quinta-feira, 24 de maio de 2012

Comprei um unicórnio


Quando comprei o unicórnio um amigo avisou-me logo para ter cuidado com os arco-íris pastosos. Como era um tipo um bocado chato decidi ignorá-lo, como aliás ignoro todos os amigos quando estes fingem perceber mais de alguma coisa do que eu. Neste caso enganei-me; ele percebia mesmo de unicórnios. Certo dia cheguei a casa e chamei:

- Pégaso?


Era o nome do meu unicórnio. Uma prima minha pequenina, a quem tinha dado a honra de escolher o nome do bicho, tinha acabado de ver o Hércules e relacionava todo e qualquer cavalo com o animal de estimação do herói. Ora, toda a gente sabe (menos a minha prima) que o cavalo alado do Hércules não é um unicórnio. Disse ao meu tio:

- Epá, eu entendo a posição da miúda mas não posso dar esse nome ao animal. Não faz sentido.  

A minha prima começou a chorar e a gritar Pégaso, Pégaso, e eu lá tive de dar esse nome ao meu unicórnio não-alado.

Mas pronto, retomando.

- Pégaso?  - chamei eu.

O bicho lá apareceu. Trazia um livro preso no unicorno e percebi logo que tinha andado à marretada na biblioteca. Furioso, aproximei-me dele e tirei o livro do unicorno. Fi-lo esfregar o focinho no livro furado e depois sentei-o usando as técnicas que via no Encantador de Cães, aquele programa do mexicano chefe de matilha. Ele sentou-se, todo cabisbaixo, e percebi logo que a chatice ultrapassava a minha cópia furada do “Carteiro de Pablo Neruda”.

- Que fizeste, Pégaso?

Fui até à sala e apanhei-a absolutamente coberta de arco-íris pastoso: parecia que uma parada de orgulho gay se tinha aliado a um campeonato de paintball. Trouxe o Pégaso até à sala e esfreguei-o no próprio, digamos, cocó. Ele ficou todo colorido no nariz, espirrou e foi sentar-se a um canto.

- Pégaso feio. Pégaso feio! – disse-lhe.

Lá liguei ao meu amigo a pedir conselho.

- As fezes estão todas pastosas, parecem tinta?

- Não lhe destes as vitaminas? – perguntou-me ele; sim, era uma dessas pessoas que não sabe conjugar verbos.

- Não – resmunguei.

- Fizestes mal – respondeu-me ele.

Ele insistiu em ver o cocó colorido do Pégaso porque, teorizava, o bicho não estava bem.

Chegámos a casa e lá andou ele de rabo para o ar a analisar os arco-íris.

- Tem-ze-lhe dado as nuvens?

- Claro, claro – respondi; mentira, andava a dar-lhe algodão doce.

- O teu bicharoco não tá bem. Já o levastes ao veterinário?

- Sim, sim, está tudo em ordem.

- E ao Feiticeiro?

- Ao Feiticeiro?

- Estavas à espera de cuidar de uma criatura mágica sem o levares ao Feiticeiro?

O Pégaso olhou para mim como quem diz “Ora aí está, seu estúpido”.

- Olha, olha – disse o meu amigo, de dedo enfiado numa pasta alaranjada – Os arco-íris não estão completos. Falta o lilás e o verde.

- Ai é?

- Tá com um problema, o teu bicho. Tens de ir ao Feiticeiro.

Não me chegava já o que gastava em amaciador para a crina e verniz para o unicorno.

- E isso é coisa para ficar em quanto?

- Umas setenta moedas de ouro.

Fui até à loja de câmbio e troquei oitenta (leram bem; oitenta) euros por setenta moedas de ouro. O gnomo que tratou da transação tinha mesmo cara de funcionário de uma repartição qualquer; franziu logo as sobrancelhas cheias de musgo e resmungou que não aceitava moedas de cinquenta cêntimos. Reclamei. Lá veio um colega gnomo a esvoaçar, este mais simpático, para me dar uma mãozinha. Aceitou os trocos e trocou-os por um saco de moedas de ouro, todo cheio de purpurinas.

De seguida peguei no Pégaso pela trela e fui até Monsanto. O meu amigo explicara-me que, como todos os Feiticeiros, este vivia numa densa floresta. Dirigi-me ao pinheiro designado e disse “Abracadadra, dentes de cabra”, não sei quê não sei que mais. As raízes da árvore arrancaram-se sozinhas do chão e abriram caminho para umas escadas de pedra. Desci, com o Pégaso à perna, e fui dar a uma sala enorme, circular, coberta com prateleiras de granito onde descansavam poções, vasos com plantas e animais dentro de frascos. A uma mesa, de frente para um Mac, estava um homem barbudo com um enorme manto branco e um chapéu bicudo.

- Boa tarde – disse eu.

O Feiticeiro levantou os olhos baços do ecrã; pela musiquinha deduzi que estava a jogar Bubble.

- Quem é o senhor? – perguntou-me ele.

- Chamo-me Renato Rocha, vim para a consulta das cinco.

- Ora, ora, ora... – O Feiticeiro mirou uma ampulheta – São quatro e cinquenta e dois. Dá-me só um momentinho? Tenho aqui que terminar uns relatórios para, hum...

O Feiticeiro jogou mais três minutos de Bubble e eu fiquei ali especado, com o Pégaso preso por uma trela. De repente o bicho soltou um gemido, dobrou-se dolorosamente e expeliu uma quantidade incalculável de arco-íris pelo mágico traseiro. A parede que estava atrás de nós ficou toda colorida. O Feiticeiro lá nos deu atenção e levantou-se da secretária com a ajuda de numa bengala com cabaças penduradas.

- Bela referência ao Rei Leão – disse eu, apontando para as cabaças.

- É a primeira pessoa a reparar – sorriu ele, revelando uma dentição perfeita. Pudera, era Feiticeiro. Com um agitar de braços e alguns encantamentos naquilo que julguei ser uma língua imaginária, a parede do consultório ficou limpa de um segundo para o outro. Pégaso, arrependido, sentara-se ao meu lado e pousara a cabeça sobre os cascos.

- Que se passa com o bicho?

- Está a defecar uma coisa pastosa e faltam-lhe umas cores no arco-íris.

O Feiticeiro dobrou-se sobre ele e começou a analisá-lo atentamente.

- Ora vamos lá ver, como se chama este rapaz?

- Pégaso.

- Sabe que Pégaso era um cavalo alado e não um unicórnio.

- Sei, sei.

- Podia ter-lhe dado outro nome.

- Foi uma prima minha.

- A sua prima devia ver aquele filme do Hércules, talvez assim aprendesse a diferença entre um cavalo alado e um unicórnio.

- O que é que ele tem de errado, Sr. Feiticeiro?

- Pressinto uma obstrução no sistema de decomposição

- Sistema de decomposição? – vi o Feiticeiro aproximar-se do rabo do Pégaso e estranhei.

- Estudou Newton?

- Sim.

- Lembra-se da decomposição da luz?

- Lembro pois.

O feiticeiro foi a uma gavetinha e trouxe de lá uma poção. Deu-a a cheirar ao Pégaso e ele adormeceu pesadamente. O Feiticeiro voltou a aproximar-se do seu traseiro.

- Segure aí a cabeça do bicho.

Segurei-o pelo unicorno. O Feiticeiro enfiou o braço pelo rabo do Pégaso, remexeu duas ou três vezes e voltou a tirá-lo. Na mão trazia um prisma triangular absolutamente cristalino mas com um grande risco ao meio.

- Ora aqui está – disse-me o Feiticeiro, aproximando-se de mim enquanto analisava o prisma a contraluz – Estou a ver que entende pouco de anatomia de criaturas mágicas.

- Só tive gatos e cães até agora.

- Os unicórnios não defecam arco-íris, defecam luz branca. Possuem é um sistema de decomposição, que é o nome técnico para “prisma metido no rabo”, que faz a decomposição da luz branca e permite um cocó mais exótico. Ora, o sistema de decomposição aqui do Pégaso está estragado. Por isso é que lhe faltam comprimentos de onda e as fezes estão tão moles.

- E isso trata-se como?

- Não se trata – respondeu o Feiticeiro, atirando o prisma riscado para dentro de um caldeirão cheio de lixo mágico -  O prisma é insubstituível.

- Não pode ser transplantado?

- Não.

- Nem se pode mandar fazer um?

- Não. São setenta moedas de ouro.

- Agora fico com um unicórnio que faz cocó em branco?

- Não, fica com um unicórnio que faz cocó na forma de um jacto de luz branca, é uma óptima lanterna. São setenta moedas de ouro.

- Mas você é mágico, não consegue fazer aí um feitiço que...

- Se está assim tão preocupado com a saúde do animal devia dar-lhe nuvens verdadeiras e não algodão doce.

Engoli em seco.

- Ou acha que eu ando aqui a brincar? – resmungou o Feiticeiro. Coloquei a bolsa de moedas de ouro na mão dele e vi-o regressar ao Bubble sem sequer se despedir. Rude.

Cheguei a casa com o Pégaso e dei-lhe uma boa dose de nuvens pôr-do-sol, bem alaranjadas (são as mais doces). Descobri que lhe dão diarreia mas não há problema. O Pégaso adora o sabor daquela porcaria e eu poupo imenso dinheiro em electricidade.  

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei a história!!!