quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Smith e as Sereias – episódio 18

Previamente, em Smith e as Sereias, a homossexualidade de Poseidon que tanto espaço tem ocupado nesta história, vem finalmente a público através de uma denúncia anónima a um jornal. A ver se é desta que a coisa se resolve e podemos avançar para enredos mais interessantes. E agora, é tempo para um flashback. Zuuuooooooommmmm…  (som de viagem no tempo):

 

Oceano Atlântico, 25 de Julho do ano 673 da Era do Bacalhau

Declaração Oficial

Eu, Poseidon, Rei e Senhor dos Mares, Supremo Criador das Sereias e Governador por direito de toda a vasta extensão oceânica exceptuando o Independente Império da Atlântida, venho por este meio declarar o seguinte, para razões legais e outras:

Ponto Primeiro; comprometo-me a libertar a minha filha Ariéliga, sereia maior de idade, de quaisquer obrigações por mim previamente impostas em relação ao seu casamento oficial com o humano Smith.

Ponto Segundo; comprometo-me a encontrar pessoalmente ou, através da disponibilização imediata de meios dirigidos para esse efeito, conduzir ao encontro da humana Rose, de apelido e paradeiro actual desconhecido.

Ponto Terceiro; comprometo-me a disponibilizar um escritório maior para o humano Smith, até à data de redacção deste documento o único trabalhador oficial do Departamento de Relações Extra-Marinas. Comprometo-me, ainda, a disponibilizar-lhe os meios necessários para realizar esse trabalho nas devidas e aceitáveis condições.

Sem mais pontos a acrescentar, dou por fechada esta declaração.

Assinado oficialmente e na presença de testemunhas de Estado,

ass.:  Poseidon, Rei dos Mares   

***

Estava eu e ela no quarto do Principado, alguns minutos depois de lhe ter contado a já repetida história da homossexualidade do seu pai. Ariel levantou a cabeça que até ali tinha estado enterrada entre as suas mãos e olhou para mim.

- Sabes, com esta coisa toda de teres quase morrido por causa do meu pai, eu cuidei de ti com todo o gosto. Aliás, se queres que te diga, eu comecei a dormir ao teu lado porque me fazia sentir melhor. Sentia essa necessidade. Sentia uma quase atracção por ti, provavelmente por estares tão debilitado que não podias tentar violar-me ou coisa parecida. Mas agora que estás melhor e me contas uma coisa dessas, tenho a dizer-te que voltaste, na minha escala pessoal de consideração por ti, à estaca zero.

Ouvi todos aqueles insultos com todo o sangue frio que um chantagista como eu deve ter; e no fundo a parte lamechas da minha personalidade dizia-me que Ariel tinha razão. Eu não tinha o direito de…

- Tu não tinhas o direito – continuou Ariel, interrompendo-me os pensamentos – de fazer uma chantagem dessas com o meu pai. Simplesmente não tinhas. Foi horrendo da tua parte, sabes disso?

Eu fiquei calado. Ela ficou à espera de resposta.

- Sei.

Ariel continuou a olhar para mim. Estava muito calma, mas ao mesmo tempo extremamente abalada. Como se o que quer que estivesse a sentir naquele momento fosse complatemanete contra aquilo que ela queria estar a sentir naquele momento.

- Por outro lado – disse ela – Tenho de admitir que foi querido da tua parte essa coisa de me libertares do nosso casamento.

- Obrigado.

- E aquilo de pedires para encontrar a Rose também.

- De nada.

- Mesmo assim, chantageaste o meu próprio pai.

- Por uma boa causa. Várias, aliás. Todas elas importantes e imprescindíveis.

- E o “escritório maior”?

- Como disse: importantes e imprescindíveis.

Ariel fez uma pausa.

- Tu queres manter esse ar de ignóbil inconveniente mas no fundo és é altruísta – disse ela.

Aquilo apanhou-me de surpresa. Porque é que me estava a chamar nomes? Ia perguntar-lhe o que raio queria ela dizer com altruístico quando ela se levantou e saiu do quarto.

***

Duas horas depois fui visitado pelo moço louro. Ele vinha com ar de quem tinha feito porcaria. Aproximou-se da cama e sentou-se numa cadeira, cabisbaixo.

- Como te sentes?

- Melhor – respondi.

- Ainda tens dores?

- Algumas, quando me viro na cama.

- E a ferida está a cicatrizar?

- Pergunta-lhe a ela.

- E medicação? Tens estado a tomar tudo?

- Se quiseres leio-te o relatório médico, está ali na mesinha de cabeceira.

O moço louro percebeu que se era para continuar com a conversa fiada eu preferia descansar. Olhou para mim e murmurou:

- Desculpa.

- Porquê?

- Por te ter dado um murro.

- E a que propósito vem isso?

- A Ariel contou-me o que fizeste. Armaste uma chantagem qualquer com o Poseidon para lhe sacar coisas. E uma delas foi encontrar a Rose.

- Foi sim senhor. Eu também te devo um pedido de desculpas. Ter guardado o desenho com a tua namorada de maminhas à mostra foi de mau gosto.

- Amigos?

Cumprimentámo-nos. Aquilo estava a ficar muito lamechas para mim. Endireitei-me na cama.

- Olha, preciso que me faças um favor. Preciso que contes a toda a gente, mas à laia de rumor para não seres descoberto, que o Poseidon é gay.

O moço louro encolheu os ombros.

- Ah, isso já toda a gente sabe.

- Quê? – perguntei, surpreso.

Bateram à porta e entraram logo a seguir. O meu quarto andava muito concorrido. Era Ariel outra vez.

- O meu pai barricou-se no salão – disse ela – Já toda a gente sabe.

- Como assim, já toda a gente sabe? – perguntei eu.

- Um anónimo qualquer denunciou-o ao jornal – disse o moço louro - Está um verdadeiro escarcéu no oceano. Já te tinham contado, certo?

- Claro, claro. Aliás, eu soube mesmo pelo jornal – respondi.

***

Uma figura semi-nua e vestindo apenas umas cuecas repletas de escamas aproximou-se de uma cabine telefónica e enfiou uma conchinha dourada na ranhura. Esperou. Do outro lado:

- Diário Anémona, o bom jornalismo ao serviço do sensacionalismo barato. Para contactar com o nosso serviço ao leitor, prima um. Para denunciar uma personalidade pública que ande a usufruir da sua vida privada, prima dois. Para acusar alguém de violação, prima três. Para…

Um dedo elegante carregou na tecla com o número 2 e esperou que alguém o atendesse.

 

Todas as Terças e Quintas, novos episódios de Smith e as Sereias. E posso desde já declarar que a partir de agora a coisa vai começar a ficar mais animada por aqui. Não percam os próximos episódios.

 

"O meu alfarrabista tem cenas mais maradas que o teu" ep. 1


Livro comprado hoje à tarde num alfarrabista na Alameda. Dois euros. 4 edição, de 1961. Não sei é quem é este autor.


terça-feira, 28 de setembro de 2010

Smith e as Sereias – episódio 17

Previamente, em Smith e as Sereias, Poseidon responde positivamente a todas as exigências de Smith, incluindo as obrigações impostas a Ariel sobre o casamento e o tentar encontrar Rose, a namorada perdida do moço louro. Smith aproveitou e resolveu obedecer ao pedido de Namor: abrir a boca e contar a toda a gente que Poseidon era homossexual.

Poseidon e Namor fizeram aquilo que os amantes fazem quando se amam e arranjam tempo livre, com os devidos ajustes ditados pelas limitações biológicas que algumas pessoas poderiam considerar como limitações a uma vida íntima normal e complementar. Para Namor o que não faltou foi intimidade: suado e feliz, ergueu-se da cama e caminhou até uma mesinha. Olhou lá para fora.

- Está a amanhecer – disse ele. O sol à superfície da água começava claramente a nascer, e o ângulo por ele formado sobre a superfície do oceano fazia com que impressionantes raios luminosos furassem como setas as profundezas das águas. Uma paisagem de corais sujos e mal tratados estendia-se à frente da janela do motel Meduzza. Poseidon levantou-se da cama, foi à casa de banho sem dizer nada e depois voltou.

- Ainda te sinto nervoso, meu amor – disse Namor. Foi abraçá-lo – O que se passa?

- O Smith. Fiz tudo o que me pediu, em troca do seu silêncio.

- E isso não é bom?

Poseidon olhou-o nos olhos.

- Tu é que me estavas a pedir sempre para parar de ser mentiroso. Para fazer o que tinha de ser feito.

- Sim, mas só quando chegasse a altura certa. Quando te sentisses preparado.

Poseidon não disse nada.

- Estás arrependido?

- Arrependido? – perguntou Poseidon – Não te sei dizer. Acho que não. Acho que ainda não é a altura, só isso.

Namor deu-lhe um sorriso compreensivo.

- Percebo. Amanhã encontramo-nos outra vez?

- Às seis, só às seis. Tenho uma reunião com o Smith sobre o trabalho dele.

- Sais tu primeiro ou eu?

- Posso ser eu. Até amanhã, meu amor.

- Até amanhã.

Poseidon atravessou o vazio corredor e desceu as escadas de incêndio. Chegou à recepção, e teve o cuidado de sair pela porta das traseiras, evitando o olhar atento de um funcionário carapau, altivo e severo. Assim que abriu a porta para a rua, uma explosão de luzes brancas cegou-o momentaneamente. Sentiu corpos e barbatanas e tentáculos a caírem-lhe em cima, e as suas orelhas inundadas por vozes desesperadas que gritavam:

- Sua majestade, é verdade que é homossexual?

- Sua majestade, de que forma pensa justificar-se aos habitantes dos mares?

- Sua majestade, como classifica a prestação do Príncipe Namor na cama?

- Sua majestade, em directo para o Canal Concha…

***

Recorte referente ao jornal Diário Anémona, dia 27 de Junho de um ano indistinto.

ESCANDALOSA BRONCA SEXUAL

Uma dica anónima ao nosso jornal revelou uma verdade chocante sobre o Rei dos Mares: Poseidon é HOMOSSEXUAL. Na tradição de jornalismo sério e objectivo a que sempre habituámos os nossos leitores, seguimos em segredo o nosso Rei através de cavalos-marinhos camuflados e colocámos repórteres cercando o Motel Meduzza, onde Poseidon se instalou na noite passada. Foi com surpresa e estupefacção que os nossos investigadores conseguiram captar as inacreditáveis informações que publicamos para vós.

Primeiro, Poseidon saiu do Motel pela porta das traseiras, tendo sido apanhado pelo conjunto de jornalistas educados que lhe dirigiu uma série de perguntas sérias e apenas com o intuito de obter as informações mais factuais. Poseidon não prestou declarações. Cinco minutos depois, o conhecido homossexual e herege herdeiro do trono atlante Namor de Raya Pérola Pacífica abandonou o mesmo motel a pé. Uma consulta clandestina aos registos dos quartos, bem como uma compensação monetária ao funcionário da noite do motel, feita na melhor tradição de seriedade do nosso jornalismo de investigação, revelou que um casal de nome Sr. e Sra. Reais haveria alegadamente passado a noite no quarto 346. No entanto, nenhum casal foi encontrado no motel com este nome.

Sem querer fazer juízos de valor infundados ou injuriar levianamente nenhuma personalidade da nossa Corte, podemos revelar em primeira mão e em exclusivo que Poseidon e Namor estão a ter uma avassaladora relação homossexual.

Em conversa com Profeta Salmão, o pároco da Igreja da Nossa Pescada dos Mares localizada dentro do Palácio real, obtivemos mais informações sobre o caso. “Eu já sabia de tudo, a pescada revelou-mo num sonho”, declarou ao nosso jornal o Profeta, “aliás, tenho tudo aqui escrito num bloco de notas para verem que é verdade. A única razão porque eu achei pouco importante avisar a população dos mares é simples: a Pescada disse-me claramente que neste dia 27 toda a história viria a público. Também tenho isso aqui no bloco de notas, querem ver? Cá está. A minha clarividência e a minha ligação inegável à Pescada tinham-me alertado para esta situação”. O pároco acrescenta ainda que considera exageradas as críticas a Poseidon feitas por muitos comentadores religiosos, uma vez que tem “a certeza quase absoluta” que a Pescada encontrará uma boa forma de castigar o Rei Homossexual. “Quando esse castigo acontecer logo vos direi quando me foi revelado previamente”, garantiu.

O Gabinete de Poseidon, no Palácio Real, não quis prestar declarações. Este silêncio está a levantar suspeitas nas camadas mais inteligentes da nossa sociedade de que toda a Corte é, na verdade, uma constante orgia homossexual que trará a destruição aos nossos Reinos do Atlântico.

No desporto, a Confederativa Conchita derrotou o Percebes Sport Clube por 23-15, na maior derrota da história da equipa chefiada pelo técnico (…)

***

- Por aqui, doutora – disse Sebastião, conduzindo a Dra. Enidra pelo corredor do palácio. A Dra. era uma lontra castanha e pequena, de elegantes bigodes e um par de óculos em cima do nariz. Trazia uma pasta.

- Sabe que isto é extremamente irregular – disse ela numa voz profissional - As consultas são sempre no meu consultório para evitar que o paciente se sinta intimidado ou limitado pela presença daquilo que lhe é familiar – comentou.

- É uma emergência, doutora – disse Sebastião. A sua habitual compostura de mordomo inglês estava abalada. Parecia nervoso, e as suas tenazes faziam barulho enquanto tremelicavam.

Os dois viraram uma esquina e a Dra. Enidra viu um número indescritível de sereias à volta de uma porta enorme, decorada com conchas douradas e prateadas. Uma sereia ruiva aproximou-se dela.

- É a psicóloga? – a sereia estendeu-lhe a mão - Ariel, filha do Rei. Por favor, tem de ajudar o meu pai.

- O que aconteceu?

- Ele fechou-se na sala do trono há dois dias. Não comunica com o exterior, recusa qualquer refeição e disse que só fala consigo e mais ninguém.

- Abram alas para a Dra., por favor – anunciou Sebastião. As sereias iam afastando-se, e olhavam para a lontra com curiosidade. Um humano numa cadeira de rodas e embrulhado num roupão falava com uma sereia loura de olhos azuis, que parecia estar a chorar. A Dra. aproximou-se da porta e enrolou a sua pata num punho peludo. Bateu três vezes.

- Poseidon? É a Dra. Enidra. Posso entrar?

Silêncio. As sereias calaram-se todas.

- Poseidon? – insistiu a lontra.

Mais silêncio.

O trinco dobrou-se num som metálico e a porta entreabriu-se.

A Dra. Enidra entrou e a porta fechou-se outra vez.

Todas as Terças e Quintas há novos episódios de Smith e as Sereias.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Um ano


O Trajectória Aleatória faz hoje um ano. Eu sei que esta é a forma mais foleira de o celebrar, mas são onze e meia da noite e eu estou a implorar pela minha almofada.

(Discurso, discurso, discurso!)

Pronto, pronto.

Gostaria de agradecer às 3 pessoas que lêem com regularidade o meu blog, e relembrar a todas as outras que este espaço existe. Gostaria de agradecer todos os comentários entusiastas ou nem tanto (também os houve) que ajudaram a animar isto tudo. Gostaria de agradecer a todos os que publicitaram o blog, e, claro, a quem o descobriu por acaso e cá vem espreitar às vezes. E gostaria de agradecer, claro, ao rapazinho chinês.

E às religiões. Sem elas não haveria metade dos posts do último ano.

Um brinde ao Trajectória Aleatória.

(tchin tchin)

Feito. Agora, para a cama.

Assinado,
O Autor
.


domingo, 26 de setembro de 2010

Educação sexual em casa?

Para quê ter um apoio na escola que transmite aos adolescentes os conhecimentos e a educação sobre a sexualidade que muitos deles nunca terão em casa? Isto porque toda a gente sabe que se há gente com quem os adolescentes se sentem à vontade para falar sobre sexo é com os paizinhos. Alguns desses paizinhos juntaram-se numa plataforma que é contra a educação sexual nas escolas, porque a ideia de ter um profissional treinado a avisar os filhos da melhor forma de evitar as DST é um pesadelo compreensível para muitas famílias.

A principal objecção é simples: “há coisas que são para ser tratadas pela família”. Muitos pais pensam que são eles quem deve ter a responsabilidade de falar com os filhos sobre sexo, e aí concordo com eles. Não acho que a educação sexual deva ser obrigatória nas escolas, simplesmente porque muitos pais preferem, movidos por motivações religiosas, excesso de zelo ou simples mania das grandezas, serem eles a transmitir os conhecimentos que acham importantes às crianças. Um desses pais surgiu hoje numa reportagem na TVI. Dizia, “a primeira coisa que disse ao meu filho foi, assim que tiveres alguma dúvida vem é ter comigo”.

E aqui entra o problema. Para muitos pais, a noção de educação sexual é isto. “Se quiseres fazer-me alguma pergunta vem ter comigo”. Perceba-se que não é “Se quiseres fazer alguma pergunta sobre o funcionamento dos teus genitais, ou sobre os efeitos negativos de andares a fazer sexo oral ao teu namorado, vem ter comigo”. Os pais que normalmente se escondem atrás desta estratégia, enfiando nos ombros dos filhos a responsabilidade pela sua própria educação sexual, não falam abertamente com eles sobre nada. Uma criança com dúvidas e incertezas mais depressa vai ter com amigos ou conhecidos, malta da sua idade com quem tem confiança, ajudando a propagar boatos e informações erradas.

A forma como a educação sexual é dada apresenta outro desafio. Aqueles “Kits” que o Governo tem estado a levar às escolas não me parecem bem o equivalente a “profissionais treinados”. Gostaria de ver esta disciplina (ou como lhe queiram chamar) ser administrada por profissionais cuja sua área seja realmente a da educação sexual, para assim garantir que a educação é mêmo educação.

Se os pais querem impedir que os seus filhos tenham educação sexual, força. Viva a não-obrigatoriedade da ES nas escolas. Mas lembremo-nos de que numa sociedade moderna como a nossa é tempo de dar iguais oportunidades a todos. Ou seja, o rapaz que nasce na família de pais informados e responsáveis, e que falam com ele sobre tudo abertamente, terá com certeza uma vantagem sobre o rapaz que nasce numa barraca, em que os pais mal têm tempo de se preocupar a vida escolar da criança; por alguma razão um grande número de gravidezes em adolescentes ou em DST pertence às classes sociais mais baixas. A educação sexual vem preencher uma lacuna inadmissível nos dias de hoje, em que quer queiramos quer não os adolescentes começam a fazer sexo cada vez mais cedo. Tentar impedir que haja Educação Sexual nas escolas não é defender os valores da família ou o bem das crianças. É uma irresponsabilidade.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Eu sou um bom menino

O dia só tem 24 horas, e como sou um bom menino e aprendi muito com a Ministra e o seu vídeo tenho dedicado as minhas últimas duas semanas aos trabalhos escolares, às obrigações, a dormir bem e a uma alimentação mais cuidada. E como só tenho duas tardes livres, dedicadas às coisas que não posso fazer nos outros dias, fica pouco tempo para escrever aqui no blog, ou aliás escrever de todo.

Prometo por minha honra que vou obedecer ao calendário do Smith e as Serias, e tentar a todo o custo deixar por aqui mais qualquer coisinha.

Até outro dia,

O Autor (com sono e com trabalhos para fazer)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 16

Previamente, em Smith e as Sereias, violámos a privacidade dos diários íntimos de Ariel para conhecer em mais pormenor a recentemente revelada relação que ela e Namor, o agora amante de Poseidon, tinham mantido há uns anos como marido e esposa (temporários). Uma confusão mal explicada separou-os logo de seguida, e Namor fugir para nunca mais ser visto.


- Uau – disse Smith, olhando para os enormes adesivos e mastigando um pedaço de pão-molhado com doce de amêijoa mexicana – então isso faz de ti uma sereia divorciada.

- Exacto – comentou Ariel, barrando-lhe mais um pedaço de doce em cima do pão-molhado.

- Não fazia a mais pequena ideia.

- Quê?

- Que tinhas estado casada, ainda por cima com o Namor. Quer dizer – Smith soltou um sorriso sarcástico – Logo com ele, ainda por cima.

- Porque dizes isso?

- Por nada – Smith corrigiu a expressão – Ui, que dor. Dói-me a cicatriz.

- O que queria o Namor, afinal? - Ariel não tirou os olhos da faca com que barrava o doce mas a sua curiosidade era palpável.

- Nada, vinha visitar-me.

- Ele não te conhecia.

- Pois não, mas soube que eu estava doente e veio apresentar-se.

- Ele nunca tinha vindo aqui ao Palácio desde que estivera casado comigo.

- Ora, pergunta-lhe a ele, então. Eu cá não sei…

- Tem alguma coisa que ver com o que ouviste o meu pai dizer no confessionário?

- Absolutamente nada.

- O que ouviste exactamente, Smith? – Ariel olhou-o firmemente nos olhos e parou de barrar o doce.

- Nada de especial, o teu pai estava a dizer que tinha bebido a mais uma noite e que por uma vez se tinha esquecido de pagar a conta do gás.

- A sério.

- A sério, não sei! – Smith sorriu.

***

Porra, e agora que faço?, pensei eu. Ela fez-me a pergunta directamente, olhos nos olhos, para eu ver logo que era coisa séria. Respondo o quê? “Sabes, Ariel, é que o teu ex-marido que me veio visitar é o amante secreto do teu pai”. Isso ia destruí-la. E a mim também, lá se ia a chantagem.

- Não acredito que o meu pai fosse matar-te por qualquer coisinha assim. Não me vais mesmo dizer?

- Eu já disse, não foi nada. Ele provavelmente pensou que não ter pago a conta do gás era uma grande humilhação, só isso.

Encolhi os ombros.

***

Ele encolheu os ombros, e eu continuei a barrar o doce no pedaço de pão-molhado. Eu sabia que ele sabia alguma coisa, e ele sabia que eu sabia disso. Mentir-me assim não era o seu carácter charlatão a falar mais alto, era simplesmente a sua forma de me esconder uma verdade por uma razão qualquer.

- Pronto – comentei, com alguma tristeza – Vou buscar-te mais adesivos, esses têm de ser mudados.

- Ariel, não quero que fiques triste comigo…

- Porque haveria de ficar?

- Por eu não te dizer o que o teu pai… Ups.

- Espalhaste-te – disse-lhe eu.

***

Espalhei-me. Empalideci.

- Estou a ficar confuso, deve ser dos medicamentos.

Ariel olhou para mim e vi duas lágrimas a formar-se nos seus olhos.

- Se não me queres dizer é contigo. Só estava a tentar ajudar-te, caramba. Afeiçoei-me a ti, e depois? Não podes mostrar-te grato e partilhar algo comigo? Dormimos na mesma cama há uma semana, partilhamos os mesmos lençóis, eu trato-te da ferida, trago-te comida. Não podias fazer um esforço, bolas?

Caramba, aquilo tocou-me. Fiquei embasbacado a olhar para ela.

***

Ele ficou embasbacado a olhar para mim. O parvo tinha acreditado na minha vitimização toda. Aquelas aulas de representação tinham valido de alguma coisa. Disney, aqui vou eu.

Foi aí que ele disse:

- Ok, eu conto-te, mas tens de me prometer que…

E bateram à porta, era o meu pai. Olhou para mim, depois para o Smith, depois para mim outra vez.

- Ariel, podes chegar aqui?

Saí para o corredor com o meu pai. Dobrei os braços. Fiz postura de menina rebelde.

- O que queres?

- Primeiro gostaria de te pedir desculpas pessoalmente por ter quase assassinado o teu futuro noivo.

- Ora essa, são coisas que acontecem.

- E segundo – ele ignorou-me o sarcasmo como era seu hábito – Gostaria de te comunicar que estás dispensada de qualquer obrigação perante o Smith.

- Eu estou a tratar dele voluntariamente, obrigado.

- Não é isso. Estás dispensada de tudo. Do casamento, desta vida de casal imposta. Estás livre.

Aquilo foi para mim o equivalente emocional a um murro no nariz.

- Tens a certeza?

- Sim, de certeza. Claro que tenho a certeza. Eu sei o que faço, não achas? – o meu pai passou a mão pela cara. Estava cada vez mais parecido com um doente nervoso – Vou visitar o Smith. A sós. Até já.

Entrou no quarto, e eu fiquei no corredor parada, a pensar que não tinha bem a certeza o que significava estar “livre” na minha própria casa.

***

- E em relação ao teu trabalho, já preparei alguns contactos com o mundo exterior. Aqui está tudo – terminou Poseidon, colocando uma espécie de contracto em cima da minha mesa-de-cabeceira. Fez uma pausa, abriu as mãos – Pronto. Está tudo. As tuas exigências foram respondidas.

Estava estupefacto. O velhote tinha mesmo feito o trabalho de casa. Agora olhava para mim à espera de uma resposta.

- Obrigado – disse eu estupidamente. Não era bem aquilo que um chantagista sem escrúpulos deveria dizer, mas pronto – Foi rápido.

- Foi uma decisão fácil. Eu prezo muito o teu silêncio. Prezo muito a minha honra nestes mares. Se é que me percebes.

- A minha boca está selada.

- Promete-me que não contarás nada a ninguém.

- Prometo. Tem a minha palavra.

- Muito bem – Poseidon ficou a olhar para o tapete durante uns momentos. Estava-lhe a custar fazer aquilo. Depois levantou-se e saiu sem dizer nada. Ariel entrou alguns segundos a seguir.

- O que foi isto?

- Oh, nada de especial.

- Queres que te traga mais doce de amêijoas?

- Sim. Já agora, não te cheguei a contar. Sabes, Ariel, é que o teu ex-marido que me veio visitar é o amante secreto do teu pai.


Todas as Terças e Quintas, mais episódios. Já sabem: ir ao menu inicial do blog e procurar a etiqueta "smith e as sereias" leva-vos direitinhos a uma lista completa de toda a série.

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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 15

Previamente, em Smith e as Sereias, Smith faz chantagem com Poseidon: ou ele lhe responde a uma série de exigências, ou Smith conta a toda a gente que o másculo Rei dos Mares gosta de homens. Ariel é a enfermeira de serviço, deliciada pela fragilidade repentina de Smith que ainda recupera da tridentada que levou há alguns episódios. Lilith mostra-se preocupada e doentia, e quer visitar Smith; mas quem o visita mesmo é Namor, que lhe pede para este contar a toda a gente que Poseidon é gay porque só assim o Rei terá coragem de o admitir. Nas últimas linhas do último episódio, uma Ariel de tabuleiro na mão entra no quarto, vê Namor e Namor vê Ariel. Smith é informado que o agora amante homossexual de Poseidon é o ex-marido de Ariel. Confusos? Os esclarecimentos seguem-se a seguir (seguem-se a seguir…?):


Querido Diário,

Fartei-me de gritar com o meu Pai esta noite. Finalmente arranjei coragem para lhe dizer tudo o que tinha entalado na garganta há semanas. Mandei-o para locais ordinários e sujos. Disse-lhe que se fosse preciso fugiria, que nunca me casaria com aquele musculado seboso, e que nunca iria ser a boneca atlante que ele queria que eu fosse. Ele ficou vermelho como um coral-australiano e chamou-me de Ariéliga. Ele sabe que chamar-me pelo meu nome completo irrita-me mais do que tudo, por isso chamei-o de amêijoa podre e vim-me embora.

Estou tão triste, Querido Diário… Antes de vir escrever deixei-me chorar em cima da almofada. O pobre Sebastião veio perguntar-me se queria alguma coisa para me acalmar e eu tratei-o tão mal…

Mas tens de me compreender, Diário. O meu pai quer obrigar-me a casar com o Príncipe Namor de Raya Pérola Sotto-Maré, o não sei quantégimo herdeiro do trono do Império da Atlântida. Escrever o nome dele dá-me logo nervos. Nunca nos conhecemos, só lhe vi fotografias e pinturas, e uma vez o Sebastião apontou para ele num dos casamentos aborrecidos de uma das Oráculos atlantes. Lá estava ele, do outro lado da igreja, musculado e quase nu, com uma coroa na cabeça e com aquele ar de menino querido do reino. Como posso casar com alguém que passa os dias no ginásio e que tem a pele empestada de gordura de raia importada?

E porque o meu pai é um COBARDE que não sabe fazer negócios e legislações, querem casar-nos aos dois para garantir as “boas relações comerciais e estratégicas entre os dois reinos”. Isto disse-me o meu pai com toda a lata! Acreditas nisto? O meu pai fala do meu casamento como um ministro a falar de política externa.

E além disso querem que façamos um filho, de preferência rapaz, que será uma espécie de cupão de garantia. Assim os dois reinos ficam coladinhos e eu tenho de viver com um marido seboso e um filho seboso para o resto da vida. E a minha vida? E a minha carreira no cinema?

Estou destroçada, Querido Diário. Vou chorar mais.

***

Querido Diário,

Ao menos o meu vestido é lindo. Tem decorações à base de algas lilases, a minha cor favorita. As algas finas que há nas praias do Pacífico escorrem como uma cascata pela cauda abaixo, e o corpete é feito com conchas redondinhas e pequenas, trabalhadas a ouro.

Claro que o rasguei na primeira oportunidade. Chamei nomes à costureira real, apesar de a coitada não ter culpa. Resultou: o meu pai chegou à sala de provas e pregou-me um estalo. Chamou-me Ariéliga outra vez, e disse-me para crescer. Perguntei-lhe porque corais é que não podia escolher outra sereia qualquer para casar, afinal tinha tantas filhas todas boas para quê? A Lilith, por exemplo. Toda a gente sabe que ela é uma porca oferecida. Usa mais a boca do que um peixe de aquário para respirar, mas no caso dela não é para respirar, é para outra coisa. Bem, tu percebes-me, Diário.

Fizeram-me outro vestido logo, e esse não rasguei. Vou impedir este casamento de alguma forma. Eu juro.

***

Querido Diário,

Ao menos o casamento foi bonito. Todas as minhas irmãs estavam lá, umas mais invejosas do que outras. Havia peixes e moluscos e atlantes que tinha de cumprimentar, este é o embaixador não sei das quantas, este é o diplomada-mor de aqui e ali. O meu noivo dançou comigo uma valsa, disse que eu estava muito bonita e a seguir desapareceu atrás de um empregado do catering porque “os canapés tinham acabado”.

Para me vingar fartei-me de comer da fonte gigante de chocolate de leite e avelã. Afogava bocados de esponja doce das Maldivas no chocolate e enfiava-as logo na boca para ninguém me ver. Se continuar assim e não nadar muito posso, em dois ou três anos, atingir a obesidade e lixar os planos de casalinho perfeito que o meu pai e o meu estúpido sogro têm para mim.

***

Querido Diário,

São quatro da manhã da minha noite de núpcias, e se achas que um tipo musculado e forte podia ao menos ser um bom amante tira o cavalo-marinho da chuva. Até agora só limpei ranho e baba das almofadas, e ouvi o Namor queixar-se e chorar por ser uma pessoa infeliz.

Ele é gay, Diário. O príncipe machão atlante é homossexual, gosta de homens e em particular de um homem qualquer importante que eu não percebi quem era. Assim que chegámos ao quarto comecei a tirar o vestido, porque o meu pai me tinha obrigado a, assim que pudesse, começar logo a tentar ser fecundada. Assim que me despi e lhe mostrei a barbatana e disse Vamos lá a isso então, ele começou a chorar. Disse-me que eu estava muito bonita, e que era uma pessoa amorosa e que não merecia que me mentissem. Depois largou a bomba. Eu estava um bocado bêbeda, porque da fonte de chocolate passei para a fonte de licor. Fiquei um bocado tonta. Ele agarrou-se a mim e disse-me que pronto, gostava de homens.

Ainda estou um bocado apanhada. Aliás, acho que a mistura de licor com chocolate está a rebentar-me com os intestinos. O Namor adormeceu ao meu lado na cama onde deveríamos estar neste momento a fazer um herdeiro. Ele até é querido. Gosto quando os homens choram e saem do estereótipo masculino. Ele contou-me basicamente a sua vida toda, e avisou-me que se alguém descobrisse a verdade sobre ele estava tramado. Que era expulso da Atlântida como todos os hereges e homossexuais que desafiavam a Palavra da Pescada.

Eu disse-lhe para não se preocupar, que podíamos fingir que éramos um casal normal. Ele só tinha de fingir ser um marido sério e tradicional, o que agradaria com certeza aos nossos pais. Mas engravidar é que não. Ele olhou para mim com uns olhos gordos.

- Não queres ter um filho?

Eu disse que não, que queria era uma carreira no cinema. Depois começámos a falar dos filmes do Tom Cruise e daquele muído louro que toda a gente acha bonito, o Leonardo qualquer coisa. Depois ele adormeceu em cima de mim e pronto. Cá estou. Bêbeda, com um marido homossexual, e com o possível conteúdo do meu útero a ser usado como troca comercial entre dois impérios. E depois admiram-se que as sereias saiam à superfície para fornicar com os marinheiros.

Vou adormecer. Adormeci.

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Querido Diário,

O Namor é um actor fantástico. Hoje mandou-me calar em público e comentou, a meio de uma conversa, que a “anémona da sua mulher” era uma maravilhosa amante. Os diplomatas amigos do meu pai disseram todos que sim com as gordas cabeças de peixe e olharam para a minha barbatana de alto abaixo. Toda a gente acha que ele é o marido e Príncipe mais macho e convencido de toda a existência.

Mas há que recordar uma coisa: é tudo teatro. À noite eu e o Namor ficamos a conversar que nem doidos, a comer gelado do pacote e a gozar com todas as figuras de estado que temos de conhecer à conta do casamento. Até jogamos ao Uno. Ele é o máximo!

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Querido Diário,

Acho que estou apaixonada pelo Namor. Ajuda-me!!!!

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Querido Diário,

Hoje estávamos a ver um episódio dos Morangos com Açúcar e descobri que o Namor gosta das Just Girls. Já não estou apaixonada por ele.

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Querido Diário,

Desculpa não ter escrito há mais tempo. Nem imaginas o que tem acontecido!

Há dois dias atrás foram dar com o Namor a chorar numa despensa, perto da sala do trono. Havia imensa gente à volta dele. O meu pai estava furioso, a dizer-lhe que ele era um desavergonhado. Ao que parece o meu pai deu com ele e um dos criados do palácio, um atlante de 23 anos, enrolados a fazer coisas que fariam corar até a Lilith. O rapaz que supostamente estava a fazer porcalhisses com o Namor também estava a chorar. O Namor estava reduzido a baba e ranho, a gritar como uma menina. Dizem que ele só gritava que o meu pai era um mentiroso desonesto, que um dia se ia arrepender por o estar a tratar assim, que era tudo uma mentira…

Quando lá cheguei o meu pai estava vermelho e a tremer, e só tinha vontade de expulsar o coitado do Namor do Palácio. O Namor agarrou-se ao tridente e começou a gritar:

- Sê corajoso, Poseidon! Diz-lhes de uma vez por todas a verdade! Como podes viver assim?!

O meu pai empurrou-o e foi-se embora. Agora acho que vão enviar o Namor para um instituto qualquer da Pescada, onde se transformam os gays em pessoas normais. Eles dizem que resulta.

Parece que o meu casamento acabou, Diário. É pena, estava a habituar-me a ser esposa de alguém.

Diário, sabias que eles querem adaptar a “Pequena Sereia” ao cinema? Conto-te tudo no próximo dia!


Todas as Terças e Sextas há mais episódios. Como sempre, a etiqueta "smith e as sereias" no início do blog ou no final de cada episódio conduz-vos logo à listagem completa de episódios.

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domingo, 19 de setembro de 2010

Teste

Este post é só para testar uma coisa que acabei de adquirir chamada Windows Live Writer, que se funcionar como é apregoado fará maravilhas pela qualidade e rapidez das publicações aqui no blog. Entre outras coisas, acabou-se o caos constante de tamanhos e tipos de letras, bem como a bipolaridade descontrolada do Blogger.

Vamos a isto:

 

Lá lá lá lá lá

 

Lá lá lá lá lá

 

Lá lá lá lá lá

 

Lá lá lá lá lá

 

Eu gostava de poder publicar coisas com tamanhos de letra exagerados, pá.

 

Ok, vamos ver como fica. Vou clicar em “Publicar”.

 

 

 

Resultou!

A carcaça de Cristo

Uma das coisas que mais me desperta interesse no cristianismo é a sua intrínseca crueldade e imoralidade. A imagem romantizada de um senhor de barbas atado a uma cruz está tão sobreposta à nossa cultura que aquela história, a de um sacrifício humano para salvar a humanidade, é vista como algo normalíssimo, parte do que nos faz bons e agradecidos pela nossa vida. É alvo de elogios, de gloriosos cânticos, e de agradecimentos da parte dos fiéis, que acreditam com sinceridade que aquele sacrifício foi a melhor coisa que aconteceu no mundo. Ouvir uma Missa (como a do Papa, que estou a ver neste momento) ou, como experimentei ainda ontem à noite, uma rádio cristã, é ser bombardeado por mensagens como “o corpo de Cristo”, “a salvação na Cruz”, “o sacrifício de Deus”, mas acho que muitos cristãos não percebem bem o que isto significa.

Primeiro que tudo está a grotesca ideia de que um homem, através de horas de sacrifícios físicos, pode de alguma forma “salvar-nos” da responsabilidade dos nossos pecados. Através do sacrifício do seu corpo físico, Deus (que é Jesus ao mesmo tempo) salvou a humanidade de algo terrível: as consequências dos seus pecados e das suas más acções. Todos vemos a imoralidade por detrás de tamanho sistema: passa pela cabeça de alguém a possibilidade de ver as suas más acções perdoadas através do sacrifício humano? Não haverá algo de absolutamente sádico nesta possibilidade? Será até algo merecedor de elogios? E, principalmente, porque é o símbolo do “Deus vivo” e do “Deus que nos ama” um homem inocente pregado a uma cruz, cuja morte e tortura resolverão os problemas da humanidade?

E não esquecer ainda de que é que Jesus nos está a salvar. Curiosamente, Deus (e Jesus) está a salvar-nos, a nós humanos, de pecados que ele próprio definiu como pecados. Foi Deus quem criou sequer essa noção de “pecado” e de ofensa às regras divinas. Ele fez as regras dos jogos, e ironicamente estas regras chocam de frente com a natureza humana com que também ele, Deus, nos apetrechou. Se a sexualidade é vista com tamanho pudor pelas leis divinas, porquê o óbvio impulso sexual nascido com cada humano? Porquê criticar a noção de avareza, e depois colocar nos seres humanos uma necessidade patológica de ser avarento? Porquê criar como regra “não matarás” e depois criar os seres humanos como os únicos animais que matam por crueldade, ou até por prazer? E isto sem esquecer o facto mais estranho, e que de certa forma transforma o que seria uma incoerência de um Deus estagiário na crueldade de um Deus ciente das suas acções. Deus é omnipotente e omnisciente. Ele pode tudo, sabe tudo; e de todos os universos possíveis, de entre todas as humanidades possíveis, ele escolheu esta, a nossa. Com todos os seus defeitos de fabrico, com todas as suas taras, as suas vontades biológicas e os seus sentimentos mais profundamente negativos. Deus escolheu-nos, com estas características; e de seguida criou um sistema praticamente impossível de seguir, em que a natureza humana é negada da forma mais bruta possível.

É disto que Jesus nos salva: da destruição da alma que, por sua vez, é o castigo criado por Deus para um crime que Deus definiu, cometido pela humanidade com as características que Deus criou. Alguém consegue ver o padrão aqui presente?

E por favor não me respondam “Mas e Adão e Eva? Eles é que lixaram o sistema todo, porque antes deles a humanidade era perfeita e sem pecado”. Não me respondam isso, porque em vez de criarem um buraquinho onde enfiar as dúvidas estão a cavar a própria cova intelectual. Adão e Eva viviam num local lindíssimo, em inocência, sem pecado: e porque Eva, uma mulher apenas, fez uma má escolha (que nunca poderia ser evitada. Ao contrário do que se pensa, a árvore da qual faz parte o famoso fruto é a árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e não a árvore da Vida. Eva não poderia saber a diferença entre obedecer ou não a Deus). E por essa má escolha, paga toda a humanidade. Isso é justo? Isso é bondoso? Não teria sido mais inteligente da parte de um Deus bom e carinhoso com a sua criação ter chutado a cobra do Éden, ao invés de a deixar rastejar até Eva e com as suas ladainhas ter tramado o resto da humanidade?

Voltemos a Jesus; é suposto ver este sacrifício como um acto de bondade. Afinal, não interessa se foi Deus que fez as regras. Ele está a salvar-nos e isso é bom. Mas seria necessário um sacrifício de sangue, grotesco e sádico? Seria necessária a morte de um inocente? Não poderia Deus perdoar toda a humanidade de outra forma, surgir a cada pessoa no mundo e assim inspirar-nos a ser boas pessoas e a viver em comunhão uns com os outros? (sim, porque segundo dizem essa é a principal mensagem). Não. Deus escolheu (caramba, não me digam que não tinha outra escolha, ele é Deus) que tudo assim funcionasse. Os pecados, a natureza humana, o sacrifício exagerado de um homem inocente. E para quê?

Que sacrifício é este, afinal? O que é, para um Deus todo-poderoso, o sacrifício de um corpo físico? O que significa para formigas como nós o perdão de um Deus que nos colocou numa situação pecaminosa e na necessidade de sermos perdoados em primeiro lugar?

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Continuamos à procura do cérebro de Isabel Alçada

Numa mensagem inspirada, amadora, e com sérios, sérios, sérios problemas de produção, Isabel Alçada humilha-se voluntariamente ao mesmo tempo que acha que está a fazer passar alguma mensagem positiva. A única mensagem positiva é que Isabel Alçada é positivamente imbecil.



A Ministra fala num tom condescendente, como aquelas velhinhas que conversam com os bebés numa voz estridente, e aponta a sua mensagem aos alunos mais do que aos professores ou aos pais. No que se fosse feito de forma profissional e cuidada seria até uma boa ideia, Isabel Alçada espalha-se e sai-se com banalidades. A sua mensagem inclui conselhos como “dormir bem” e “tomar sempre o pequeno-almoço”. Sublinha a importância de “obter resultados com o esforço de trabalhar e aprender”; que é exactamente aquela conversa de professora na pré-reforma, desactualizada, que acha que com tamanha tralha moralista faz com que os alunos mais rebeldes e irresponsáveis percebam o poder mágico e curativo da aprendizagem.

Mas Isabel Alçada não trata os alunos só por crianças idiotas, com expressões como “eu já falei com muitos meninos sobre isto”. A Ministra relembra regras importantes e pouco lembradas, que com certeza farão os alunos portugueses reflectir antes de adormecer de noite. “Temos que cumprir as regras da nossa escola. Temos de ser disciplinados, estar na aula bem”, e ainda que a obtenção de resultados positivos na escola é dar “felicidade à família”.

Isabel Alçada continua explicando que o dia tem 24 horas, e que além de “dormir bem” devemos aplicar muitas horas ao estudo e só depois, nos tempos livres, “desfrutar do cinema” ou “conversar com os amigos”. Mas sem confusões: numa frase lapidar, a Ministra avisa: “O tempo que é para estudar é memo só pa estudar”, porque, explica, “quando fazemos duas coisas ao mesmo tempo não conseguimos fazer nenhuma bem”.

O vídeo é um bom exemplo disto. Isabel Alçada tentou formular um discurso coerente e olhar para uma câmara ao mesmo tempo, e deu-se mal; aliás, nenhuma das duas coisas foi bem feita. O vídeo está uma desgraça, o discurso também. Mas os alunos portugueses com certeza adormecerão a partir de agora mais aconchegados, sabendo que há uma avozinha no Ministério que zela pelos “meninos” e que está na posição de topo da Educação Portuguesa para lhes poder dizer, com um vídeo na Internet, que devem estudar e ter boas notas. E não se esqueçam: “Nós precisamos absolutamente de nos orgulharmos dos nossos alunos”.

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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Mas ele é apenas um velhinho simpático…!

NOTA: O tipo de letra, os itálicos e as cores estão todas erradas neste post. O Blogger desenvolveu outra vez uma personalidade. Hoje é "maníaco depressivo que estraga a vida às outras pessoas", e por mais alterações que faça ele não me deixa mudar sequer as cores das citações. As minhas desculpas.


Sim, lá velhinho ele é. E pode ter cara de cordeiro. Mas o Papa continua a ser, a meu ver, um dos mais bem vestidos e publicitados monstros mentirosos na actualidade. Não bastava a clássica história dos preservativos em África, que por si só deve ter assassinado mais gente do que muitos dos mais activos serial-killers na história. Não bastava as histórias mal contadas e as semi-investigações à volta da protecção dos padres pedófilos. Não bastava a constante mentalidade retrógada, que publicitava junto dos seus fiéis o quanto o casamento homossexual ou outras formas de liberdade individual são coisas a evitar.

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Aproveitando a sua viagem a Londres, o Papa veio avisar para os perigos do “secularismo agressivo”, porque todos sabemos que coisas horrendas acontecem quando os países começam a separar a religião do Estado. Na boa tradição católica, o Papa dá um exemplo (assim os fiéis não têm de investigar por si só ou sequer pensar): os nazis! Sim, esses… espera, vou citar:

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"(...) a tirania nazista, que desejava eliminar Deus da sociedade e negava nossa humanidade comum a muitos, especialmente aos judeus, a quem não consideravam dignos de viver. (…) Ao refletir sobre as lições sombrias do extremismo ateu do século XX, jamais esqueçamos como a exclusão de Deus, da religião e da virtude da vida pública conduz, em última análise, a uma visão parcial do homem e da sociedade e, portanto, a uma visão "restritiva da pessoa e seu destino"

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O drama, o horror, e a tragédia. Nada como referir os Nazis para levantar as emoções da assistência. Curioso também que esta mensagem venha do representante da Igreja Católica, que na altura em que Hitler andava a planear limpar o sebo aos judeus e outras minorias fazia acordos com o governo alemão para, entre outras coisas, manter o ensino da religião católica nas escolas, ou… Espera, vou citar o acordo em si:

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His Holiness Pope Pius XI and the President of the German Reich, moved by a common desire to consolidate and promote the friendly relations existing between the Holy See and the German Reich, wish to permanently regulate the relations between the Catholic Church and the state for the whole territory of the German Reich in a way acceptable to both parties.

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Bem, aparentemente os danados dos ateus não pareciam ser grande problema para a Igreja naquela altura. Mas querem mais contradições? O Papa diz no seu discurso que,

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(…), jamais esqueçamos como a exclusão de Deus, da religião e da virtude da vida pública conduz, em última análise, a uma visão parcial do homem e da sociedade e, portanto, a uma visão "restritiva da pessoa e seu destino"

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O que é curioso, visto que o primeiro artigo do acordo em questão deixa bem claro, cito, que

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The German Reich guarantees freedom of profession and public practice of the Catholic religion.

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E outra, para mostrar como, já na altura, as relações entre a moralidade católica e os ateus demolidores de valores eram cheias de atritos;

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Article 3

In order to foster good relations between the Holy See and the German Reich, an apostolic nuncio will reside in the capital of the German Reich and an ambassador of the German Reich at the Holy See.


Article 5

In the exercise of their clerical activities the clergy enjoy the protection of the state in the same way as state officials


Article 8

The official income of the clergy is immune from distraint [7] to the same extent as is the official salary of the Reich and state officials.

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Especialmente ilustrativo é o juramento que qualquer bispo alemão tinha de fazer ao tomar posse de uma diocese:

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Article 16

(…) "Before God and on the Holy Gospels I swear and promise, as becomes a bishop, loyalty to the German Reich and to the State (Land) of . . . I swear and promise to honour the legally constituted government and to cause the clergy of my diocese to honour it. With dutiful concern for the welfare and the interests of the German state, in the performance of the ecclesiastical office entrusted to me, I will endeavour to prevent everything injurious which might threaten it."

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É curioso que o Papa venha agora dizer que a culpa (como sempre), é dos ateus e de “formas agressivas de secularismo”. Isto, claro, no contexto da já enjoativa conversa dos “valores tradicionais”. Reparem que o Papa não fala de nenhuma consequência prática dessas terríveis formas de secularismo. Pelos vistos não há guerras, nem desgraças, nem mortes, nem ataques aos direitos humanos; apenas um ataque aos “valores tradicionais”; que, por coincidência, são definidos pela Igreja. Ou seja, o Papa apenas resmunga (não pela primeira vez, e muito menos pela última) o quanto as formas modernas de secularismo (presentes em países sub-desenvolvidos e perigosos como a Suécia) estão a destruir os valores medievais e retardados da sua Igreja e da sua visão atrasada da vida.

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Suponho que só nos resta colocar o Papa no mesmo lugar que aquele pastor que queria queimar o Alcorão, ou aquelas pessoas que falam sozinhas no metro. Todos têm uma coisa em comum: vivem num mundo só deles, alheios ao desenvolvimento e à evolução humana, lançando de vez em quando a cartada da “incompreensão” e da vitimização; como se a Igreja Católica, a maior religião mundial, fosse uma minoria em perigo.


Links:

http://www.concordatwatch.eu/showkb.php?org_id=858&kb_header_id=752&kb_id=1211

http://noticias.cancaonova.com/noticia.php?id=277857


A minha pila é maior que a tua

Início de aulas e de mais uma temporada de trabalho é também aquela altura em que tentamos arranjar lugar nos transportes públicos a custo e sacrifício, porque estes vão cheios de um grupo característico de jovens. Uns quantos de capa preta, com ar importante; os outros geralmente vão a cantar musicas obscenas, ou a segurar os penicos que lhes meteram nas cabeças. É a maravilhosa tradição das praxes, que consome o mundo académico nesta primeira semana de aulas e que, tal como as touradas, pode ser inútil, pode ser violenta, pode ser idiota, pode até ser improdutiva; mas pá, é uma tradição.

O que mais me fascina no mundo das praxes é que não há quase ninguém que goste daquilo; e no entanto deixa-se ser praxado. Eu cá não gosto de ser humilhado em público, ou de ter de andar com coisas escritas na testa, mas olha… É a tradição! Podemos fazer alguma coisa para o impedir? Sim. Eu quando for para a faculdade vou dizer educadamente e depois, se for necessário, de forma mais brusca e pronunciada, que não quero ser praxado. O problema é que TODA a gente quer ser praxada, porque é uma forma de se iniciar na vida académica, de fazer amigos (nada define melhor uma amizade do que as canções com asneiras sobre como o nosso curso faz coisas porcas aos outros cursos todos); tal como fumar, meter-se nas drogas ou passar a andar com o rabo à mostra e com as calças puxadas para baixo.

Mas se os caloiros se deixam levar na brincadeira é compreensível, muitos deles vêm de fora da cidade, não conhecem ninguém; e a humilhação no inicio das aulas é mesmo positiva para que possam depois sentir-se figuras amadas pelos seus pares. Já o caso dos veteranos é-me muito difícil de entender. Capa preta, sapato fino, ar de machões, ainda de borbulhas e barba curta e já com a mania que são senhores. Os sentimentos de superioridade e adrenalina que sentem ao humilhar as outras pessoas escondem-se por detrás de uma capa de prestígio e seriedade académica; senão não iam assim vestidos. Por uns dias, sentem-se uns verdadeiros doutores e doutoras, sobreviventes de um ou mais anos de faculdade, agora vencedores do direito de fazer aos outros as idiotices que lhes tinham feito a eles. Isto só se justifica com falta de QI ou masoquismo generalizado. E quando as praxes acabarem, aqueles veteranos serão iguais aos caloiros, alguns até mais novos, mais pequenos e muito mais estúpidos.

No entanto, durante aqueles dias, os nossos futuros médicos, advogados, políticos, economistas e pensadores (todos eles com 18, 19, 20 e tal anos) dedicam os primeiros dias de faculdade a cantar, a organizar festas para ir apanhar pielas, a meter penicos em cima de pessoas e a inventar jogos idiotas (nunca me esquecerei do dia em que fui ter com a minha namorada à sua faculdade, depois de mais um dia de praxes. Tinha vomitado para o chão porque alguém se lembrou que seria divertido mergulhar-lhe a cabeça em água de peixe podre. Escusado será dizer que ela nunca se sentiu tão integrada na faculdade, que obviamente lhe dava as boas vindas).

Isto tudo, claro, porque é tradição. Porque vida académica sem praxes não é vida académica. Porque um tipo até pode ser bom aluno, ter boas notas, investir na sua formação,, mostrar responsabilidade e maturidade, arranjar depois um emprego, ser um responsável que não aproveita todas as oportunidades para fazer parvoíces e ir beber copos; mas o verdadeiro académico é aquele que usa uma capa preta engomada pela mamã para ir avisar os caloiros de que é um mauzão. Curioso é que depois nos digam no secundário que há coisas que meninos de 17 anos já não deviam fazer, como correr nos corredores ou fazer muito barulho.