terça-feira, 28 de setembro de 2010

Smith e as Sereias – episódio 17

Previamente, em Smith e as Sereias, Poseidon responde positivamente a todas as exigências de Smith, incluindo as obrigações impostas a Ariel sobre o casamento e o tentar encontrar Rose, a namorada perdida do moço louro. Smith aproveitou e resolveu obedecer ao pedido de Namor: abrir a boca e contar a toda a gente que Poseidon era homossexual.

Poseidon e Namor fizeram aquilo que os amantes fazem quando se amam e arranjam tempo livre, com os devidos ajustes ditados pelas limitações biológicas que algumas pessoas poderiam considerar como limitações a uma vida íntima normal e complementar. Para Namor o que não faltou foi intimidade: suado e feliz, ergueu-se da cama e caminhou até uma mesinha. Olhou lá para fora.

- Está a amanhecer – disse ele. O sol à superfície da água começava claramente a nascer, e o ângulo por ele formado sobre a superfície do oceano fazia com que impressionantes raios luminosos furassem como setas as profundezas das águas. Uma paisagem de corais sujos e mal tratados estendia-se à frente da janela do motel Meduzza. Poseidon levantou-se da cama, foi à casa de banho sem dizer nada e depois voltou.

- Ainda te sinto nervoso, meu amor – disse Namor. Foi abraçá-lo – O que se passa?

- O Smith. Fiz tudo o que me pediu, em troca do seu silêncio.

- E isso não é bom?

Poseidon olhou-o nos olhos.

- Tu é que me estavas a pedir sempre para parar de ser mentiroso. Para fazer o que tinha de ser feito.

- Sim, mas só quando chegasse a altura certa. Quando te sentisses preparado.

Poseidon não disse nada.

- Estás arrependido?

- Arrependido? – perguntou Poseidon – Não te sei dizer. Acho que não. Acho que ainda não é a altura, só isso.

Namor deu-lhe um sorriso compreensivo.

- Percebo. Amanhã encontramo-nos outra vez?

- Às seis, só às seis. Tenho uma reunião com o Smith sobre o trabalho dele.

- Sais tu primeiro ou eu?

- Posso ser eu. Até amanhã, meu amor.

- Até amanhã.

Poseidon atravessou o vazio corredor e desceu as escadas de incêndio. Chegou à recepção, e teve o cuidado de sair pela porta das traseiras, evitando o olhar atento de um funcionário carapau, altivo e severo. Assim que abriu a porta para a rua, uma explosão de luzes brancas cegou-o momentaneamente. Sentiu corpos e barbatanas e tentáculos a caírem-lhe em cima, e as suas orelhas inundadas por vozes desesperadas que gritavam:

- Sua majestade, é verdade que é homossexual?

- Sua majestade, de que forma pensa justificar-se aos habitantes dos mares?

- Sua majestade, como classifica a prestação do Príncipe Namor na cama?

- Sua majestade, em directo para o Canal Concha…

***

Recorte referente ao jornal Diário Anémona, dia 27 de Junho de um ano indistinto.

ESCANDALOSA BRONCA SEXUAL

Uma dica anónima ao nosso jornal revelou uma verdade chocante sobre o Rei dos Mares: Poseidon é HOMOSSEXUAL. Na tradição de jornalismo sério e objectivo a que sempre habituámos os nossos leitores, seguimos em segredo o nosso Rei através de cavalos-marinhos camuflados e colocámos repórteres cercando o Motel Meduzza, onde Poseidon se instalou na noite passada. Foi com surpresa e estupefacção que os nossos investigadores conseguiram captar as inacreditáveis informações que publicamos para vós.

Primeiro, Poseidon saiu do Motel pela porta das traseiras, tendo sido apanhado pelo conjunto de jornalistas educados que lhe dirigiu uma série de perguntas sérias e apenas com o intuito de obter as informações mais factuais. Poseidon não prestou declarações. Cinco minutos depois, o conhecido homossexual e herege herdeiro do trono atlante Namor de Raya Pérola Pacífica abandonou o mesmo motel a pé. Uma consulta clandestina aos registos dos quartos, bem como uma compensação monetária ao funcionário da noite do motel, feita na melhor tradição de seriedade do nosso jornalismo de investigação, revelou que um casal de nome Sr. e Sra. Reais haveria alegadamente passado a noite no quarto 346. No entanto, nenhum casal foi encontrado no motel com este nome.

Sem querer fazer juízos de valor infundados ou injuriar levianamente nenhuma personalidade da nossa Corte, podemos revelar em primeira mão e em exclusivo que Poseidon e Namor estão a ter uma avassaladora relação homossexual.

Em conversa com Profeta Salmão, o pároco da Igreja da Nossa Pescada dos Mares localizada dentro do Palácio real, obtivemos mais informações sobre o caso. “Eu já sabia de tudo, a pescada revelou-mo num sonho”, declarou ao nosso jornal o Profeta, “aliás, tenho tudo aqui escrito num bloco de notas para verem que é verdade. A única razão porque eu achei pouco importante avisar a população dos mares é simples: a Pescada disse-me claramente que neste dia 27 toda a história viria a público. Também tenho isso aqui no bloco de notas, querem ver? Cá está. A minha clarividência e a minha ligação inegável à Pescada tinham-me alertado para esta situação”. O pároco acrescenta ainda que considera exageradas as críticas a Poseidon feitas por muitos comentadores religiosos, uma vez que tem “a certeza quase absoluta” que a Pescada encontrará uma boa forma de castigar o Rei Homossexual. “Quando esse castigo acontecer logo vos direi quando me foi revelado previamente”, garantiu.

O Gabinete de Poseidon, no Palácio Real, não quis prestar declarações. Este silêncio está a levantar suspeitas nas camadas mais inteligentes da nossa sociedade de que toda a Corte é, na verdade, uma constante orgia homossexual que trará a destruição aos nossos Reinos do Atlântico.

No desporto, a Confederativa Conchita derrotou o Percebes Sport Clube por 23-15, na maior derrota da história da equipa chefiada pelo técnico (…)

***

- Por aqui, doutora – disse Sebastião, conduzindo a Dra. Enidra pelo corredor do palácio. A Dra. era uma lontra castanha e pequena, de elegantes bigodes e um par de óculos em cima do nariz. Trazia uma pasta.

- Sabe que isto é extremamente irregular – disse ela numa voz profissional - As consultas são sempre no meu consultório para evitar que o paciente se sinta intimidado ou limitado pela presença daquilo que lhe é familiar – comentou.

- É uma emergência, doutora – disse Sebastião. A sua habitual compostura de mordomo inglês estava abalada. Parecia nervoso, e as suas tenazes faziam barulho enquanto tremelicavam.

Os dois viraram uma esquina e a Dra. Enidra viu um número indescritível de sereias à volta de uma porta enorme, decorada com conchas douradas e prateadas. Uma sereia ruiva aproximou-se dela.

- É a psicóloga? – a sereia estendeu-lhe a mão - Ariel, filha do Rei. Por favor, tem de ajudar o meu pai.

- O que aconteceu?

- Ele fechou-se na sala do trono há dois dias. Não comunica com o exterior, recusa qualquer refeição e disse que só fala consigo e mais ninguém.

- Abram alas para a Dra., por favor – anunciou Sebastião. As sereias iam afastando-se, e olhavam para a lontra com curiosidade. Um humano numa cadeira de rodas e embrulhado num roupão falava com uma sereia loura de olhos azuis, que parecia estar a chorar. A Dra. aproximou-se da porta e enrolou a sua pata num punho peludo. Bateu três vezes.

- Poseidon? É a Dra. Enidra. Posso entrar?

Silêncio. As sereias calaram-se todas.

- Poseidon? – insistiu a lontra.

Mais silêncio.

O trinco dobrou-se num som metálico e a porta entreabriu-se.

A Dra. Enidra entrou e a porta fechou-se outra vez.

Todas as Terças e Quintas há novos episódios de Smith e as Sereias.

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