domingo, 19 de setembro de 2010

A carcaça de Cristo

Uma das coisas que mais me desperta interesse no cristianismo é a sua intrínseca crueldade e imoralidade. A imagem romantizada de um senhor de barbas atado a uma cruz está tão sobreposta à nossa cultura que aquela história, a de um sacrifício humano para salvar a humanidade, é vista como algo normalíssimo, parte do que nos faz bons e agradecidos pela nossa vida. É alvo de elogios, de gloriosos cânticos, e de agradecimentos da parte dos fiéis, que acreditam com sinceridade que aquele sacrifício foi a melhor coisa que aconteceu no mundo. Ouvir uma Missa (como a do Papa, que estou a ver neste momento) ou, como experimentei ainda ontem à noite, uma rádio cristã, é ser bombardeado por mensagens como “o corpo de Cristo”, “a salvação na Cruz”, “o sacrifício de Deus”, mas acho que muitos cristãos não percebem bem o que isto significa.

Primeiro que tudo está a grotesca ideia de que um homem, através de horas de sacrifícios físicos, pode de alguma forma “salvar-nos” da responsabilidade dos nossos pecados. Através do sacrifício do seu corpo físico, Deus (que é Jesus ao mesmo tempo) salvou a humanidade de algo terrível: as consequências dos seus pecados e das suas más acções. Todos vemos a imoralidade por detrás de tamanho sistema: passa pela cabeça de alguém a possibilidade de ver as suas más acções perdoadas através do sacrifício humano? Não haverá algo de absolutamente sádico nesta possibilidade? Será até algo merecedor de elogios? E, principalmente, porque é o símbolo do “Deus vivo” e do “Deus que nos ama” um homem inocente pregado a uma cruz, cuja morte e tortura resolverão os problemas da humanidade?

E não esquecer ainda de que é que Jesus nos está a salvar. Curiosamente, Deus (e Jesus) está a salvar-nos, a nós humanos, de pecados que ele próprio definiu como pecados. Foi Deus quem criou sequer essa noção de “pecado” e de ofensa às regras divinas. Ele fez as regras dos jogos, e ironicamente estas regras chocam de frente com a natureza humana com que também ele, Deus, nos apetrechou. Se a sexualidade é vista com tamanho pudor pelas leis divinas, porquê o óbvio impulso sexual nascido com cada humano? Porquê criticar a noção de avareza, e depois colocar nos seres humanos uma necessidade patológica de ser avarento? Porquê criar como regra “não matarás” e depois criar os seres humanos como os únicos animais que matam por crueldade, ou até por prazer? E isto sem esquecer o facto mais estranho, e que de certa forma transforma o que seria uma incoerência de um Deus estagiário na crueldade de um Deus ciente das suas acções. Deus é omnipotente e omnisciente. Ele pode tudo, sabe tudo; e de todos os universos possíveis, de entre todas as humanidades possíveis, ele escolheu esta, a nossa. Com todos os seus defeitos de fabrico, com todas as suas taras, as suas vontades biológicas e os seus sentimentos mais profundamente negativos. Deus escolheu-nos, com estas características; e de seguida criou um sistema praticamente impossível de seguir, em que a natureza humana é negada da forma mais bruta possível.

É disto que Jesus nos salva: da destruição da alma que, por sua vez, é o castigo criado por Deus para um crime que Deus definiu, cometido pela humanidade com as características que Deus criou. Alguém consegue ver o padrão aqui presente?

E por favor não me respondam “Mas e Adão e Eva? Eles é que lixaram o sistema todo, porque antes deles a humanidade era perfeita e sem pecado”. Não me respondam isso, porque em vez de criarem um buraquinho onde enfiar as dúvidas estão a cavar a própria cova intelectual. Adão e Eva viviam num local lindíssimo, em inocência, sem pecado: e porque Eva, uma mulher apenas, fez uma má escolha (que nunca poderia ser evitada. Ao contrário do que se pensa, a árvore da qual faz parte o famoso fruto é a árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e não a árvore da Vida. Eva não poderia saber a diferença entre obedecer ou não a Deus). E por essa má escolha, paga toda a humanidade. Isso é justo? Isso é bondoso? Não teria sido mais inteligente da parte de um Deus bom e carinhoso com a sua criação ter chutado a cobra do Éden, ao invés de a deixar rastejar até Eva e com as suas ladainhas ter tramado o resto da humanidade?

Voltemos a Jesus; é suposto ver este sacrifício como um acto de bondade. Afinal, não interessa se foi Deus que fez as regras. Ele está a salvar-nos e isso é bom. Mas seria necessário um sacrifício de sangue, grotesco e sádico? Seria necessária a morte de um inocente? Não poderia Deus perdoar toda a humanidade de outra forma, surgir a cada pessoa no mundo e assim inspirar-nos a ser boas pessoas e a viver em comunhão uns com os outros? (sim, porque segundo dizem essa é a principal mensagem). Não. Deus escolheu (caramba, não me digam que não tinha outra escolha, ele é Deus) que tudo assim funcionasse. Os pecados, a natureza humana, o sacrifício exagerado de um homem inocente. E para quê?

Que sacrifício é este, afinal? O que é, para um Deus todo-poderoso, o sacrifício de um corpo físico? O que significa para formigas como nós o perdão de um Deus que nos colocou numa situação pecaminosa e na necessidade de sermos perdoados em primeiro lugar?

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1 comentário:

Anónimo disse...

Gosto muito!