Não deixa de ser irónico… - comentou o advogado, decepcionado.

- Não compreende… Isto é perfeito! – disse o homem, com alegria.

- Perfeito? – estranhou o advogado.

- Repare, eu sou o homem que reconhece as mulheres pelo rabo – começou o homem.

- Reconhece aquele rabo? O criminoso é uma mulher? – arriscou o detective.

- Não, não, antes pelo contrário! Posso garantir-lhes que o vosso suspeito é um homem, aquele rabo é de homem com cem por cento de certeza! – alegrou-se o homem, entusiasmado – E acontece que há a feliz coincidência de eu conhecer alguém que partilha o fardo de só reconhecer as pessoas pelo rabo…Trata-se de uma conhecida minha que, felizmente, só consegue reconhecer os homens pelo respectivo rabo!

Houve uma pausa silenciosa, enquanto os editores da Bundas de Domingo e o advogado compreendiam o que o homem queria dizer com aquilo.

- Que raio - disse um dos editores - não era mais impressionante se tivesse guardado a surpresa para mais tarde? Estragou o suspence todo da história.

- Até porque se estava mesmo a ver que a personagem feminina estereotipada teria, mais cedo ou mais tarde, um qualquer papel importante - concordou outro dos editores.

O resto dos editores olhou com desconfiança para o homem, e perguntaram entre si como é que aquele tipo poderia ter chegado a protagonista. O advogado ia fazer também um comentário depreciativo ao timing do homem, mas em vez disso estendeu-lhe automaticamente o telefone e disse:

- Ligue a esse seu conhecido e dê-lhe a minha morada. Diga-lhe que é um caso de vida ou de morte!

O homem marcou o número. A rapariga, ensonada, atendeu o telefone com maus modos, mas assim que lhe reconheceu a voz mudou o seu tom para preocupação:

- Meu Deus, o que aconteceu? Onde estás?

- Ouve-me, por favor! Tens de vir imediatamente para aqui. Chama um táxi e vem a correr. Preciso da tua ajuda! Aconteceu um crime e só tu nos podes ajudar! – disse o homem, o mais convincente possível. Deu-lhe as indicações, e a rapariga prometeu despachar-se. Desligou.

Dali a meia hora a rapariga chegava, visivelmente vestida à pressa e com profundas olheiras. Cumprimentou o homem e todos os que estavam no escritório, mas estava visivelmente confusa.

- Um dos editores da Bundas de Domingo foi assassinado – explicou o homem. A rapariga empalideceu – E uma testemunha conseguiu uma fotografia do criminoso enquanto este fugia. Precisamos da tua ajuda para o identificar.

- Mas porquê eu? Porque é que…? – começou a rapariga, mas o homem não perdeu tempo, tal era o seu entusiasmo, e estendeu-lhe a fotografia onde se via o criminoso, pelo menos da cintura para baixo. A rapariga compreendeu imediatamente. – É um rabo! – disse ela, e um segundo depois abriu muito os olhos.

- O que é? – perguntou o homem, trocando o olhar entre a rapariga e a fotografia alternadamente.

- Este rabo… Eu conheço… Eu conheço esta pessoa! – disse a rapariga. O advogado deu um pequeno salto na cadeira, quase despenteando o seu cabelo lambido.

- Quem é? Quem é? – perguntou, impaciente.

- Este homem – disse a rapariga, apontando para o rabo na fotografia – Este homem estava hoje mesmo no tribunal. Posso jurar que é ele!

- Quem? Quem?

- Este rabo – anunciou a rapariga – pertence a um dos editores da Rabos da Semana!

- Estava-se mesmo a ver – comentou um dos editores da Bundas de Domingo.

- Grande bronca! – exclamou o homem.

- Tem a certeza? – perguntou o advogado, cepticamente.

- Tenho, toda a certeza! – disse a rapariga, olhando para o homem e para o advogado alternadamente.

- Se lhe colocarmos os editores da Bundas de Domingo de rabo virado para si, conseguiria indicar o criminoso? – perguntou o advogado à rapariga.

- Tenho a certeza que sim. – respondeu ela.

O detective pegou no telefone e começou a fazer telefonemas, trocando ocasionais palavras com o advogado. O homem e a rapariga continuaram a olhar para a fotografia do rabo.

- Desculpa ter-te acordado assim…

- Não faz mal! Meu Deus, que emoção… - disse ela, com um sorriso cansado e medroso – Identifiquei um criminoso… E através do rabo!

O homem agarrou-lhes nas mãos, igualmente comovido.

Duas horas depois estavam na esquadra da cidade, numa daquelas salinhas divididas ao meio por um espelho de um só sentido. Do lado de cá, o homem, a rapariga, o advogado e o detective esperavam pacientemente. Já passava das quatro da madrugada. Todos estavam cansados de tanta emoção; e o homem, vendo-se subitamente num momento de inércia em vez da acção constante que a vida o habituara nos últimos dias, começou a sentir sono. Foi nesse estado de sonolência que viu entrar, do outro lado do espelho, cinco homens, acompanhados por dois oficiais da polícia. Os suspeitos foram alinharam-se em frente a uma parede com grandes linhas horizontais, como se de uma régua gigante se tratasse. Uma luz forte iluminou-os. Alguns semicerravam os olhos, tentando ver através do espelho.

- Nada tema, este vidro é especial. Enquanto que daqui os vemos com toda a nitidez, quem olhar do lado de lá não vê mais que a sua própria imagem reflectida. Não nos conseguem ver nem ouvir– explicou o advogado, para sossegar a rapariga.

- Estranhíssimo – comentou o homem. Ouvira falar daqueles espelhos e até vira uns nos policiais que via na televisão, mas nunca estivera tão perto de um, ao vivo. Nesse momento, só ali e não antes, o homem sentiu-se dentro de um filme de polícias e ladrões.

- Queira fazer o favor de identificar o criminoso – pediu o detective à rapariga. Ela olhou para os suspeitos de alto abaixo, mas sem resultados.

- Assim não consigo. Pode pedir-lhes para se virarem de costas, por favor? – pediu ela. O advogado disse qualquer coisa pelo intercomunicador. Os dois agentes da polícia fizeram sinal aos cinco suspeitos, que estranharam a ordem mas acabaram por se virar de costas. Assim que o quarto suspeito mostrou o rabo, a rapariga abriu os olhos e exclamou:

- É ele, é ele! È aquele rabo!

- Qual, qual?

- Aquele! O número quatro!

O homem olhou para o dito número quatro e reconheceu-o: era realmente um dos editores da Rabos da Semana.

- Apanhámo-lo! – exclamou o advogado, que conseguira manter durante toda a madrugada o seu cabelo impecavelmente penteado para um dos lados.

O homem olhou para a rapariga e ela para ele, e durante alguns segundos trocaram um olhar de profunda felicidade e admiração. Gerou-se um clima mais ou menos romântico, de tal forma que o homem corou aberrantemente e desviou o olhar. A rapariga fez o mesmo.

Em tribunal ficou provado não só que a Rabos da Semana usava desonestamente sempre os mesmos rabos em todas as edições, mas também que um dos seus editores era um assassino. O testemunho do homem e da rapariga foram cruciais, cada um para o seu caso. Feita justiça, regressaram a casa, depois de milhares de agradecimentos do advogado e dos editores da Bundas de Domingo, que ofereceram uma volumosa recompensa mas que o homem recusou amavelmente. Mais tarde seria convidado a trabalhar na revista, emprego que aceitaria não só por prazer pessoal como por necessidade.

Foi assim que o homem que reconhecia as mulheres pelo rabo, apesar de nunca ter percebido de onde vinha o seu dom ou maldição, encontrou alguém seu semelhante e o seu lugar no mundo. Tornou-se crítico de nádegas para a Bundas de Domingo, participando ainda em várias publicações científicas sobre a anatomia, forma e estrutura dos rabos, matérias que estudou afincadamente e serviram de base ao seu best-seller auto-biográfico “Quem vê rabos não vê corações”. Receberia um doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Medicina Anatómica.

O homem e a rapariga nunca chegaram a casar. Mantiveram-se sempre vizinhos um do outro, e ainda hoje se cumprimentam cordialmente um ao outro com um movimento ligeiro de rabo.


FIN

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1 comentário:

patricia colaço disse...

Gostei! Gostei!!!!! Muito engenhoso.