sábado, 11 de junho de 2011

Samora 1

Sobriamente, a Morte chegou ao cruzamento, sentou-se e esperou. Dali a sete minutos, número divino que hoje receberia outra carga mais negra, um indivíduo esquisito que conduzia uma carrinha de caixa aberta e transportava consigo uma tartaruga, uma criança pequena e uma caixa de sapatos iria espetar-se contra aquele sobreiro, aquele ali ao fundo, sim, por baixo da ponte e logo depois da ribanceira. A carrinha iria sair disparada da estrada, escorregando em alguma superfície pastosa que estivesse esquecida na estrada, e voaria sete metros (o número, outra vez, sempre o número) até ao seu último destino. A ambulância chegaria ao local catorze minutos depois (é só dividir por dois) e declararia todos os passageiros da carrinha falecidos, até a tartaruga. Era para isso que a Morte lá estava. Pela alma da tartaruga. As almas dos outros dois não lhe interessavam.

No princípio era o Verbo, mas esquecemo-nos que devemos sempre começar pelo sujeito. O Quem é, por vezes, mais importante que o Quê. Samora só se iniciou neste tipo de reflexões muito mais tarde, anos depois de ter quase morrido na ribeira da aldeia. Crescera com os pais e com os avós, todos a dormir no mesmo quarto como galinhas, e ali ganhara uma total aversão aos outros e a si mesmo. O seu suor misturava-se com o suor da mãe e do pai e do irmãozinho. Não era por serem pobres. Isso não lhe fazia confusão nenhuma. Ser pobre é uma virtude, basta ver a quantidade de ricos que, corrompidos como estão pelo dinheiro, se esquecem das suas próprias origens humildes e compram quadros e mamarrachos a que chamam Arte (com maiúscula, porque sem ela não o é) em vez se tirarem da lama os seus próprios colegas de escola primária, todos sujos e de mãos gretadas e dormindo na mesma cama no mesmo quarto miserável da mesma casota por trás da mesma colina solitária. Não era por serem pobres, era por serem muitos. Samora queria ser uno, uno apenas e não uno más, como diziam os meninos espalhóis com quem brincara. Em vez disso, era um dedinho na conta que deus fez. Por isso pensou muito cedo em matar-se, porque a ideia de ir para o campo com os avós e crescer a colher couves e deixar crescer o buço ultrapassava-lhe a sensibilidade. Deixava-o doente. Queria ser uma epopeia personificada, um viajante branco e límpido que viria do futuro ser mais do que qualquer outro herói tinha sido nas grandes viagens, no tempo em que os homens andavam de toga e eram todos rabetas. Samora sonhava com Platão e com Sócrates e com todos os gregos e romanos e monges e iluminados e renascentistas, e sonhava também ele, Samora de seu nome, constar num desses índices de génios únicos e unos da História. Daí a aversão às couves, e daí tanta porrada naquele rabo pequeno quando se fingia doente, ou fugia do campo para ir para baixo da janela da escola ouvir a lição e tentar ser alguém. As mãos sujas do pai agrediam-lhe a inocência e mastigavam-lhe os músculos de menino, e portanto cresceu chorando e queria morrer sorrindo. Atirou-se de cabeça para dentro da ribanceira, na esperança de bater logo com ela numa pedra e ir daquela para melhor. Teve azar. Bateu com a cabeça nas algas, ficou enrodilhado, o pânico tomou-lhe os bracinhos e começou a chapinhar como um gato a afogar-se. Chamou a atenção dos compadres do pai, que o viram ali caído e foram em seu socorro. Quando lhe perguntaram porque tinha mergulhado na parte mais funda não explicou que queria morrer, até porque ninguém o ajudaria se ajuda lhes pedisse. Não lhe restou outra alternativa senão sobreviver, e aproveitar a primeira oportunidade que teve para se fazer à estrada e partir dali para longe. Porque é que nunca se tentou matar outra ver era pergunta que nunca lhe assolou a mente, especialmente agora já adulto. Mas que se arrependia de não ter morrido naquela tarde na ribeira, ai isso arrependia.

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