quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio duplo (9 e 10)

NOTA: A edição de hoje de Smith e as Sereias apresenta um comprimento invulgar. É um episódio duplo, para comemorar os 10 episódios da série. Às largas centenas de fãs que já me fizeram chegar os seus e-mails de elogios rasgados agradeço todas as palavras bondosas, mas compreendam que devo manter uma austeridade própria de autor de sucesso. Adeus.


Previamente, em Smith e as Sereias...

- Poseidon acorda junto do seu amante Namor, o musculado humano sub-aquático, que lhe pede mais uma vez para ir viver consigo para o Palácio e revelar a todos que o Rei dos Mares é homossexual. Poseidon fica reticente por causa da sua religião e dificuldade pessoal em aceitar a sua própria natureza.

- Lilith, a sereia loura que foi amante de Smith durante alguns minutos passados debaixo de uma mesa das estufas reais, promete ajudar o moço louro a encontrar a "sua" Rose em troca de um favor misterioso.

- Smith e Ariel encontram-se no quarto do Principado. Ariel fica comovida pelo ramo mal composto que Smith lhe oferece, mas avisa-o de que este não poderá esperar grande coisa de uma relação entre os dois. Ariel dorme na cama gigante e Smith no sofá com medo de um torcicolo.


Acordei mesmo com um torcicolo, foi de dormir no sofá. Assim que me levantei e comecei a calçar as botas senti uma pontada nas costas.

- Au!- queixei-me; e Ariel, no conforto almofadado da cama do quarto, respondeu-me com maus modos para não a acordar. Bateram à porta. Ariel saltou da cama, nadou bruscamente até mim e deu-me um puxão.

- Levanta-te e anda!

Arrastou-me pela gola da camisa até à cama, atirou-me para dentro dos lençóis e agarrou-se a mim como se tivéssemos acabado de acordar juntos.

- Entre!

A porta do quarto do Principado abriu-se e Sebastião, o mordomo, meteu o seu minúsculo mas altivo e respeitador corpinho de caranguejo dentro do quarto para dizer,

- Bons dias, Menina Ariel. Bons dias, senhor Smith. Permitam-me indicar-lhes o guarda-roupa, onde poderão encontrar mudas para hoje – indicou com uma tenaz um guarda roupa gigante – e relembrar-lhes que o pequeno almoço será servido no salão principal daqui a aproximadamente quinze minutos. Relembro também que o serviço religioso de hoje conta com a participação obrigatória de toda a comunidade de sereias. Os senhores Smith e Heath Ledger estão obviamente convidados.

- Obrigado, Sebastião.

- Passou a Menina uma boa noite?

Ariel desfez-se num sorriso de se lhe tirar o chapéu, ela era mesmo boa actriz:

- Com o meu futuro marido? Foi mavilhoso! - Sebastião parecia feito de granito, com o queixo levantado e uma postura impecável, como qualquer mordomo inglês dos filmes.

- Folgo em saber. Com sua licença, Menina – o caranguejo chamado Sebastião fechou a porta, e Ariel saiu da cama com uns movimentos rápidos de barbatanas.

- Veste-te. O salão principal é no centro do palácio, junto à entrada. E se bem conheço o Sebastião, terás roupa lavada e passada no guarda-roupa.

Ariel saiu do quarto, fechou a porta com força. Eu deixei-me cair na cama, que era obviamente muito mais confortável do que a porcaria do sofá; e de cabeça a descansar numa almofada do tamanho de um bacalhau, dei por mim a perguntar-me se algum dia, talvez com um gosto refinado e bem treinado para escolher algas, dormiria alguma vez naquela cama ao lado de Ariel.

***

Poseidon sentava-se a uma mesa individual, e à sua frente estendiam-se centenas de mesas pequenas onde as sereias se deliciavam com um pequeno-almoço cheio de confecções maravilhosas. À minha volta, as sereias com as quais partilhava a mesa olhavam-me de lado, umas com sorrisinhos, outras com desconfiança. Uma delas corou, quando os seus olhos encontraram os meus, e quase deixou cair o café quente em cima da barbatana cor de esmeralda. Estava muito bem a mastigar um pedaço qualquer de coral adocicado com pasta de alga mediterrânica quando uma mão gigantesca se pousou no meu ombro.

- Smith, meu caro. Como vai isso? Dormiu bem?

Era Poseidon.

- Dormi sim – e acrescentei, procurando atribuir realismo à coisa – A cama do Principado é realmente uma maravilha.

- Com certeza melhor quando partilhada com a sua futura mulher. Sabe, nos bons costumes da tradição – Poseidon estava especialmente altivo nessa manhã, como se quisesse impingir aos outros a sua personalidade retrógrada e tradicionalista de uma forma mais intensa que o habitual. Vá se lá saber porquê.

- Oh sim, claro – respondi - A tradição faz-me sempre dormir muito melhor.

- Smith, depois do serviço religioso de hoje gostaria de ter uns momentos consigo. Precisamos de conversar sobre a sua posição no Palácio, sobre o seu trabalho, etc.

- A propósito disso, gostaria de lhe perguntar se haveria alguma possibilidade de encontrar Rose, a namorada do Jack.

- Do Jack?

Uma sereia ao meu lado, que estava a ouvir a conversa, comentou para uma amiga:

- Vês? Eu disse-te que ele era o Jack Gyllenhall!

- Tudo a seu tempo. Mais tarde falaremos. Entretanto conto consigo no serviço religioso. Deveremos proceder à sua conversão.

- Conversão?

- Sim. Com certeza não quererá ir parar ao mais profundo e aterrorizador das fornalhas quando morrer, pois não?

- Não é uma coisa pela qual ambicione, não.

- Por isso mesmo. Até logo, Smith. Aproveite para provar a marmelada de mexilhão, é uma maravilha.

***

A Igreja era uma construção enorme em forma de catedral. As paredes estavam cobertas com imagens de peixes e seres aquáticos, e eram sustentadas por arcos ogivais com a forma das costelas de um peixe visto por dentro. Ao longo do comprido edifício estava o que seria a coluna vertebral do peixe, da qual pendiam correntes que seguravam candeeiros em forma de barbatana e que iluminavam o interior da igreja com uma bioluminiscência amarelada proveniente de uma qualquer espécie de bicharoco. A fundo estava uma representação posta em cima de um altar de onde labaredas de granito saíam com uma impressionante e artística fluidez.

As filas intermináveis de bancos corridos estavam cobertos na sua maioria por sereias, todas elas com cabelos e barbatanas de cores diferentes e alegres. À frente, de lado para o púlpito, estava a cadeira enorme de Poseidon. Um peixe enorme, um Salmão vestido com uma imitação de escamas douradas, subiu ao púlpito com o bamboleante oscilar de uma figura ancestral e gorda:

- Caros fiéis. Bem-vindos a mais um culto da nossa Igreja da Infinitamente Omnipotente Pescada. Hoje é um dia especial. Não só teremos a oportunidade de ouvir mais um pouco da Palavra da Pescada, como também a oportunidade de converter dois infiéis blasfemos e nefastos, que a partir de hoje serão como nossos irmãos, assim na Terra como no Mar. Assim nademos.

- Assim nademos – respondeu em coro toda a gente menos eu, ainda desabituado aos rituais.

- O tema para o sermão de hoje – anunciou o Salmão na sua voz solene e pesada– é a sexualidade.

Houve um suspiro na audiência. Poseidon corou.

- O sexo - começou o Salmão, alheio ao bocejo generalizado – é um prazer terreno e sujo, cheio de ovas e fluidos seminais, que a Pescada deu às criaturas para que pudessem propagar a sua espécie. Colocou-lhes também a possibilidade de obter prazer dessa actividade, e talvez por isso muitas criaturas a utilizem como entretenimento.

Algumas sereias bocejavam, outras jogavam ao solitário em cima da barbatana dobrada e outras ainda procuravam esconder os auscultadores do MP3 por entre os fios de cabelo.

- No entanto – continuava o Salmão, na sua postura de peixe que acha que o que está a dizer é de extrema importância – o sexo não é assim tão bom que não possa ser substituído por outras actividades igualmente enriquecedoras, como ler o Evangelho. Da próxima vez que vós sereias forem ter com os vossos namorados, em vez de os extasiarem com a vossa puberdade acelerada e com as vossas glândulas em altíssima produção de fluidos, experimentem parar, reflectir, e sugerir ao vosso amigo que passem a noite a ler o Evangelho convosco em vez de executar malandrices.

As sereias mantinham com grande prática a sua aparente atitude atenta. Uma sereia na fila de trás começou a roncar.

- E além disso – insistia o Salmão – não se esqueçam de que o sexo só serve para a reprodução. A vossa vida sexual deve restringir-se às ocasiões em que pretendam ter meninos. Se experimentarem uma vida mais casta e celibatária, com certeza toda essa repressão dos vossos instintos se reflectirá numa personalidade cada vez mais frustrada e fechada. Com alguma sorte poderão até acabar como eu, a pregar a Palavra a todos os Oceanos da Terra e sem nunca ter tocado num peixe de maneira lasciva. Sem acções pecaminosas. Ou vocês acham que eu nas minhas viagens me ando a esfregar a alguma raia, ou a alguma sardinha? É só uma questão de trabalhar durante toda a vossa adolescência por reprimir os instintos irresistíveis que a Pescada em vós colocou, porque só assim poderão agradar à Pescada. Não faz todo o sentido?

Houve mais bocejos. Um deles de Poseidon, que procurou imediatamente depois restituir a compostura.

- Eu sei, para mim também fez sentido – disse o Salmão com um sorriso condescendente – e por isso desde cedo na minha vida escolhi o caminho mais certo, o do celibato. Mas há algo pior que o sexo, por incrível que vos possa parecer. Há até algo pior que serem, sei lá – o Salmão procurou na sua cabeça a hipótese mais remota e selvagem que podia imaginar - umas ninfomaníacas depravadas que se envolvem com qualquer marujo que vos aparece pela frente, engravidando e contraindo herpes em locais difíceis de tratar – o Salmão adquiriu um tom austero – O caminho pior de todos é o da homossexualidade.

Poseidon explodiu numa onda de tosse repentina. Controlou-se. O Salmão continuou:

- A mera menção do nome “homossexualidade” – o Salmão marcou as aspas na palavra com dois movimentos pequeninos na ponta das barbatanas - provoca espasmos na garganta do nosso Rei. Só para verem como ele é um fiel às direitas. Sim, é verdade. A homossexualidade, ao contrário do que podem dizer-vos os filmes modernos ou a esmagadora maioria dos estudos científicos na matéria, não é uma parte da natureza humana ou animal. É sim uma escolha consciente do homossexual, que escolhe ser gay propositadamente para irritar os outros, e ao mesmo tempo um severo distúrbio emocional e neurológico. Ou seja, é algo que o homossexual escolhe, e ao mesmo tempo algo que ele não escolhe. Percebem porque é que não há uma contradição? Percebem porque é que consigo fazer uma carreira à volta de tão completos e bem fundamentados argumentos?

Eu não percebia muito bem, mas não disse nada. Estava a começar a ficar com medo do tom ameaçador do Salmão. Ele tinha ar de quem tem razão naquilo que diz.

- E podem perguntar-se, porque será a homossexualidade errada? Bem, a meu ver é errada porque sim. Isso não será suficiente? Com certeza que é, pelo menos para mim. E por ter esta convicção tão bem fixada é que vos estou a explicar isto tudo aqui hoje: ser homossexual é ser-se uma má pessoa. E nunca um homossexual poderá alguma vez ter uma vida normal. Pode até ser mais inteligente, responsável, sensível, carinhoso, trabalhador, moral, solidário, atraente ou até simpático que outros heterossexuais. Mas um homossexual será sempre, por definição, inferior. E porque? Porque é um homossexual. Muitos de vocês podem não conseguir seguir a complexa trama lógica e filosófica que é a base de toda esta brilhante argumentação, mas garanto-vos que eu pensei mesmo muito nisto e que o que vos digo é verdade.

Poseidon estava corado, e via-se que por alguma razão se sentia desconfortável naquela cadeira. Com certeza era por já estar com sono.

- E perguntam-me vocês, e a nossa Pescada, o que acha de tudo isto? Afinal, foi ela que colocou nos homossexuais a capacidade e a inclinação de escolherem ser homossexuais, ou quanto muito o distúrbio do qual os mesmos padecem e que lhes define a condição? Isto são tudo perguntas interessantes, mas que não devem ser colocadas. Sabem, a Pescada não lida bem com pessoas que põe questões, ou que a colocam em causa. Isto porque a Pescada é a resposta, para tudo. “Quem criou o céu?”, a Pescada. “De onde vêm os bebés?”, da Pescada. “Onde pus as chaves do carro?”, no bolso do casaco, mas se as consegues encontrar é graças à Pescada. Estão a ver? Duvidar da própria resposta é, por definição, ser um totó. Não será mais fácil aceitar de forma cega uma resposta imposta em oposição a pensar por vós próprios?

Houve uma pausa.

- Ah, e além disso – acrescentou o Salmão, à laia de parêntesis – se forem homossexuais vão parar ao Grelhador.

Apontou com a barbatana para a enorme estátua de pedra atrás de si. Era realmente um grelhador, com as labaredas e tudo. Incrível trabalho de escultura.

- E o que acontece no Grelhador? – perguntou o Salmão à assistência.

- Arderemos num calor infernal que grelha qualquer espinha e derrete qualquer escama – disseram as sereias em uníssono.

“Meu deus, que bonito” pensei eu, “Ver como este tipo de crença inocente reúne uma comunidade”. Fiz uma pausa. “Meu deus não, minha Pescada”.

***

Eu e o moço louro chamado qualquer coisa fomos convertidos. Subimos cada um de sua vez ao púlpito, colocámo-nos ao lado do Salmão e ele perguntou se nós estaríamos dispostos a aceitar a benevolência da Pescada nas nossas vidas ou, em alternativa, arder no Grelhador. Dissemos que sim senhor. O Salmão abençoou-nos com uns salpicos de água mágica, uma tradição idiota qualquer.

Houve aplausos da parte das sereias. Algumas delas faziam olhinhos ao moço louro, outras faziam olhinhos a mim, o moço louro fazia-me olhos de quem me queria matar à canelada, e a sereia loura, na primeira fila, olhava para mim como um leão que olha para a sua próxima refeição. Poseidon olhava para os pés, corado e com ar de quem estava com sérios problemas de consciência. Ariel olhava para a estátua do Grelhador, de mãos coladas uma à outra e movimentando-se levemente como que a imitar uma cauda de peixe a mexer. Estava a rezar. Os seus olhos cruzaram-se com os meus, mas desviaram-se logo de seguida.

***

Depois do serviço religioso comecei a dar umas voltas pela enorme igreja, para esticar as pernas. As serias tinham desaparecido todas, andavam rumores a circular de que um enorme navio de ingleses ia passar à superfície. Algumas sereias passaram por mim, lançaram-me aqueles olhares lascivos com os quais, se tinha bem percebido bem o sermão, poderíamos justificadamente ser condenados a coisas más. Comecei a pensar em Ariel, e a minha recente perspectiva religiosa sobre vida fez-me fazer um esforço para a imaginar vestida. Havia algo de estranho na forma como Ariel tinha estado a rezar. Ela não me parecia a pessoa mais religiosa do mundo, pelo que a sua convicção há pouco podia significar apenas uma coisa: um profundo desafio às suas crenças ou ética pessoais. O que poderia preocupar uma jovem grávida, que não quer ter o seu bebé e que é obrigada a dormir no mesmo quarto que o pai da criança? Que tipo de pensamentos poderiam estar a passar pela sua cabeça? Procurei pensar da forma mais realista e sensível possível. Somei dois mais dois, nunca fui de todo burro: Ariel estava com vergonha de me pedir para dormir com ela.

Dei uns passos em frente e fui quase chocar com Lilith, que vinha em sentido contrário a conversar com o moço louro. Olhei em volta, procurando um local para me esconder. Havia uma casinha de madeira à minha esquerda, meia escurecida. Lilith e o moço louro aproximavam-se, não queria ser esmurrado outra vez. Atirei-me para dentro da casinha e fechei a porta atrás de mim.

Respirei fundo. Uma voz grossa e profunda perguntou-me, do outro lado de uma parede esburacada:

- Salmão, é o senhor? Tenho um horrendo pecado para confessar…

Era a voz de Poseidon. Contive o riso. O que ali vinha tinha de ser uma coisa bombástica. Se calhar ia contar-me que tinha uma amante qualquer, ou que andava metido na droga.

- Eu sou homossexual – disse a voz profunda e grave, quebrando-se ao meio. Poseidon entrou num choro exagerado, nasal, quase infantil. Engrossei a voz:

- Er, meu Rei, desculpe?

- Eu gosto de homens, Salmão – disse a voz despedaçada de Poseidon – Eu cometi um pecado tremendo e agora não sei o que fazer para me redimir perante a Pescada…

Pensei imediatamente, “Grande bronca”. Parei para reflectir. Tinha na minha frente a possibilidade única de influenciar o Rei dos Mares da forma que mais me apetecesse. Era uma oportunidade demasiado valiosa para ser desperdiçada. Ok, Smith, pensa, pensa, pensa…

- Meu Rei? – perguntou a voz do Salmão, vinda do lado de fora do confessionário. As barbatanas do Salmão aproximaram-se e abriram a porta que me ocultava. Gelei.

- Blasfémia! O que lhe passou pela cabeça para ocupar o meu lugar no confessionário? – perguntou o Salmão com uma careta.

Ao meu lado, do outro lado da parede esburacada, Poseidon parou de chorar.


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1 comentário:

Luís disse...

"Marmelada de mexilhão" não é canibalismo?