terça-feira, 7 de setembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 11

Previamente, em Smith e as Sereias, uma ida à Igreja da Pescada corre às mil maravilhas. Smith e o moço louro são convertidos à religião dos mares de forma a evitarem tortura eterna, mas Smith faz asneira ao entrar no confessionário da igreja de maneira a esconder-se de Lilith e do moço louro. Do outro lado do confessionário está Poseidon, que chora e revela a quem pensa ser o Profeta Salmão a verdade sobre a sua natureza sexual. Segundos depois, o verdadeiro Salmão abre a porta do confessionário e desmascara Smith.


O Polvo deu aos tentáculos e foi aterrar na poeira do solo marinho. Olhou em volta, procurando a tabuleta com o nome da rua. Descobriu que estava na Praça Caçarola, uma praça arredondada e côncava cheia de edifícios feitos a partir de rochas e corais à sua volta. O Polvo aproximou-se do número 5 e bateu à porta.

- Quem é? – perguntou uma voz estridente.

- É o senhor doutor – disse o Polvo. A porta abriu-se.

- Ainda bem que veio, soudoutôr – disse a mulher atlante que convidava o Dr. Polvo a entrar, por entre um fortíssimo sotaque açoriano. Estava vestida com uma túnica azulada, cilíndrica, e tinha os típicos brincos de coral a abrir-lhe um buraco impressionante na orelha – O meu primo está extremamente doente.

O Dr. Polvo nadou pelo corredor fora, seguindo a mulher cilíndrica. A casa de pedra estava decorada com a mobília mais essencial e pobrenatas possível, e representações em forma de pintura de um peixe estavam presentes no corredor e nas pequeníssimas divisões.

O Dr. Polvo entrou num quarto pequeno, onde um atlante mirrado, com meia dúzia de tufos de cabelo castanho e um corpo semelhante a uma gazela esfomeada estava estendido por cima de um cobertor no chão. Tremia descontroladamente, e quando viu o Dr. Polvo entrar abriu a boca para o cumprimentar mas em vez disso um pedaço de gosma esverdeada escorreu-lhe pelo queixo abaixo.

- Tenha calma – pediu o Dr., dobrando-se sobre o paciente. Os seus tentáculos mexiam-se com uma práctica e uma precisão enormes. Cada um deles tinha uma funçao definida. Um deles abriu os botões do casaco, e dois tiraram-no e penduraram-no numa cadeira; outro abriu a malinha de pele castanha que o Dr. transportava, e enfiou-se lá dentro à procura de materiais; e outro tentáculo estendeu-se na direcção do pacience, medindo-lhe a temperatura da testa e puxando-lhe as pálpebras para cima – ora diga-me lá o que sente.

O atlante magricela olhou para o Dr. com um par de olhos amarelados.

- Dor horrenda – disse ele, também com um sotaque açoriano.

- E mais alguma coisa?

- Que estou a morrer.

- Pode ser um pouco mais específico?

- Que estou a morrer muito depressa.

Três tentáculos procuravam, remexiam e utilizavam materiais de medição, frascos com substâncias fluidas e uma lanterninha acesa dentro da boca do paciente.

- Quarenta graus de temperatura, glândulas inflamadas e sensíveis ao toque, olhos sem brilho e com tons amarelos. Tem comido ostras?

- Não, soudoutôr – disse a mulher cilíndrica – Não temos dinheiro para as comprar…

- Vou morrer, não vou? – perguntou o doente magricela, também ele com sotaque açoriano.

- Vai, mas não será hoje. Nem amanhã – Um dos tentáulos do polvo entrou na maleta e trouxe uma ostra. O Dr. Polvo bateu com a ostra duas vezes numa rocha, abriu-a e despejou o conteúdo para dentro da boca do magricela atlante.

- É grave, soudoutôr? – perguntou a mulher cilíndrica a morder as unhas– Ai minha Nossa Pescada dos Mares…

- Claro que não é, minha senhora. O seu primo vai ficar a sentir-se melhor imediatamente.

O magricela deixou de deitar gosma da boca depois de ter engolido a ostra.

- É verdade, sinto-me mesmo melhor!

- O vírus que apanhou – disse o Dr. Polvo, com três tentáculos a arrumar os materiais e com outros dois a escrever uma receita – é a consequrencia lógica de uma mudança brusca na alimentação. Quando é que abandonaram a Atlântida?

O magricela olhou para a prima e ela baixou os olhos.

- Soudoutôr, sabe muito bem que se lhe digo alguma coisa ainda sobra para nós…

- Não se preocupe que não vou chamar as autoridades – disse o Dr., rasgando a folha com a receita – Mas é importante que consiga ostras pelo menos três vezes por semana.

- Não temos dinheiro. Não consigo arranjar um emprego…

- O que é que fazia na Atlântida antes de, hum…

- Fugir – disse a mulher com alguma comoção – Era técnica laboratorial especializada no planeamento e construção de mecanismos de locomoção movidos a energia quântico-magnética.

- Exército?

- Exactamente – disse a mulher – Mas agora nem consigo arranjar trabalho no supermercado, ou em algum motel barato. Por ser atlante… - a mulher despedaçou-se num pranto açoriano, clamando ofensas entre dentes.

- Tem de desculpar a minha prima – disse o doente, a limpar a gosma esverdeada a um papel – Ela tem estado muito nervosa. Conseguimos fugir da Atlântida e agora ninguém nos quer. Somos emigrantes, mão de obra barata e dispensável, seres inferiores.

- E você que fazia antes?

- Era físico teórico – respondeu – Mas hoje em dia já ninguém se preocupa com os fenómenos relacionados com as alterações de trajectória dos neutrinos em movimento.

- A quem o diz – comentou o Dr. Polvo, só para dizer alguma coisa. Levantou-se.

- As suas melhoras e boa sorte a encontrar um emprego. Se souber de alguma coisa com certeza terei todo o gosto em ajudá-lo.

- Muito obrigado, soudoutôr – disse a prima cilíndrica, a limpar as lágrimas.

O Dr. Polvo saiu pela porta e despediu-se da mulher atlante. Caminhou calmamente até uma pequena cabine, agarrou numa concha ligada a um fio elétrico e falou para dentro da concha:

- Telefonista? Ligue-me à Polícia.

Houve uma pausa.

- Sim, era para denunciar uma família de Atlantes. Claro. Praça Caçarola, número cinco. Não, um deles está doente, não conseguirão fugir. Boa tarde.

O Dr. colocou a concha no suporte e saiu da cabine. Um peixe com as cores do Palácio Real ia a nadar urgentemente na sua direcção. Levantou as barbatanas para conseguir parar junto do Dr. e fez uma pequena vénia.

- Senhor doutor, preciso que venha comigo imediatamente ao Palácio. Aconteceu um acidente e Poseidon chama por si.

- É grave? – perguntou o médico.

- Penso que sim. Mandaram-me chamá-lo porque um idiota qualquer entrou no confessionário do Profeta Salmão e o Rei Poseidon espetou-lhe com o tridente na barriga.


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