quarta-feira, 15 de junho de 2011

Frase Apropriada #2

 
“Eu sei”, respondi com vaidade. “E o resto?”
Rui Zink, O Anibaleitor
 

“Eu sei”, respondi com vaidade. “E o resto?”
- E o resto? Mal. Muito mal.
- Oh – fiquei todo desapontado, pá – Tens a certeza?
Cláusulos olhou-me de alto a baixo outra vez e levantou as sobrancelhas, como se fosse suficiente. Eu não percebi. Achava que estava mesmo muito bem vestido, e estava mesmo. Ele é que não percebia nada do que significava uma pessoa ser fashion. Tentei explicar-lhe:
- As calças usam-se assim, agora. A culpa não é minha.
- A culpa é tua se decidires usá-las dessa maneira.
- Que se passa, afinal? – perguntou a minha mãe, entrando no quarto. Cusca. Sempre a meter o enorme e borbulhento nariz onde não era chamada. De noite ficava acordada até tarde a rebentar borbulhas, e nas raras ocasiões em que era bem sucedida ficava com uma série de crateras no nariz e depois dava-lhe a vergonha de sair de casa para ir às compras. Mas também chorava quando tinha borbulhas. É aquela coisa de ser preso por ter gato e preso por não ter. Era um gato?
- Passa-se que és uma intrometida – respondi-lhe. Desde todas aquelas viagens ao psicólogo que tentava ser mais simpático com a minha mãe. A nossa relação não era a melhor.
- Não me fales assim – disse-me o nariz com borbulhas. Quando o nariz está assim só o vejo a ele. Como posso não ser rebelde e irresponsável quando tenho um nariz cheio de borbulhas como figura maternal? A psicóloga não percebe. Eu percebo.
- O que acha do aspecto do seu filho, senhora Princles?
O Cláusulos tinha essa mania de chamar a minha mãe de senhora, ou então de dona, como se nunca o tivesse apanhado a espreitar pela janela da casa de banho enquanto ela tomava banho.
- Acho que parece uma criança desfavorecida de um bairro social – respondeu o nariz – Puxa-me a cintura das calças para cima e ajeita o boné!
- O boné é a única coisa que se aproveita – opinou Cláusulos.
- O boné é apenas a cereja no topo do bolo – defendi-me – Também tu precisas de um boné para esconder essa cabeça de pepino.
O Cláusulos soltou uma gargalhada, e o nariz ficou ofendido por ter “vilipendiado” o meu melhor amigo.
- O melhor amigo é meu e faço com ele o que quiser – respondi, treinando a postura de rebelde. A camisa, convenhamos, estava um pouco curta demais. Mas via-se os boxers, e isso era o mais importante. Na minha escola nascia uma nova tendência à qual o meu tio chamava “putos com as cuecas à mostra”. Dava cãibras nas pernas, por que tinha de andar com elas arqueadas todos os dias para fazer atrito com as coxas e impedi-las de cair. Mas aumentava exponencialmente a minha virilidade aos olhos das gajas, e isso é coisa que não tem preço. Além disso, podia mostrar os meus boxers giríssimos com bonecos que tinha comprado há duas semanas em Badajoz.
O nariz, claro, não o compreendia. No tempo dela tinha-se apaixonado pelo meu pai não por ele andar bem vestido, mas porque usava óculos de fundo de garrafa e sabia resolver equações. É o tipo de coisas que sempre excitou o nariz, se bem que desde que vai ao ginásio às quintas feiras descobriu que também gosta de mulatos musculados. Ei, se calhar é por isso que o Cláusulos anda na musculação…
Esse é outro. Tem um crânio gigante, é muito bom aluno, tem duas namoradas ao mesmo tempo, uma delas surda-muda com a qual “nunca desenvolveu problemas de comunicação” (palavras dele, não minhas), e é daquelas figuras de que os pais gostam logo. Vá-se lá saber porquê. Tem aquele travo de menino responsável e que veste sempre cuecas lavadas todos os dias, mas é tão depravado como eu em relação a tudo e mais alguma coisa. Não sei se já vos disse, mas ele espreita a minha mãe pela janela enquanto ela toma banho.
- O Cláusulos tem razão – surpreendeu-me totalmente a minha mãe, sempre a dar-me razão e nunca aos meus amigos tão depravados como eu – Devias vestir-te como um homenzinho.
- Eu estou vestido como um homenzinho – respondi.
- Se me explicares o conceito por trás desse novo look eu dou a mão à palmatória e peço-te as mais sinceras desculpas.
Só mesmo o idiota do Cláusulos para usar uma expressão estrangeira, um dito popular, a palavra “conceito” e uma expressão bem educadinha tudo na mesma frase. Que é isso da palmatória, afinal? Como se lhe dá uma mão?
- Não tem de ter conceito nenhum, Cláusulos – respondi – Trata-se de individualidade pessoal e intransmissível.
- Como os passes sociais.
O nariz borbulhento soltou uma gargalhada parva.
- Fica bem e pronto. Não tenho de me justificar. Se as pessoas não gostam de ver a minha roupa interior, eu gosto. Eu gosto de mostrar as minhas intimidades. E ademais – era uma expressão espanhola que tinha apanhado num filme visto em Badajoz, porque naquela terra os filmes são todos dobrados e até o Harrison Ford fala castelhano – Andar com as pernas arqueadas dá estilo. Repara.
Caminhei pelo quarto, com cuidado para que o cinto não deslizasse coxa abaixo. Ainda estava a treinar-me, mas ficava progressivamente melhor. Já era capaz de atravessar o corredor da sala sem ter de dar um puxão para cima nas calças.
- Além disso – acrescentei, tirando o boné – Estou a tratar do meu penteado.
O meu cabelo assemelhava-se agora a um pedaço de contraplacado pendurado pela testa, que me tapava os olhos até ao nariz.
- Isso também dá estilo? – perguntou Cláusulos.
Eu apontei para o cabelo retoricamente, e levantei o queixo para lhe poder ver a cara por entre o meu cabelo cuidadosamente passado a ferro. Parecia-me óbvio. Cláusulos riu-se, a minha mãe também, e eu levantei a cabeça bem alto (por orgulho em mim próprio e na minha individualidade, e não porque não conseguia ver nada à frente), arqueei as perninhas e saí do meu próprio quarto, preparado para conquistar o mundo.
Depois cresci, cheguei a adulto, e quando vejo fotografias de mim naquela altura pergunto-me como poderia ser tão idiota.

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