sábado, 10 de outubro de 2009

Jesus e as Colites

Um dos benefícios de estar acordado com insónias é poder ver a TV Record. Para quem não sabe, a TV Record é o canal brasileiro que veio substituir o fantástico GNT. De dia, o conteúdo do canal é dedicado a programas e noticiários vários, todos razoavelmente maus; mas de madrugada, a TV Record transmite todo o tipo de fantásticas actividades e propagandas da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus).

No programa que estou a ver neste momento, dezenas de pessoas falam de como foram curadas por Jesus. Contam os seus casos pessoais, e falam em como todos os médicos lhes prometeram que morreriam dali a umas horinhas e em como, correndo a refugiar-se no Templo Maior, foram curadas. Há uma quantidade de cancros em fase terminal, meia dúzia de dores várias no braço (incluindo uma senhora que não conseguia levantar o braço, mesmo depois de duas sérias de fisioterapia), uma senhora que (dramático) não conseguia dormir, e até um desesperado caso de colites, em que a senhora, cito: “Chegava a passar duas semanas sem conseguir evacuar, o que me dava grande sofrimento”.

Dores nas articulações, cancros e colites; todos curados. Assim se vê o poder de Deus, e assim publicita a IURD as suas incontáveis sessões com pastores e pregadores. Na sua “Reunião da Saúde”, prometem que aceitando Jesus e apelando para a Fé, tudo pode ser ultrapassado. Dizem sem qualquer tipo de pudor: “Já tentou todos os médicos, todas as clínicas, e nada resultou? Então nada lhe resta senão nós.” Passa em rodapé a mensagem que basta ungirmos com óleo santo o local da nossa enfermidade para ela se curar automaticamente (com a Graça do Senhor).

Há tantos problemas com estas questões dos milagres que nem sei por onde começar. Primeiro, o mais óbvio: acho absolutamente vergonhoso utilizarem este tipo de sugestiva mensagem de Fé, em que se incentivam as pessoas doentes e frágeis pela sua condição a ignorarem os médicos e sua medicina, porque eles no fundo são todos uns malandros, e substitui-los pela Fé em Jesus Cristo Nosso Senhor. Não só é uma óbvia forma de se aproveitarem da fragilidade dos doentes, como o mecanismo de publicidade mais eficaz. Uma das senhoras que diziam o quanto Jesus tinha feito por si contava que vivia em depressão nervosa até ter descoberto Jesus. Para alguém que não dorme, tem crises nervosas e anda triste e deprimida, a simples sugestão de que há solução é mais do que suficiente. Não estamos a falar de um problema de saúde concreto; ter dificuldades em dormir ou andar desanimado com a vida é uma maleita que os apresentadores deste tipo de programas (numa rubrica chamada “Eu fui vítima de um RITUAL”) atribuem a rituais satânicos, bruxarias e tretas variadas. Solução? Descobrir uma forma positiva de encarar a vida? Desenvolver auto-respeito e auto-confiança? Aprender a ultrapassar as dificuldades pela nossa própria força de vontade? Valorizar o que temos de bom e tentar combater o negativo? Não. Buscar forma de combater o Mal e os bruxedos; ou seja, colocar tudo nas mãos de… Jesus!

Este tipo de fraude deveria ser proibida, e acho muito estranho que ninguém demonstre o mínimo de revolta em relação a estes programas e canais. A fórmula é simples: Está com problemas? Doenças? A sua filha anda na droga? Acha que foi vítima de um bruxedo? Está desesperado? Está? A sério? Pois está, eu digo-lhe que sim! E digo-lhe mais, você é vítima de um bruxedo, do azar, do demónio! Pois é! Minha amiga, você está desesperada! Você não tem saída, isto digo-lhe eu! Mas espere! Há uma solução! Sabe qual é? Só existe uma, e uma apenas! Quer ou não resolver todos os seus problemas? Quer? Então escolha Jesus!

Encostar as pessoas fragilizadas à parede, dar-lhes a falsa ideia de que não há saída absolutamente nenhuma que não aquela que lhes vão sugerir, e depois apresentar-lhes exemplos de pessoas que, como elas, eram infelizes mas SUBITAMENTE a sua vida deu uma volta quando descobriram Jesus: É a técnica clássica, e também uma das mais fraudulentas e desumanas.

Quando alguém tem depressões e desmotivações várias, o mais fácil que há é utilizarem um placebo involuntário como o de Deus para ultrapassar a situação. Nisso não há problema algum; agora que estas igrejas vendam o seu “produto” como se fosse a única solução para (incluindo) doenças realmente sérias, é vergonhoso. O alimentar de superstições populares e curas milagrosas é um grave ataque à sociedade em que vivemos, em pleno século XXI.

E quanto a dores nas articulações, ou até tumores?! Como explicar estes milagres? Não há milagre algum registado que não pudesse acontecer sem a intervenção divina. Cancros entram em remissão, tumores auto-diagnosticados desaparecem, dores nas articulações ficam saradas naturalmente. Um interessante site americano faz a pergunta de outra forma: Porque é que não há milagres com amputados? Com doentes terminais? E, principalmente, em contextos não-religiosos? Onde está Jesus para curar pessoas nos hospitais? Só o faz nas Igrejas, e porquê? De que nos serve um milagre que supostamente serve para provar o poder e benevolência de Deus Nosso Senhor, se ele só acontece dentro de igrejas cheias de crentes? Isto só pode significar uma coisa: Deus cura sim senhor, mas é preciso dar-lhe graxa primeiro. “Acredita que Deus cura”. Óptimo, obrigadinho. Se eu acreditar muito muito muito que um Coelho Invisível me vai curar da minha tristeza, podem ter a certeza que vou andar mais alegre! É engraçado como Jesus salva gente de colites e depressões nervosas, mas deixa morrer tanta gente em circunstâncias tão horrendas. Quantos meninos com cancro ou vítimas de violência morrem todos os dias? Serão também vítimas de bruxedo? Jesus está demasiado ocupado a curar colites para poder andar por aí a fazer milagres a torto a direito, é compreensível. Tem de se reservar para aqueles que nele acreditam.

E assim segue a programação da TV Record, apresentando caso a caso, cada um mais desesperado, cada um mais mal ensaiado do que o outro. De caso em caso surge o Pastor, brasileiro, sublinhando a importância de Jesus no meio disto tudo. Depois de inúmeros apelos à emoção, o Pastor termina o programa com uma nota muito positiva: “A decisão é sua, e só há duas saídas. Pensar que não existe milagre, e acreditar que TUDO é um milagre. Venha à nossa Igreja JÁ, e as soluções para os seus problemas surgirão em Jesus”.

Não, não há duas saídas. Não, não é preciso Jesus para levar uma vida feliz, saudável, e estável. Não, não precisamos de dar graxa a uma figura superior que “cuida” de nós só quando vamos à Igreja fazer-lhe festinhas ao ego. Não, não precisamos de dedicar a nossa vida a uma personagem da Bíblia, que diz que se sacrificou imenso por nós (isso fica para outro dia, porque há várias coisas erradas nisso também). Sim, é possível que a alegria e o sentido da vida seja aquele que nós lhe atribuirmos, e não aquele que um Pastor nos ensina. Minha gente, tomem as rédeas da vossa vida e aprendam que não têm de se preocupar em atingir os critérios de nenhum Ser Superior, e muito menos que contar com ele para vos resolver os problemas.

Terminando: Da próxima vez que tiver cólicas, tenho duas hipóteses. Esperar que passem por si só e atribuir essa única e maravilhosa dádiva a Jesus, ou ir a uma farmácia e resolver o problema na hora. Quanto a mim não há escolha possível; mesmo que os senhores da TV Record me queiram convencer do contrário.

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