domingo, 12 de junho de 2011

Sardet no coração


Estudemos com cuidado aquela que considero ser, na minha modesta opinião, a pior música portuguesa alguma vez feita (e incluo Quim Barreiros e Toy nesta classificação, apesar de não merecerem). Trata-se do último sucesso desse Tony Carreira da classe média alta chamado André Sardet, mais conhecido por ser o autor de outras dezenas de baladas igualmente responsáveis pelo declínio do bom gosto musical português.
A música é a típica ladainha repetitiva e aborrecida ao piano, semelhante às lamúrias adolescentes que um jovem pianista poderia compor para a sua amada; e a letra não destoa. Veja-se a beleza desta estrofe:
Todo o beijo que é roubado,
Tem mil anos de perdão,
Só se for guardado junto ao coração
Sardet é obviamente a autoridade máxima em piropos românticos. “Envolver-te num abraço / Ver o dia madrugar” é igualmente sofisticado; e para tornar tudo mais internacional, Sardet utiliza “dié”, que é uma expressão que todos conhecemos e que se traduz por “fim”. Como no cinema. Percebem? Sim, é sofisticado demais. Por isso, Sardet ajuda o ouvinte:
Faço uma cena
Como vi lá no cinema
Não se trata de nada específico, é apenas “uma cena”. Reparem como nos desperta a imaginação. O que será? Um anel? Um ramo de flores? Um estalo? E é lá no cinema, e não no cinema simplesmente. Um cinema abstracto seria demais, até porque tornaria o verso coxo e sem ritmo. Mas tal é compreensível. Compor uma música de tamanha complexidade e originalidade já é obra, quanto mais querer que a letra nela se encaixe! Talvez por isso Sardet conceda a si próprio uma criativa utilização da língua portuguesa. Veja-se como pronuncia “esperança” (“xprança”), logo nos primeiros segundos de música. Ou mesmo a “chávna de café” de onde Sardet bebe o amor de não sei quem.
Aliás, toda a narrativa tem um carácter épico. Sardet deseja entrar pela casa de uma pessoa para que esta “lhe diga como é”, e ao mesmo tempo “dizer tudo o que sente”. Desta vez é mesmo a sério, o que significa que já lhe mentiu antes e sabe que merece ouvir “como é”. No entanto, e apesar de mentiroso, Sardet sente-se no direito de lhe beber o amor (vão só tomar café, eu sei, mas é mais romântico do que isso. Se uma gaja prepara uma caneca de café ao gajo que lhe mentiu anteriormente e agora lhe entra pela casa adentro é porque lhe está a dar o seu amor. Até aí percebo) e de dançar com ela na varanda. E além de lhe sujar uma caneca, vai fazer “uma cena” e roubar-lhe um beijo, o que visto no contexto pode ser um eufemismo para uma violação.
Roubo-te um beijo,
Depois de roubado é meu
A falácia lógica é secundária quando falamos de algo tão belo (veja-se a mesma lógica aplicada a “Roubo-te a carteira / depois de roubada é minha”). Não se trata de um beijo qualquer. Ele vai guardá-lo “junto ao coração”, portanto, algures na cavidade torácica, e isso significa que o gajo gosta mesmo da sua gaja. É, digamos, uma forma de lhe agradecer o amor que bebeu da chávena. Sim, poderá sempre parecer mais uma daquelas ladainhas asquerosas que os cantores românticos compõem para delírio das fãs, mas isso seria desrespeitar o trabalho de Sardet. E isso não pode ser. Tratar assim um homem com tanto amor para dar não é só cruel, mas também exagerado. Em tenho xprança que Sardet, um dia, seja capaz de compor algo decente.
O que dizer de alguém que paga as suas contas com tamanho assassinato ao bom gosto? Nada. Fará sucesso, como todos os maus letristas e músicos portugueses. As pessoas não gostam de boas letras, porque essas exigem possuir neurónios para as analisar e apreciar. Preferem a ordenação desprezível e quase aleatória de “beijo”, “amor”, “quero-te não sei quantas vezes ao dia” e outras enormes inovações no panorama romântico mundial.

2 comentários:

Rui disse...

LOL!
Gostei muito da análise!
Andava também por aí a parodiar a pior letra do ano quando encontrei o blogue!

Renato Rocha disse...

Obrigado Rui! Parodiar o pobre Sardet é sempre um prazer...