terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Cereal Killer (3 de 12)

Jovial trabalhava numa fábrica de meias como investigador, estando actualmente a desenvolver um tecido anti-chulé que, esperava, o levasse à fama internacional. E o seu candeeiro, a caixa de cereais e o pintainho escolheram um mau dia para morrer, pensou Jovial, ao olhar para o calendário à porta da fábrica e constatar que hoje, dia 34, seria dia de testes.

- Ora bolas!- resmungou para com os seus botões.- Logo hoje que me morreu um candeeiro em casa!

- Oh!- disse um dos botões da bata que vestia sempre antes de entrar no laboratório - Tenho muita pena!

- Também eu! - disse um segundo botão - os meus pêsames.

- Obrigado - disse Jovial, enquanto mostrava a identificação à porta do laboratório. A porta sorriu-lhe timidamente; toda a gente da fábrica sabia que ela tinha um fraquinho pelo Doutor Jovial.

- Bom dia, Doutor - disse a porta, a corar ligeiramente junto à ombreira.

- Bom dia- disse Jovial, e entrou pela porta para o laboratório. Era uma sala metade rectangular, metade redonda, e havia uma discussão pendente entre os cientistas se a terceira metade era triangular ou não. Jovial caminhou até à sua secretária, cumprimentando com um cântico tradicional, como era tradição no laboratório, cada um dos seus colegas cientistas, e finalmente sentou-se à sua secretária, ligou o computador, e começou um jogo online com gatinhos e bolinhas coloridas, para tentar esquecer a terrível e traumatizante imagem do candeeiro, da caixa de cereais e do pintainho mortos.

De súbito, uma sirene encheu o laboratório de puns de surpresa, e Jovial soltou numa flatulência fora do normal, aplaudida pelos seus colegas cientistas. Depois dos aplausos, seguiram por um corredor para a zona de testes, onde, no centro de uma sala redonda e cheia de posters de bandas famosas, estava uma cadeira com um par de meias delicadamente colocado sobre ela. Os cientistas pagaram o bilhete, à entrada, e alguns deles caíram na infelicidade de não ter ali trocos, e assim terem de ficar lá fora. Depois de todos os bilhetes terem sido vendidos e depois dos cientistas sem trocos serem pontapeados para fora do recinto do espectáculo, os cientistas com bilhete procuraram os seus lugares, calhando a Jovial o D-13. Sentou-se e viu, com alegria, que a plateia não estava muito ocupada, e que por isso talvez tivesse a sorte de arranjar um lugar com maior visibilidade. Levantou-se, desceu pelas escadinhas do recinto e encontrou, na fila H, um lugar vago. Cantarolando de contentamento, atravessou a fila em direcção ao lugar, pisando alguns cientistas já sentados, que lhe resmungaram obscenidades entre-dentes. Sentou-se no lugar vago, constatando que, dali, via muito melhor. As luzes da sala apagaram-se lentamente, e uma voz feminina pediu-lhes para desligarem os telemóveis, e informou ainda que era proibida qualquer tipo de gravação, áudio ou vídeo, do espetáculo. Os cientistas aplaudiram quando a mensagem acabou, porque a qualidade do som era fenomenal, e o espectáculo começou.

Um indivíduo completamente desconhecido entrou para o palco, com certeza o voluntário para a experiência. Era um homem pequeno, com barba por fazer, cabelos grisalhos e mal penteados (notava-se que houvera uma louvável tentativa de os amaciar, mas tal fora impossível), pés descalços, camisa suada e calças puxadas para cima, exibindo com orgulho os pés sujos e unhas acastanhadas, e por momentos Jovial pensou que o homem tinha pé-de-atleta, ou urticária. Mas mal ele estendeu o pé esquerdo, de longe o mais porco, na direcção da assistência, fazendo vários cientistas desmaiar, Jovial reconheceu os sintomas de um caso profundo e preocupante de chulé. O público aplaudiu com gosto, enquanto os cientistas inconscientes eram levados para fora da sala numa maca. O homem sentou-se na cadeira, pegou nas meias que ali estavam, e começou a calçá-las. Um percussionista apareceu detrás do palco, com um tambor e duas baquetas, e iniciou um impressionante rufo. O homem calçou uma das meias, depois a outra, e quando colocou os dois pés no chão e se ergueu, o percussionista parou o rufo e atirou um prato ao chão. O público começou a aplaudir, extasiado.

- Preciso de um voluntário! - disse o homem, a apontar sugestivamente para os seus pés, agora dentro das meias. Os aplausos cessaram, e ninguém se ofereceu. Ao ver que o seu espectáculo ia por água abaixo, o voluntário agarrou no percussionista e fez uma complicada pirueta. O seu pé esquerdo estava agora equilibrado num dos ombros do percussionista que, em pânico, os cheirou. O público esperava uma reacção. O percussionista sorriu, aliviado.

- Não cheira a chulé! - disse, e a assistência explodiu numa onda de aplausos. Os cientistas levantaram-se e assobiaram, alguns gritando “Bis! Bis” e outros “Bravo!”. Jovial também aplaudiu; era fantástico, realmente. O voluntário e o percussionista fizeram uma vénia, e uma mulher de fato de banho entrou no palco com dois ramos de flores, um para cada um. Os cientistas aplaudiram sem parar, até que o voluntário e o percussionista se retiraram. Jovial estava contentíssimo, e sentiu-se feliz por trazer sempre alguns trocos no bolso.

De seguida, entrou e palco o cientista-chefe, que liderava as investigações.

- Caros colegas, as nossas investigações deram finalmente frutos! Como puderam ver ao vivo e em exclusivo, conseguimos encontrar um tecido macio e resistente ao cheiro de chulé!- os cientistas aplaudiram, e o cientista- chefe continuou - Mas tal não seria possível sem a ajuda de um dos maiores cérebros vivos do planeta no que toca à ciência da meia. Por favor, um aplauso para o Doutor Jovial Tristenho!

Jovial ergueu-se com um sorriso, e todos os cientistas aplaudiram. Foi então que um dos homens dos bilhetes olhou para Jovial.

- Por favor, o seu bilhete- pediu delicadamente.

Jovial estendeu-lho, e o homem olhou para o bilhete, e depois para Jovial, alarmado.

- Você não está no seu lugar!

Os aplausos diminuíram, e Jovial corou. Fora apanhado!

- Repare -continuou o homem dos bilhetes - O seu lugar é o D-13, e não o H-5!

Os cientistas pararam de aplaudir e soltaram um “AAHH!” de surpresa.

- Isso é impossível! - disse o cientista - chefe, saltando do palco com uma pirueta e aproximando-se em bicos de pés, como uma bailarina - Eu trabalho com o Jovial há vários anos e sei que ele seria incapaz de... - o cientista - chefe olhou para o bilhete de Jovial, e empalideceu. De seguida, soltou uma flatulência, como era tradição em momentos de surpresa, e olhou para Jovial.

- Como foi capaz, doutor? Como?

Os cientistas, alarmados, nada disseram; alguns, amigos de Jovial, deram mesmo puns de surpresa.

- Está despedido! - disse o cientista - chefe.

- Mas doutor... aqui via-se melhor! - disse Jovial.

- Não importa, doutor! Como posso depositar toda esta investigação num homem como o senhor? Se foi capaz de trocar de lugares assim, com este descaramento, o que fará com as meias?

Os cientistas apuparam Jovial, que teve de sair da sala a correr. Os cientistas perseguiram-no, atirando-lhe com frutos podres. O voluntário também saltitava atrás de Jovial, com cara de quem lhe queria dar um valente pontapé. Ao sair do laboratório, Jovial recebeu com um grande splash um tomate mesmo na cara, que lhe incapacitou a vista. Subiu para o papagaio-de-papel, estacionado em segunda fila, e levantou voou, sem antes um pepino lhe acertar na mão esquerda, arrancando-lhe o polegar com violência. Voou dali para fora, cheio de medo, enquanto os cientistas e o voluntário com chulé continuaram a perseguir o seu polegar rua abaixo.

(continua)

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