domingo, 11 de outubro de 2009

O Bíblico Cantinho: A Arca de Noé

Depois de uma série de incestuosas relações entre os filhos e netos de Adão e Eva, o mundo estava repleto de gente, pois todos os homens viviam uns 900 anos e tinham filhos por tudo e por nada. No entanto, a Humanidade multiplicava-se e com ela a sua maldade. Deus olhou cá para baixo e viu que a Humanidade tinha pensamentos maldosos e impuros, e vivia para o pecado.

- Acho que esta gente está a ficar um bocado pecadora demais para o meu gosto – disse Deus para os seus botões – Estou, com todo o Amor, bastante arrependido por os ter criado. No fundo eu já sabia que eles iriam ser assim, mas agora arrependo-me. Também já sabia que ia ficar arrependido, e que iria saber que eu já sabia que iria ficar arrependido. Uau, esta omnisciência toda está a confundir-me. Onde é que eu ia? Ah, sim, os pecadores nojentos que eu criei. De que forma é que lhes posso chamar a atenção para o facto de as suas acções serem maldosas e erradas? Poderia descer sobre eles em toda a minha benevolência e dar-lhes uma mensagem de paz, numa luz branca de Amor que cobrisse toda a terra, e faze-los compreender, graças à minha omnipotência, que a maldade que guia as suas vidas está errada… Ou, então, podia enviar o meu Filho e espetá-lo com uns pregos numa cruz para salvar a Humanidade. Hum… Já sei! A melhor forma de corrigir esta confusão é enviar uma chuvada durante 40 dias e 40 noites, e assim aniquilar toda a vida na terra, incluindo animais, plantas, pessoas boas e bebés recém-nascidos que ainda não tiveram tempo sequer para começar a pecar. Assim não sobra ninguém, e posso recomeçar tudo de novo. Sim, parece-me uma ideia fenomenal, e também mais prática. No entanto, vou deixar para mais logo aquela ideia do meu Filho espetado na cruz; também me pareceu ter potencial…

E assim Deus desceu sobre a terra, e entre todos os homens pecadores que ia encontrando viu Noé. Noé era um tipo fixe, e é uma das mais realistas personagens das belas histórias da Bíblia. Tinha quinhentos anos, três filhos, e era o único homem justo e bom na face da terra. Ah, e para além disso, andava sempre com o Senhor; de certeza que este pequeno critério não teve nada a ver com a decisão de Deus, mas fica aqui registado só por uma questão de coerência.

Foi assim que Deus foi ter com Noé, o homem mais justo da terra, e lhe disse:

- Noé, vou afogar toda a Humanidade. O que achas?

- Oh Senhor Deus, Tu és realmente Grandioso.

- Pelas tuas sábias palavras vejo que és um homem bom e justo. Mas será que posso mesmo ter a certeza que és um homem realmente merecedor?

- Senhor, em tudo na minha vida sigo os Teus ensinamentos, e as Tuas mensagens são para mim uma benevolente prova divina da tua absoluta grandiosidade.

- Sim, pelo que vejo és realmente um homem perfeito e justo entre todos estes pecadores que criei, e sinto que posso abrir o meu coração a ti, Noé. Como já devo ter dito, vou afogar toda esta gente, pois acho-os todos uns pecadores do pior. Toda a gente, menos um homem: tu.

- Oh Deus! Obrigado!

- E como sou um Deus muito coerente, aproveito e salvo também a tua família, incluindo as mulheres dos teus filhos e eles próprios, apesar de aparentemente tu seres o único homem bom na Terra.

- Era isso mesmo que lhe ia perguntar, meu Deus; mas obrigado por salvar também a minha pobre, nojenta e pecadora família, em nada digna de partilhar o mesmo mundo que Tu, Deus.

- De nada. Agora repara na minha lógica infalível: decidi do nada que todos os animais e plantas também devem perecer, apesar de nada terem a ver com os homens pecadores. No entanto, tu salvarás um par de animais de cada espécie, um macho e uma fêmea. Dos animais puros deverás salvar sete pares, e dos impuros apenas um. Cuidado não te enganes, porque se depois do dilúvio temos dois leões ou duas mulas não há descendência para ninguém. Também deverás encher a arca com todos os comes e bebes que conseguires, para alimentar a tua família e todos os animais durante o dilúvio.

- Sim, Senhor.

- Vais construir uma arca gigantesca, com as medidas que eu te disser. Tens aí um papel à mão?

Deus ditou as medidas exactas da arca, e todas as suas especificidades.

- Senhor, permita-me uma pergunta. Onde é que entra a tampa?

- A tampa? – perguntou Deus.

- Sim, Senhor. A tampa da arca.

Houve uma longa pausa, em que Deus olhou para Noé e Noé para Deus.

- Ah, é um barco. No fundo é um barco normal, só que chamado arca.

Deus não disse nada.

- Compreendi. Tens de perceber, Deus, que a Tua sabedoria é demasiadamente grande para ser compreendida pelas mais simples e honestas mentes como a minha.

- Resumindo, Noé: dentro da arca levarás toda a tua família, e um par de cada um dos animais da Terra.

- Senhor, devo ir buscar os animais ou eles virão ter comigo?

- Eles vêem ter contigo. Preocupa-te com a construção da arca.

- Então e animais como os coalas, que não existem neste continente? Ou as avestruzes, ou os búfalos americanos?

- Vêem a nado.

- E todos os insectos do mundo, com o seu milhão de espécies diferentes?

- Voarão até ti.

- E as formigas, que não têm asas? Vêm a nado?

- Noé, preocupa-te com a arca. Eu preocupar-me-ei com as óbvias falácias lógicas desta história, uma vez que na altura em que o livro sobre mim for escrito os seus autores não saberão a quantidade de problemas existentes nestas histórias e por isso não se vão poder queixar.

- A arca, Senhor, claro. A arca.

E assim Noé juntou os seus três filhos, Sem, Cam e Jafet, e os trabalhos de construção da arca começaram. Quando ficou terminada a arca, os animais de todo o mundo começaram a aparecer à porta de Noé, enchendo a terra de fezes e urinando por todo o lado. De todas as espécies do mundo havia um par, um macho e uma fêmea. Vendo este belo espectáculo, Deus desceu sobre a terra e disse a Noé:

- Fizeste tal e qual como te ordenei, Noé. Muito bem. Agora entra na arca rapidamente com tua família e todos os animais, porque não tarda vou aniquilar toda a população da terra com as águas torrenciais.

Noé, amedrontado, abriu a porta da enorme Arca e começou a conduzir os animais lá para dentro. Por último, já se ouvia a trovoada e viam as primeiras nuvens negras no céu, a família de Noé e ele próprio entraram na arca e Deus fechou a porta atrás deles.

Durante quarenta dias e quarenta noites choveu torrencialmente. Toda a terra foi coberta, desde os mais profundos vales até aos cumes das montanhas mais altas. A arca, claro, boiava sem problemas por entre as torrentes de água da chuva, abrindo caminho pelas marés e pelos corpos a boiar de todas as vítimas do dilúvio. Noé vinha muitas vezes dar um passeio ao porão, olhando pela borda da arca para as águas e vendo todos os cadáveres inchados de todos os pecadores irremediáveis, e respectivas crianças e filhos bebés. Noé rejubilava-se, pois sabia que ele e a sua família mereciam muito mais ter sobrevivido àquele dilúvio do que todos os outros seres vivos à face do planeta.

Andava a arca a boiar há já longos meses quando Deus decidiu que sim senhor, todos os pecadores já tinham sido exterminados devidamente, e era altura de fazer o nível das águas descer para que Noé pudesse sair da arca. As águas começaram então a descer; e Noé lançou de uma das janelas da arca uma pomba branca, esperando que esta lhe trouxesse no bico o sinal de terra. A pomba regressou dali a uns tempos, com um ramo de oliveira no bico. Noé, de lágrimas nos olhos, exclamou:

- As águas estão a descer!

E estavam mesmo. Não tardou a chegar o dia em que a água secou e Noé e seus familiares puderam sair da arca para terra firme. Disse-lhes Deus:

- Cá estão todos, vivinhos da silva. Reparem só na minha benevolência. A terra está vazia de pecado e de desgraça. Vão, soltem os animais e multipliquem-se vocês também sobre a terra.

Noé, em vez de obedecer a Deus e ir logo fecundar a sua mulher, construiu um altar dedicado ao Senhor, e sacrificou um de cada animal puro em honra de Deus. Deus sentiu o agradável odor a sacrifício, e banhado por um sentimento de Amor disse para si mesmo:

- Aaah. De futuro não voltarei a amaldiçoar a terra desta maneira. Pronto, desta vez foi só um descuido… Não pensei bem, estava um bocado desapontado com os pecadores, exagerei… Mas prometo, minha querida Humanidade, que nunca mais castigarei a terra nem os seres vivos, apesar de saber que vocês homens são naturalmente maus e corruptos desde que nascem até que morrem. Numa pequena nota extra, para melhor compreenderem o meu raciocínio, relembro que vos fiz à minha imagem, e que fui eu que vos criei da forma como são.

Deus virou-se para Noé, que o esperava com a família junto do altar coberto com o sangue de todos os animais sacrificados, e disse:

- Não se esqueçam de ser fecundos, e de se multiplicarem pela terra. Eu sei que a última vez correu mal, mas espero que consigamos acertar desta vez. Estabeleço aqui uma aliança convosco e com a vossa descendência, bem como com todos os animais que trouxeram na arca: nunca mais uma única criatura será exterminada através de um dilúvio como este, e nunca mais um dilúvio destruirá a terra. Claro que tal como fizeste e muito bem, Noé, estão sempre à vontade para degolar um ou outro bichinho em minha honra. Aliás, mais tarde dar-vos-ei a lista de Leis que regem a forma como devem ou não sacrificar animais inocentes para compensar o que fizeram de mal, mas isso ficará para outro dia. Por agora, dou-vos este sinal lindíssimo da nossa aliança.

Deus estendeu o dedo sobre os céus, e o arco-íris abriu-se em sete cores vivas e comoventes por entre as nuvens.

- De cada vez que virem este meu arco – disse Deus – lembrem-se da aliança que fizeram comigo. Haverá forma mais bela de simbolizar uma aliança feita entre o Homem e o seu Deus depois de um extermínio a nível mundial porque me ter arrependido de vos ter criado? Não me parece.

Noé e a família choraram de comoção, ao ver Deus a subir pelas nuvens e o belo arco de sete cores atravessando os céus. Agora restava limpar os restos putrefactos de todos os pecadores exterminados no dilúvio e retomar as suas vidas honestas e justas, sempre caminhando junto ao Senhor.


Valerá a pena acrescentar, no entanto, o último capítulo na história de Noé. Noé tinha três filhos, Jafet, Sem e Cam. Cam, por sua vez, tinha um filho chamado Canaã.

Noé, que era agricultor, recomeçou a lavrar a terra após o dilúvio; e depois de plantar a primeira vinha, fez vinho, bebeu-o e embriagou-se. Bêbado, foi deitar-se completamente nu dentro da sua tenda, e adormeceu. Acontece que por azar, Cam entrou na tenda e viu o triste estado do seu pai, despido e alcoolizado. Saiu da tenda e foi logo contar aos irmãos, que se dirigiram à tenda com uma capa e, entrando de costas para não verem a nudez do pai, lhe cobriram o corpo com a capa que levavam.

Quando despertou da embriaguez, Noé soube o que tinha acontecido. O que Cam lhe fez para ficar assim tão furioso nunca iremos saber, mas partindo do princípio que estava nu e inconsciente dentro de uma tenda não podemos deduzir coisa boa. Disse Noé:

- Maldito seja Canaã! – gritou Noé, o homem mais justo e bondoso da sua geração, culpando o seu neto pelo que o filho lhe tinha feito – Que ele seja o último dos escravos dos seus irmãos! Bendito seja o Senhor de Sem, e seja Canaã o seu escravo!

Assim terminam as referências a Noé, o homem mais justo aos olhos de Deus, que depois de uma noitada de embriaguez condenou o seu neto Canaã pelo facto de o pai do rapaz o ter visto nu e bêbado dentro de uma tenda. Somos todos, relembro, descendentes deste homem.

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1 comentário:

Mariana Fonseca Fernandes disse...

Muito bem.
Mais moralista que engraçadinho este, mas muito bom.

E é bom saber que o tal sinal de Deus agora é o símbolo do orgulho homossexual! xD
Cá pra mim depois daquele vislumbre do pai nu na tenda o Cam nunca mais foi o mesmo... xD