terça-feira, 27 de outubro de 2009

O Cereal Killer (10 de 12)

Chegados ao segundo quiosque, o capitão saltou do porco, que continuava zangado com ele, e bateu à porta do quiosque. A porta abriu-se, e de lá saiu um homenzinho pequeno, sem dentes, despenteado e completamente nu.

- Bons dias!

- É o proprietário do quiosque? - perguntou o capitão.

- Sim.

- Bom dia, somos da autoridade e queríamos fazer-lhe algumas perguntas...

- Por quem sois, oh colossal e brioso capitão! - disse o homem, endireitando o tronco e agitando no ar uma escova de dentes como se de uma espada se tratasse - Serei eu digno de vos congratular com refutações a tais perguntas?

O capitão, surpreendido, virou-se para os agentes da autoridade em busca de ajuda, mas estes já lá iam ao fundo da rua, entretendo-se a atirar os boomerangs para os perus que, incrivelmente, ainda não tinham descoberto como funcionavam. O capitão virou-se então para Jovial.

- Bom, achamos que nos poderá ajudar numa investigação - disse Jovial.

- Oh, uma investigação? Averiguação? Devassa? Pois bem, assim o espero, e assim o desejo! Será a minha espada capaz de vos apoiar nessa odisseia pelo conhecimento superior?

O capitão limpou os ouvidos com a unha do dedo mindinho para tentar perceber melhor.

- Talvez, tavez...- respondeu Jovial.- Diga-me, aqui no seu quiosque tem muita gente a comprar a revista “Caramba”?

- Caramba? Ah, esse glorioso desfile de ingenuidade amorosa e falso romantismo! Esse hino ao amor mais artificial que é o do homem pela má-língua e pela cítica ácida ao seu irmão! - proclamou o proprietário do quiosque, agitando a escova de dentes no ar. Agora dava alguns passos de dança, como se estivesse a actuar numa peça de teatro, e golpeava inimigos invisíveis com a sua espada imaginária.

- Sim, essa mesmo - disse Jovial. O capitão desistira, e dirigia-se agora para a pastelaria mais próxima, onde contava poder comer um pudim caseiro.

- Pois digo-lhe senão a verdade ao afirmar que todos os dias, primavera atrás de primavera, são abundantes os compradores de tal magazine! Esperai apenas um momento, nobre cavaleiro da autoridade! - o proprietário do quiosque entrou e voltou a sair pouco depois, vestido de cavaleiro. Usava uma caixa de cartão que dizia “Lexus Limpa-Vidros” na cabeça, como capacete, e usava uma estranha vestimenta, também de cartão, onde desenhara com um marcador as figuras do cinto, da cota de malha e das calças. Usava ainda botas feitas de um pano muito parecido com aquele que estava enrolado na mão de Jovial.

- Olá - disse o pano de cozinha nas mãos de Jovial.

- Olá - disse o pano nos pés do homem do quiosque.

- Agora sim, estou preparado para tão descomunal odisseia! - disse ele, a agitar a escova de dentes.Depois, reparou no peru de Jovial- Oh! Um galiforme!

- Tecnicamente sou da família dos galiformes...- murmurou o peru, e continuou a pastar.

- Afastai-vos, diabólico orador! Serdes um demónio que se tem apoderado deste pobre animal! - exclamou o proprietário do quiosque.

- Ele é mesmo assim - disse Jovial, pacientemente.

- Mesmo assim, nobre cavaleiro? - exclamou o proprietário do quiosque.- É uma entidade devoradora de almas! - tentou acertar com a escova de dentes, mas a sua inacreditável falta de pontaria traiu-o, e a escova voou na direcção contrária a do peru e foi arrancar uma peruca do cimo da careca de um senhor que por ali passava, que imediatamente se escondeu dentro de uma entrada de esgotos para poder recolocar a peruca com maior privacidade.

- O teu corcel está possuído! Reparai, cavaleiro, o demónio desviou a minha espada! - reclamou.

- Não se preocupe, tenho a certeza que o meu corcel ficará como novo... Eu preciso de lhe fazer algumas perguntas - insistiu Jovial.

- Fazei-as! – disse o proprietário do quiosque, olhando de esguelha para peru de Jovial.

- Há alguma forma de saber quem comprou no seu quiosque a revista “Caramba” juntamente com o faqueiro promocional?

- Oh, o faqueiro? – berrou - O débil faqueiro de tão terrível má qualidade?

- Sim, esse mesmo.

Entretanto o capitão saiu da pastelaria com um guardanapo na mão e restos de pudim junto à entrada das narinas.

- Bem, quem levaria consigo aquele mal afamado faqueiro? Apenas um louco, nobre cavaleiro, apenas um demente! Mas talvez, se os Deuses têm sido meus intercessores, este submisso aprendiz de espadachim que aqui vedes diante teus pés, que não tenho a coragem nem ousadia de sequer beijar, possua em sua oficina uma lista de clientes que, no seu delírio, tenham comprado tal coisa essa de que faleis, juntamente com a magazine que parece tanto te interessar!

O homem desapareceu dentro do quiosque e as portas fecharam-se. O quiosque olhou timidamente para Jovial e para o capitão, que acabara de se limpar.

- Têm de desculpar... ele é assim mesmo desde pequeno. Um dia deu-lhe para ler o Don Quixote e desde aí... - o quiosque deitou a língua de fora e fez algo parecido com “Pruff”. As suas portas abriram-se de novo e o homem reapareceu, com um bocado de papel nas mãos.

- Ai ai, rogarei todas as noites e dias aos Deuses que me abençoaram, e agradecerei por este maravilhoso momento! Aqui tendes, valoroso cavaleiro, a lista dos loucos! - o homem estendeu a Jovial uma lista de nomes - Aí espero que esteja o maldito que procurais, cavaleiro, pois pareceis um bom homem e desejo que encontres aquilo que buscais! Sobe, cavaleiro, sobe às mais altas montanhas, desce aos mais escondidos subterrâneos do Mundo velho e antigo, mas quando a tua odisseia terminar e te encontrares no paraíso com os Criadores, imploro que intercedeis em minha beneficência! Pedi-lhes que me guardem um lugar com eles, nos seus tronos de ouro e marfim importado! Dizeis-lhes que sou bom, virtuoso e justo. Contai-lhes de como a minha humilde ajuda te conduziu pelo caminho de rocha, areia e pó, um caminho que só os valorosos como vós caminham, e que graças a esta minha submissa achega vós haveis encontrado o que procurais! Ai, Deuses, atendam a este glorioso cavaleiro, de quem sou servil criado, para toda a mais profunda eternidade! - o homem do quiosque fez uma vénia, e os transeuntes pararam para aplaudir, atirar flores e gritar “Bravo!”. O homem do quiosque rodopiou, fez outra vénia, agradeceu com um aceno e mergulhou para dentro do quiosque, fechando as portas atrás de si.

- Fantástico, uma lista! - entusiasmou-se o capitão - Aposto que o nome do nosso assassino está aqui no meio!

- Quanto? - perguntou o peru de Jovial, a extrair o porta-moedas do bolso.

- Como assim?

- Quanto é que aposta?

- Apostar com um peru?

- Sim, qual é o problema?

- Gosto de desafios; cá vai! - disse o capitão, também a tirar o porta moedas do bolço - Três moedas em como o nome está aqui nesta listinha!

- Três moedas em como o assassino está fora dessa lista - disse o peru.

- Apostado!

Cumprimentaram-se, para soldar a posta. O capitão subiu para cima do seu porco, que falhou por pouco a tentativa de lhe dar uma marrada. O capitão pediu-lhe desculpas mais uma vez, mas o porco relinchou que não. Jovial montou no seu peru, e os agentes da autoridade regressaram da sua brincadeira com os seus perus, um deles com um grande galo perto do bico, por ter sido golpeado por um boomerang em pleno voo.

- Vamos lá então, amigos! - disse o capitão. Fez uma continência, e os agentes responderam-lhe com a mesma moeda - O que devemos fazer a seguir? - berrou. Os agentes da autoridade contorceram-se em cima dos seus perus, como que a ajeitar o rabo no cimo da ave.

- Devemos claramente visitar cada um desses clientes e investigar onde estiveram no momento dos crimes - disse um dos agentes da autoridade, e o outro acenou rápida e afirmativamente com a cabeça.

- Muito bem! - exclamou o capitão - Jovial, alguma ideia?

Jovial sorriu de contentamente. Toda aquela história policial estava a entusiasmá-lo, e talvez por isso teve uma brilhante ideia. Limpou a garganta com uma fungadela sonora, penteou-se ligeiramente e deixou os agentes da autoridade em suspence mais alguns segundos.

- Capitão - disse, finalmente - Proponho que procuremos o dentista da região!

Os agentes da autoridade soltaram um “Ah!” de admiração, mas a sua cara de incompreensão não se alterou; e os seus perus pararam de pastar por momentos para ouvir Jovial.

- O dentista? - perguntou o capitão - Porquê?

- Repare: ontem concluímos que o assassino devia ser consumidor de cereais de baixo valor nutritivo, porque assassinara apenas caixas de cereais integrais. Portanto, se o homem que procuramos consome cereais pouco saudáveis e come com faqueiros promocionais de baixa qualidade, podemos ter quase a certeza que não dá grande valor a uma alimentação saudável, e que quase de certeza visitou um dentista pelo menos no último ano com qualquer tipo de cáries ou inflamações! - Jovial sentia um orgulho acutilante, e o discurso saíra-lhe tão bem que os transeuntes paravam e aplaudiam; um até atirou uma moedinha aos pés de Jovial, enquanto outro lhe pedia para este lhe autografar a testa com um marcador.

- Genial, Jovial! - disse o capitão - Para o dentista, então!

E o capitão deu com o chicote no porco, que reclamou em oinc oincs, e subiu a rua, Jovial e os agentes da autoridade atrás de si.

(continua)

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