O barco estava uma desgraça, sobrávamos sete a bordo e como os mantimentos estavam a acabar as nossas probabilidades de sobrevivermos à viagem tinha passado de poucas a nenhumas. À medida que me deixava embalar pelos ruídos das ondas a bater no casco do navio, e sentia a pele a ser tostada ao sol, ouvia na minha cabeça as sábias palavras da minha mãe, lá na longínqua Londres, aconselhando-me a não seguir com a ideia disparatada de embarcar num navio e ir conhecer o mundo.
Como era jovem e rebelde mandei-a calar, e informei-a de que faria o que quisesse. Tinha dezasseis anos, era independente, e não queria passar o resto da minha vida a servir bebidas e a limpar vomitado na taberna dos meus pais. Sublinhei que a minha intenção era ir às Américas, quiçá à Índia, conhecer uma mulher exótica e linda de morrer, ter uma grande quantidade de herdeiros e regressar a Londres cheio de arcas com tesouros, os quais esfregaria na cara do burro do meu irmão mais velho que sempre me batera em pequenino e que agora estava preso por conduta imoral. A minha mãe chorou, levou as mãos à cabeça, disse-me que ficaria por ali à espera que o Senhor Lorde voltasse das suas aventuras. Saí mesmo de casa, embarquei no primeiro navio que me aceitou como marujo e, aprendendo a lavar o convés com a esfregona e manuseando as cordas grossíssimas das velas, segui com o meu sonho de me tornar um aventureiro.
Três anos depois ali estava, mais velho e maduro é certo, mas também mais magro, queimado e esfomeado. Pisei os solos da Argentina, da África, da Austrália, e passeie-me no meio dos grandes mercados de especiarias no Oriente. Perdi a minha inocência com uma mulher de setenta e dois anos, uma concubina que me levou quinze moedas pelo serviço. Desde aí aprendi a arte do amor, tornei-me mulherengo, fui coleccionando nacionalidades. Posso, quem sabe até, ter meia dúzia de filhos a correr em qualquer cidade do litoral, num país longínquo. Ainda bem que estamos a mais de um século de se inventar as pensões de alimentos.
Como dizia, ali estou, reduzido a um esqueleto com a pele desidratada, à espera da morte no meio do oceano. Um motim a bordo roubou a vida de vários dos meus companheiros, sobrámos sete. Fomos entretanto assaltados por um navio de piratas, que só nos poupou a vida porque lhes demos indicações sobre o paradeiro de outro navio que transportava pedras preciosas e que por esta altura deve transportar apenas um ou outro desgraçado como eu. Deixei-me adormecer e quando acordei tinha à minha frente a cara de um dos meus companheiros.
- Tens de vir resolver isto – disse-me ele. Levantei-me e fui até ao convés.
Ao lado no navio, metido dentro de água pelo nível da cintura, estava uma enorme figura humana, um homem grotescamente musculado e coberto de algas. Tinha um cabelo louro, que provavelmente seria mais suave se não fosse a água salgada, e barbas longas e farfalhudas. Segurava um enorme tridente, com as pontas afiadas, tão grande que poderia esventrar uma baleia.
- Sou Poseidon – declarou o gigante, num vozeirão impressionante – e procuro falar com um tal de Smith.
Era eu, claro. Engoli em seco.
- És tu o Smith que procuro? – perguntou-me o vozeirão.
- Sou.
- Sou Poseidon, o senhor dos mares. Já ouviste falar de mim?
- Er, não, oh grande Poseidon.
- Sou também o pai de todas as criaturas aquáticas, desde a mais pequena ostra à mais gigantesca baleia azul.
Houve uma pausa, em que tentei perceber onde é que eu entrava naquilo tudo.
- Incluindo as sereias – disse-me ele. Senti-me prestes a urinar nas calças.
- Sei que as minhas queridas sereias são umas irresponsáveis – disse Poseidon – e que se metem com os marinheiros desprevenidos e desesperados por companhia feminina. E sei que se aproveitam da vossa abundância hormonal e vos satisfazem os mais grotescos prazeres masculinos. Não é assim?
- Eu juro que não sei do que está a falar – disse-lhe eu. Sempre fora um mentiroso compulsivo mas pouco talentoso.
- Smith, lembraste com certeza da minha filha Ariel?
- Não, não mesmo – menti outra vez. Ariel, pobre Ariel. Cabelos vermelhos, barbatana verde, e um par de seios escondidos atrás de um par de conchas roxas e muito difíceis de tirar.
- Tu passaste uma noite com a minha filha Ariel há uns meses, não é verdade? – perguntou Poseidon.
- Não, não estou a ver que…
Uma gigantesca onda atirou-se contra o navio, e eu fui parar ao chão. Poseidon soltou um rugido ameaçador.
- Não mintas ao senhor dos mares, não quando ele está zangado e a um passo de te virar o barco ao contrário! Passaste ou não uma noite com a minha filha Ariel?
- Sim! – exclamei. Já que ia morrer ao menos morreria honesto.
- A Ariel está grávida – disse Poseidon – de ti, seu humano irresponsável.
Uma pequena cabeça de cabelo ruivo surgiu de dentro de água.
- Papá, por favor tem calma! A culpa não é do Smith, fui eu que o seduzi e…
- Ariel, vai imediatamente para dentro e deixa-nos conversar!
Ariel olhou para Smith como quem pede desculpas, e mergulhou.
- Senhor Poseidon, eu juro que…
- Casarás com a minha filha e serás um pai responsável para o vosso filho – declarou Poseidon, agitando o seu tridente.
- Mas senhor, eu não…
- Viverás no nosso palácio, mas dormirás no quarto de hóspedes até ao dia do casamento. E arranjarás um emprego digno do genro do Senhor dos Mares, compreendido?
- Como assim, no palácio?
- No meu palácio real. Não estarás com certeza à espera que deixe o pai do príncipe do meu reino a andar por aí de barco a seduzir outras mulheres!
- Pai, por favor – a cabeça de Ariel surgira de debaixo de água outra vez – Eu não quero ter esta criança. A moda das sereias pode pegar, e o pai sabe que eu sempre quis ser actriz e que um dia vou poder ter uma carreiras… Mas com um filho à perna...
- Abortar? – disse eu. Subitamente senti-me um pai responsável e preocupado – Não, está fora de questão! Eu sacrifico a minha gloriosa e fantástica existência no mundo dos humanos para me mudar para o palácio real e viver com uma sereia atraente como tu. Não devo fugir às minhas responsabilidades.
- Parece que o irresponsável com que te enrolaste tem mais carácter do que tu – resmungou Poseidon à filha. Olhou para mim – Venha daí, beberemos um vinho de algas no meu escritório e discutiremos que tipo de trabalho poderá fazer. Talvez possa ser o meu representante no mundo à superfície.
- E eu não tenho opinião? – perguntou Ariel. Estava a ficar irritada.
- Mergulha imediatamente! – rosnou Poseidon. Ariel olhou para mim.
- Odeio-te! – e mergulhou. Eu não se importava, havia outras sereias giras com quem poderia enrolar-se no palácio.
- Amigos – disse eu, dirigindo-me aos outros marinheiros – Adeusinho.
Os marinheiros viram-me mergulhar junto de Poseidon, que com um leve movimento do seu tridente me fez crescer guelras no pescoço. A princípio engasguei-me, mas nada me deu mais alegria do que sentir a frescura das salgadas águas atlânticas e ver-me, rodeado por Poseidon e pela sua trupe de sereias belíssimas, a nadar na direcção das profundezas do oceano.
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