segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Cereal Killer (2 de 12)

No dia seguinte, Jovial acordou esfomeado, despenteado e com hálito de almofada. Levantou-se para ir lavar os dentes e reparou no cadáver imóvel do candeeiro, estendido em cima da mesa.

- Oh, que fui eu fazer!- cantarolou Jovial, abraçando o corpo inerte do velho candeeiro.

- Deixa lá- disse-lhe uma maçaneta- ele já era velho, não podia durar muito...

- Mentiras!- rosnou uma vela, que se esquecera de barbear e por isso tinha a boca escondida atrás de uma longa barba de Pai Natal - Eu bem vi o que aconteceu! Jovial Tristenho matou o candeeiro!

Rapidamente os objectos da sala começaram uma acesa discussão. Um livro concordava com a vela, mas ninguém lhe ligo nenhuma porque todos sabiam que era comunista; uma jarra de flores concordou com Jovial, que se defendia dizendo ter sido um inocente esquecimento. Uma vassoura acusava Jovial de tortura, maus-tratos e negligência, e uma mesa oferecia-se para defender Jovial em tribunal, se a tal chegasse.

Depressa a confusão alastrou às outras divisões da casa, mas como a comunicação era limitada ninguém sabia do que estavam a discutir os objectos da sala;, na casa de banho falava-se de política e no quarto de hóspedes discutia-se a relação ciência/religião.

Jovial, agora com uma forte dor de cabeça e comichão na virilha, correu à cozinha, fez um batido de cenoura, e bebeu-o de uma vez só; como é sabido, a cenoura faz bem aos olhos, e por largos minutos, Jovial pôde ver no escuro, tudo verde, claro, mas nunca o descobriu porque todas as luzes da casa estavam ligadas, e para além disso um par de sóis brilhava economicamente lá fora.

Saiu de casa a correr, para não ter de ouvir os seus próprios objectos acusarem-no de assassinato, e começou a cantarolar, para afastar as mágoas. Preparou-se para entrar no papagaio de papel que todos os dias o levava ao emprego, mas um monte de pessoas reunidas no centro do largo da aldeia chamou-lhe a atenção. Aproximou-se, apreensivo, porque, tanto quanto sabia, podiam estar a discutir o que fazer com ele, o assassino-de-candeeiros, mas uma onda de felicidade molhou-o da cabeça aos pés quando viu que todos olhavam para baixo, onde o cadáver de uma caixa de cereais jazia no chão da aldeia.

- Pobre coitado, deixou três filhos cerealzinhos!- dizia uma senhora tão idosa que caminhava dentro de um caixão, com a sua vozinha a sair de um buraquinho. O caixão não tinha ar condicionado, e por isso a senhora tinha muito calor.

- Mas quem terá feito uma coisa destas?- perguntou um agricultor, com uma beterraba pendurada no nariz.

- Desculpe, amigo, mas tem uma coisa no nariz... - disse Jovial.

- Deixe-se de coisas, não vê que temos aqui um assassinato? - disse o agricultor com a beterraba no nariz.

- Temos de participar às autoridades - aconselhou um pintainho.

- Volta para a quinta, pintainho!- berrou o agricultor da beterraba, que olhava para ele acusatoriamente assim como toda a gente no largo.

- Não posso, hoje é o meu dia de folga - respondeu habilmente o pintainho, e Jovial percebeu logo que não era verdade o que dizia o bichano, eram balelas de pinto; mesmo assim, as outras pessoas acreditaram, e voltaram-se de novo para o cadáver da caixa de cereais.

- Alguém tem um telefone?- perguntou um velhinho que, aparentemente, se enganara ao sair de casa, e que por isso se apoiava a uma baguete em vez de a uma bengala.

- Não, mas eu tenho aqui um pombo correio- disse um caçador, que acidentalmente abatera um pâncreas que fugira às autoridades, e que por isso recebera uma medalha de mérito que exibia sem modéstia, pendurada num dos sovacos.

- Não serve, terá de ser mais rápido.- disse o agricultor da beterraba.

- Olhem!- disse o caçador, a apontar para o fundo da rua, a medalha a tilintar debaixo do sovaco.

Ao fundo da rua, aproximava-se alguma coisa. Jovial reparou que era um agente da autoridade montado num peru, depois outro agente da autoridade, desta feita montado num porco preto, e depois um terceiro agente da autoridade, montado num segundo peru. O segundo agente da autoridade, montado no porco preto, deu com um chicote no traseiro do animal, que uivou autoritariamente, como que a avisar os transeuntes de que era de boas famílias. O terceiro agente da autoridade montado no segundo peru tomou a dianteira, e o primeiro agente da autoridade montado no primeiro peru a retaguarda. Rapidamente rodearam o cadáver da caixa de cereais, e o agente da autoridade montado no porco saltou para o chão, bateu com os pés numa casca de banana, escorregou, caiu com o rabo em cima do cadáver da caixa de cereais, e voltou a levantar-se. A banana afastou-se, ofendida, e todos os transeuntes riram com gosto. O agente da autoridade, ainda com restos de banana no traseiro, fez sinal ao porco preto, que relinchou, e os transeuntes pararam de rir, como que sujeitos a levar uma porcada se continuassem.

- Meu capitão, é um cadáver!- disse, surpreendido, um dos agentes da autoridade montados nos perus.

- Deveras, meu jovem, deveras que é! - rosnou o agente da autoridade que tropeçara para cima do cadáver da caixa de cereais, enquanto tentava limpar os restos de banana discretamente - Quem encontrou este cadávere?- perguntou ele. Todos os transeuntes apontaram para o pintainho, que relinchou de medo.

- Fui eu, senhor capitão. Estava a regressar a casa depois de uma noitada de folia num galinheiro de um familiar, quando tropecei neste pobre coitado.

- Quer dizer que tocou no cadávere? - rosnou o capitão, inclinando-se perigosamente na direcção do pintainho, de maneira que o seu grande nariz quase lhe tocava no bico. Jovial reparou que o capitão, visto de perto, era muito diferente dos outros dois agentes da autoridade. Tal como o caçador, exibia várias medalhas debaixo dos socados, ferrugentas certamente por causa da transpiração a que eram sujeitas. Tinha uma bóina que dizia “Capitão” à frente, e “100% fibra de linho” atrás. As pernas eram curtas, tão curtas que mal aguentavam o resto do corpo, e numa mão segurava o chicote e noutra uma toalhita higiénica com que continuava a tentar limpar os resíduos de banana no rabiosque.

- Sim, senhor capitão...- disse o pintainho, e Jovial quase sentiu pena dele. O capitão levantou a cabeça e olhou para todos os transeuntes, incluindo para Jovial.

- Ninguém viu o assassino?- perguntou. Todos acenaram negativamente, e a beringela no nariz do agricultor oscilou de um lado para o outro.

- Capitão, olhe!- disse outro agente da autoridade, a descer desajeitadamente de cima do peru, que começou a pastar, e a apontar para o cadáver da caixa de cereais - É uma faca!

- Deveras, se é!- disse o capitão, entusiasmado. Pegou na faca com a ponta da toalhita higiénica, sujando-a com banana.- A arma do crime! De certo haverão impressões digitais nesta faca, e assim descobriremos o assassino! - o capitão sorriu triunfante, e ficou à espera de uma salva de palmas pela sua mentes genial, mas nenhum dos transeuntes bateu palmas.

Constrangido, o capitão colocou a faca no bolso, atirou a toalhita higiénica para cima do pintainho, cobrindo-o, e montou o porco.

- Chamem um médico-legista para analisar o cadávere, agentes! - disse ele.

- Sim, senhor capitão! - disseram os agentes da autoridade em cima dos seus perus, e rapidamente desapareceram atrás de duas esquinas, uma para a direita e outra para a esquerda, esforçando os seus perus ao máximo.

- O assassino - disse o capitão, misteriosamente - está entre nós!

Os transeuntes entreolharam-se. Jovial olhou para o caçador e para os seus sovacos, depois para o caixão com a velhinha lá dentro, depois para a baguete do velhinho, depois para a beterraba do agricultor, e finalmente para o pintainho, que entretanto falecera asfixiado debaixo da toalhita higiénica. Quem seria o assassino? E estaria ele ali, no local do crime? O capitão deu com o chicote no traseiro do porco preto, e acelerou por uma esquina, e os transeuntes dispersaram, cada um para as suas vidas. Jovial, moralmente constrangido por deixar ali o cadáver da caixa de cereais, ficou-se mais alguns momentos, mas depois lembrou-se de que tinha de ir para o emprego e trepou ao seu papagaio de papel, estacionado à porta de sua casa, e que o levou a voar dali para fora.

(continua)

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