sábado, 31 de outubro de 2009

Bruxas e Cientistas

Feliz Halloween! (o que quer que isso signifique)

A SIC fez uma divertida reportagem com uma série de bruxos e visionários, que lêem búzios, vendem patas de coelho ou pele de anaconda para dar sorte e usam feitiços para afastar os males. Uma das bruxas, uma mulher de pinta suspeita e que usava uma espada e piscava imenso os olhos, falou que se sente perseguida; que a caça às bruxas continua, mas que a Inquisição é outra e está mascarada. Chamou esta bruxa à nova inquisição: “homens de ciência”, num tom conspiratório e brincalhão de quem acrescenta “esses idiotas”.

Isto irritou-me. Primeiro porque sou um jovem irritadiço, depois porque sou um céptico inveterado, e depois porque este tipo de “bocas” contêm uma hipocrisia enorme.

Não há nada de confirmável neste tipo de actividades. Um bruxo ou adivinho que leve dinheiro por fazer curas espirituais ou fazer previsões sobre o futuro é simplesmente uma fraude, pois nada confirma a veracidade dos seus “poderes”; a não ser, claro, que aceitem testá-los perante uma confirmação objectiva e racional. As “confirmações” vindas de gente que estava deprimida ou com problemas “espirituais” e que atestam a veracidade dos tais poderes místicos não são mais do que adeptos do Benfica a dizer que o seu clube é que jogo melhor que o outro, e que merecia ter ganho a taça.

Como fazer esta confirmação? Muito simples. Para aqueles que dizem prever o futuro, basta pedir-lhes previsões e comparar com o que realmente acontece; o que todos nós fazemos todos os anos, quando por alturas do Ano Novo as televisões se enchem de reportagens com “as previsões para o próximo ano”. Tudo coisas específicas, claro, do estilo: “alguém importante vai ser preso”, “vai haver um atentado terrorista muito grande” ou “vai haver um tufão”. Só aí vemos a debilidade destas previsões. Ninguém prevê grandes acontecimentos com o mínimo detalhe suficiente para demonstrar que sim senhor, houve mão mística naquilo.

E para os que fazem curas espirituais, exorcismos e todo o tipo de limpezas cósmico-psico-misticistas? Houve há uns anos uma reportagem interessantíssima, em que o jornalista levou uma fotografia retocada no Photoshop (na qual foi acrescentada uma estranha sombra espectral a um canto de uma sala) a um desses bruxos, queixando-se de assombrações em casa. O bruxo, com a fotografia retocada na mão, confirmou que sim senhor, estava a sentir ali qualquer presença e que a casa daquele senhor esta assombrada. É disto que precisamos: um teste simples e directo que demonstre a falsidade destas fraudes. Uma para-psicóloga estava no Programa da Júlia (arrepio) no outro dia, a explicar que este tipo de coisas só funcionam para quem acredita nelas. É uma coisa simples chamada “sugestão”, a que também se chama “efeito placebo”. Alguém que tem uma vida que é uma desgraça e encontra esperança num bruxo que lhe diz que andam por aí espíritos terríveis e invejosos e que, por uma simbólica quantia, o pode libertar desses males, vai com toda a facilidade acreditar e alimentar esta crença. É o mesmo sistema que alimenta os homeopáticos ou as energias dos cristais.

É aqui que entram os “homens de Ciência”, a nova Inquisição. Esses tipos de demoníacas pretensões que tentam acusar os bruxos de serem aquilo que são: pessoas a brincar com os sentimentos das outras. Esses convencidos, com a mania que podem provar coisas e tirar valor ao mundo do fantástico, ou desmentir aqueles que nascem com “dons especiais”.

Aqui entra a hipocrisia de que falava há pouco. Sabem quem são esses homens de ciência? São os mesmos que, há centenas de anos atrás, não se conformaram com as crendices populares e religiosas e procuraram explicar o mundo à nossa volta. São aqueles que garantiram que em 600 anos passamos da Idade Média, repleta de pandemias inexplicáveis e enormes taxas de mortalidade infantil, chegámos a uma era de tecnologia que alimenta milhões, que nos levou à Lua e que nos deu as armas para curar doenças que matavam populações inteiras. São aqueles que, através da sua metodologia objectiva que colocam em prática todos os dias, nos deram todo o conforto que temos hoje em dia, desde os frigoríficos, as águas canalizadas, a luz eléctrica, os televisores, os satélites de comunicações ou conhecimentos de medicina. São aqueles que garantem que o nosso carro não vai rebentar, ou que, através de testes em que a opinião ou subjectividade não têm lugar, garantem que o medicamento que tomamos para as dores nas costas nos cure, ao invés de provocar uma reacção cutânea ou diarreia. São aqueles que nos deram toda a tecnologia actual, sem a qual não haveria medicina, comunicações, transportes ou conhecimentos sobre o mundo em que vivemos.

Esta “Inquisição” de que fala a ignorante bruxa na reportagem é a mesma que garante o funcionamento de praticamente TUDO o que nos rodeia. Se andamos de carro ou de avião e chegamos ao nosso destino a horas, se ligamos a TV e obtemos imagem e som, se tomamos um medicamento e ficamos curados, ou se vamos ao frigorífico tirar um bife e ele não está estragado; tudo isto é graças ao mesmo método científico a que esta besta chama “inquisição”. Tudo isto é graças aos homens que explicam o mundo e encontram alternativas, e que exploram a natureza de forma a compreendê-la, domá-la e alterá-la para nosso benefício, desde a mais pequena e simples bactéria até ao movimento perpétuo dos planetas.

É hora de deixarmos de tratar a Ciência como um conjunto de tipos chatos que andam por aí a estragar as ilusões às pessoas, e começar a dar-lhe o valor que merece. Há muito que a Ciência não pode fazer, desde dizer às pessoas o que pensar ou impingir moralidades; mas pode, isso sim, fazer-nos entender o mundo e dar-nos o prazer do conhecimento ao invés da prisão da fantasia. Viver em ilusão é fundamentalmente viver em ignorância, e nada é mais ignorante que reduzir o conhecimento humano a uma coisa sem importância. Se quiserem ser voluntariamente ignorantes, força; mas não entrem na hipocrisia. Dêem à Ciência e aos cientistas de todo o mundo e de toda a História o valor que merecem; devemos-lhe muito mais do que conseguimos imaginar.

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O Trajectória Aleatória dá os parabéns (atrasados)...

... a uma das suas leitoras e colega de letras do autor que aqui vos escreve. Parabéns Maria das Neves Fernandino!

Estou a brincar.

Parabéns Madalena!

(para quem não sabe, a Madalena também tem blog; eu queria colocar aqui um link para o respectivo, mas não sei se ela se ofende. Assim, vou perguntar-lhe e logo darei conta da resposta. Fica a mensagem de parabéns)

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Comunicado

Caros leitores:

Hoje não há Cereal Killer, foi adiado para amanhã. A razão é razoável e compreensível: estou com demasiado sono.

Atenciosamente,
Eu

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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Micro conto #7

- Tens um isqueiro?

Sim, ela tinha. Estendeu-lho. O homem acendeu o cigarro e perguntou:

- Não te cheira a gás?

Sim, cheirava. A explosão foi impressionante.

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O Cereal Killer (11 de 12)

Jovial Trestonho puxou as rédeas do seu peru, e parou com uma ligeira derrapagem à porta do dentista. Da porta surgiu um indivíduo que trazia um gigantesco penso na bochecha esquerda, e que, apesar da elevada idade, uns trinta anos, diria Jovial, chorava abundantemente.

- O meu siso! - gritava, enquanto procurava um táxi que o levasse a casa.

- Este é o único dentista da região - disse o capitão. À porta, uma tabuleta. Jovial aproximou-se.

- Bom dia - disse ela, amigavelmente.

- Bom dia - disse Jovial, enquanto a lia: “Beliche Gerbicó, dentista e serralheiro”.

- Poderá este Beliche ajudar-nos? - perguntou-se Jovial, enquanto acompanhava o capitão em direcção à porta do consultório.

- Oh, claro que sim, o senhor doutor é um profissional - disse a tabuleta - Tem a menor taxa de mortalidade do país, veja bem!

Entraram no consultório, e sentados numa sala de espera pequena e sem ventilação estavam três pessoas. Um homenzinho pequeno, que parecia ter dentes de mamute que não paravam de crescer, conversava com uma senhora de idade, que usava uma máscara para esconder a falta de dentes; e um velhote, pequeno e de cartola, perseguia a sua dentadura, que fugia dele por cima das cadeiras da sala de espera. A dentadura foi aterrar com um salto na cabeça da senhora de idade, e arrancou-lhe a peruca. A senhora, assustada, tentou tapar com as mãos o vexame da careca, e destapou a boca, revelando apenas um par de dentes, e muito sujos por sinal.

Jovial e o capitão dirigiram-se à recepção, e uma mulher de longos cabelos vermelhos veio atendê-los.

- Bom dia, têm consulta marcada? - perguntou ela, enquanto comia amendoins e jogava ao solitário no computador.

- Somos da autoridade e precisamos de uma lista de todos os doentes com cáries ou inflamações dentárias que o senhor doutor atendeu nos últimos meses - disse o capitão, profissionalmente, e esquivando-se com um salto em câmara lenta da dentadura que saia a voar da sala de espera. A mulher dos amendoins arrotou ligeiramente, pediu desculpas e depois acrescentou:

- Vão ter de falar com o senhor doutor sobre isso. Eu trabalho aqui há pouco tempo e não sei nada dessas coisas...

Ela levantou-se, abandonou o seu jogo do solitário, e foi à sala do senhor doutor ver se este os podia atender.

- Sinto que estamos cada vez mais perto do assassino, Jovial! - disse o capitão, pegando na caixa de amendoins largada pela mulher, e retirando um amendoin com o intuito de o comer. Mal o amendoin saiu da caixa, um alarme disparou e a caixa fechou-se à volta da mão do capitão.

- Au!- exclamou, com razão. A mulher apareceu, agarrou numa revista, subiu para cima de uma cadeira, enrolou a revista e arremeçou-a de encontro a uma câmara de vigilância. O alarme parou, mas a caixa continuou a morder a mão do capitão.

- Tire-me isto da mão! - berrava ele, quase a chorar. A caixa resmungava, enquanto enfiava cada vez mais os seus dentes afiados na carne do capitão. A mulher deu um safanão na caixa dos amendoins, e esta saiu disparada a voar, encontrando no meio do voo a dentadura. Os dois objectos chocaram um com o outro, e caíram no chão. A dentadura ficou desdentada de um dente, e a caixa perdeu alguns amendoins, agora espalhados pelo chão; de seguida, começaram a ofender-se mutuamente, e foi preciso o velhinho agarrar na sua dentadura e a mulher dos amendoins agarrar na caixa para os separar. Entretanto a peruca da senhora desdentada da sala de espera decidiu que queria também alguma diversão, e atirou-se para cima da cara do velhinho que, assustado com aquela investida da peruca, largou a dentadura. Esta, livre, atirou-se para cima da caixa, que entretanto mordeu a mão da mulher dos cabelos vermelhos, libertando-se e arrancando-lhe um braço. A dentadura e a caixa recomeçaram a luta, e a peruca, satisfeita consigo própria, voltou a planar para cima da careca da mulher desdentada, que desmaiara com tanta emoção.

Jovial, surpreendido com tudo aquilo, emprestou por momentos o pano de cozinha que tinha enrolado na sua mão ao capitão, e tentou apanhar o braço da mulher do cabelo vermelho que, indignado, queria agora agredir a caixa de amendoins. O duelo era agora a três: a dentadura tentava morder a caixa, que tentava fugir do braço, que tentava afastar a dentadura para que apenas ele pudesse sovar a caixa de amendoins.

Foi preciso o capitão recompor-se da mordedura para que, juntamente com o velhinho e Jovial, conseguisse separar os três objectos. A mulher de cabelo vermelho, sangrando abundantemente, desmaiara de fraqueza, e foi preciso chamar uma ambulância. A mulher foi rapidamente reanimada, e o braço re-colado na articulação. O capitão chamou reforços, e quer a caixa de amendoins quer a dentadura foram para a esquadra prestar declarações. A peruca, divertida, consolou o velhinho, que ficara sem dentadura, e demorou bastante tempo até que tudo voltasse à normalidade, e até que Jovial, de novo com o pando de cozinha enrolado na mão, e o capitão, com duas talas e uma ligadura à volta da mão mordida, entrassem na sala do dentista.


(amanhã não percam um duplo episódio, o último desta impressionante novela policial que tem feito as delícias dos miúdos aos graúdos. Convidem os amigos, comprem pipocas e refrigerantes e preparem-se para a conclusão do mistério por detrás do... Cereal Killer!)

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Momento de Poesia: "Arrota Perdiogota"

Arrota Perdigota

O notário não deixou

Assim ficou

Maria das Neves

Na certidão de nascimento.

E sua mãe, brandindo aos céus

Perdicota nascida e criada

Vilipendiava a burocracia

Do país

Porque, segundo diz

Perdiota queria que fosse

Sua filha

E não a deixam.



(os americanos têm uma forma de descrever o que acabou de acontecer neste Momento de Poesia. Chamam-lhe "hitting a new low")

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terça-feira, 27 de outubro de 2009

Micro conto #6

Há um momento realmente belo na vida de um homem, quando a sua esposa se dirige a ele e lhe diz por entre as lágrimas de absoluta felicidade: “Estou grávida! Não é maravilhoso?”

No caso dele não era nada maravilhoso, não senhor. Ele era estéril.

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Momento de Poesia: "O Coentro"

Coelho, coelho, coelho
De orelhas levantadas
Pontiagudas almofadas
Rumina calmamente o coentro do almoço

Surpresa das surpresas, claro
Quando do céu azul e claro
Desce o chumbo incandescente

Pontaria certeira, esta
Que envia em linha recta
Recortando a pradaria
Uma bala

Coelho, coelho, coelho
De raiz vegetariana
Cheira agora a carne viva
E a sangue cru e quente

O coentro cai ao solo
Mastigado até metade
O coelho deixou família
O caçador ganhou jantar

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Cidadania

A mulher grávida estava a tentar escolher entre dois aromas completamente parecidos de shampoo. Um era de baunilha e abacate, o outro de baunilha e canela. Com estas misturas de hoje em dia era preciso um olfacto canino para encontrar uma diferença significativa e que justificasse os 34 cêntimos a mais no preço do de canela e abacate, pelo que a mulher grávida puxou dois frascos de baunilha e canela para dentro do cesto de compras e prosseguiu para os lacticínios.

Ia levar leite, iogurtes naturais, uma alface, um pacote de batatas fritas com sabor a presunto, dois pacotes de farfalle e quatro latas de atum, para à noite fazer uma massa no forno. Passou pelo corredor das carnes, decidiu levar mais uns entrecostos, cumprimentou a senhora da peixaria que já a conhecia de vista, e que lhe perguntava sempre pelo bebé, ao que ela respondia:

- Já dá pontapés, o malandro! – seguido de um sorriso maternal.

Na caixa prioritária ela colocava-se em posição de espera, o peso do corpo em cada perna alternadamente, a pega do cesto das compras segura por um braço. O homem à sua frente fez-lhe sinal para passar, ela sorriu, agradeceu e recusou o convite, mas ele insistiu. A senhora à sua frente também, e assim a mulher grávida estava a pagar em menos de trinta segundos. A mulher da caixa também já a conhecia, e estendeu-lhe o troco, a factura e um sorriso derretido, perguntando pelo bebé.

- Já dá pontapés, o malandro! – respondeu a mulher grávida, balançando a barriga, um saco de compras de cada lado.

O parque de estacionamento estava o mais puro caos, e enquanto carros em fila indiana procuravam lugar à sombra e o sol se reflectia nas centenas de veículos alinhados, a mulher grávida arrastou-se de costas inclinadas e barriga pesadona até aos lugares especiais. A meio caminho, um homem simpatizou com ela, ofereceu-se para a ajudar com os sacos, e enquanto lhe carregou as compras até ao carro foi comentando que a sua mulher também estava grávida, e que podia perceber melhor que ninguém as dores nas costas e os desejos nocturnos. Ela atirou-lhe um sorriso confortável e um obrigado cheio de sinceridade, enquanto procurava as chaves do carro.

Enfiou as compras nos lugares traseiros e foi sentar-se no banco da frente, passando com agilidade por entre o banco e o volante como um homem gordo a tentar caber por uma porta aberta. Fechou a porta, suspirou fundo. Olhou em volta. Os lugares destinados a grávidas e pessoas portadoras de deficiências físicas, marcados com uma pequena bandeirinha metálica com um boneco branco em fundo verde de uma mulher grávida e uma cadeira de rodas, estavam praticamente vazios. Eram os mais perto da entrada, e o segurança estava sempre de olho para ver se não eram ocupados por gente indevida. Pôs o carro a trabalhar, fez marcha atrás, e entrou na eterna fila indiana de carros que procuravam lugar. Andou no pára arranca, à medida que uns encontravam lugar e outros prosseguiam para outra volta pelo parque, até chegar à saída e meter o carro pela rampa de acesso.

Acelerou cuidadosamente pela rua, deixando o supermercado para trás. No primeiro sinal vermelho que encontrou levou a mão debaixo da camisola, tirou a almofada redonda e gorda e atirou-a para o banco de trás, mesmo ao lado dos pacotes de leite e das alfaces.

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O Cereal Killer (10 de 12)

Chegados ao segundo quiosque, o capitão saltou do porco, que continuava zangado com ele, e bateu à porta do quiosque. A porta abriu-se, e de lá saiu um homenzinho pequeno, sem dentes, despenteado e completamente nu.

- Bons dias!

- É o proprietário do quiosque? - perguntou o capitão.

- Sim.

- Bom dia, somos da autoridade e queríamos fazer-lhe algumas perguntas...

- Por quem sois, oh colossal e brioso capitão! - disse o homem, endireitando o tronco e agitando no ar uma escova de dentes como se de uma espada se tratasse - Serei eu digno de vos congratular com refutações a tais perguntas?

O capitão, surpreendido, virou-se para os agentes da autoridade em busca de ajuda, mas estes já lá iam ao fundo da rua, entretendo-se a atirar os boomerangs para os perus que, incrivelmente, ainda não tinham descoberto como funcionavam. O capitão virou-se então para Jovial.

- Bom, achamos que nos poderá ajudar numa investigação - disse Jovial.

- Oh, uma investigação? Averiguação? Devassa? Pois bem, assim o espero, e assim o desejo! Será a minha espada capaz de vos apoiar nessa odisseia pelo conhecimento superior?

O capitão limpou os ouvidos com a unha do dedo mindinho para tentar perceber melhor.

- Talvez, tavez...- respondeu Jovial.- Diga-me, aqui no seu quiosque tem muita gente a comprar a revista “Caramba”?

- Caramba? Ah, esse glorioso desfile de ingenuidade amorosa e falso romantismo! Esse hino ao amor mais artificial que é o do homem pela má-língua e pela cítica ácida ao seu irmão! - proclamou o proprietário do quiosque, agitando a escova de dentes no ar. Agora dava alguns passos de dança, como se estivesse a actuar numa peça de teatro, e golpeava inimigos invisíveis com a sua espada imaginária.

- Sim, essa mesmo - disse Jovial. O capitão desistira, e dirigia-se agora para a pastelaria mais próxima, onde contava poder comer um pudim caseiro.

- Pois digo-lhe senão a verdade ao afirmar que todos os dias, primavera atrás de primavera, são abundantes os compradores de tal magazine! Esperai apenas um momento, nobre cavaleiro da autoridade! - o proprietário do quiosque entrou e voltou a sair pouco depois, vestido de cavaleiro. Usava uma caixa de cartão que dizia “Lexus Limpa-Vidros” na cabeça, como capacete, e usava uma estranha vestimenta, também de cartão, onde desenhara com um marcador as figuras do cinto, da cota de malha e das calças. Usava ainda botas feitas de um pano muito parecido com aquele que estava enrolado na mão de Jovial.

- Olá - disse o pano de cozinha nas mãos de Jovial.

- Olá - disse o pano nos pés do homem do quiosque.

- Agora sim, estou preparado para tão descomunal odisseia! - disse ele, a agitar a escova de dentes.Depois, reparou no peru de Jovial- Oh! Um galiforme!

- Tecnicamente sou da família dos galiformes...- murmurou o peru, e continuou a pastar.

- Afastai-vos, diabólico orador! Serdes um demónio que se tem apoderado deste pobre animal! - exclamou o proprietário do quiosque.

- Ele é mesmo assim - disse Jovial, pacientemente.

- Mesmo assim, nobre cavaleiro? - exclamou o proprietário do quiosque.- É uma entidade devoradora de almas! - tentou acertar com a escova de dentes, mas a sua inacreditável falta de pontaria traiu-o, e a escova voou na direcção contrária a do peru e foi arrancar uma peruca do cimo da careca de um senhor que por ali passava, que imediatamente se escondeu dentro de uma entrada de esgotos para poder recolocar a peruca com maior privacidade.

- O teu corcel está possuído! Reparai, cavaleiro, o demónio desviou a minha espada! - reclamou.

- Não se preocupe, tenho a certeza que o meu corcel ficará como novo... Eu preciso de lhe fazer algumas perguntas - insistiu Jovial.

- Fazei-as! – disse o proprietário do quiosque, olhando de esguelha para peru de Jovial.

- Há alguma forma de saber quem comprou no seu quiosque a revista “Caramba” juntamente com o faqueiro promocional?

- Oh, o faqueiro? – berrou - O débil faqueiro de tão terrível má qualidade?

- Sim, esse mesmo.

Entretanto o capitão saiu da pastelaria com um guardanapo na mão e restos de pudim junto à entrada das narinas.

- Bem, quem levaria consigo aquele mal afamado faqueiro? Apenas um louco, nobre cavaleiro, apenas um demente! Mas talvez, se os Deuses têm sido meus intercessores, este submisso aprendiz de espadachim que aqui vedes diante teus pés, que não tenho a coragem nem ousadia de sequer beijar, possua em sua oficina uma lista de clientes que, no seu delírio, tenham comprado tal coisa essa de que faleis, juntamente com a magazine que parece tanto te interessar!

O homem desapareceu dentro do quiosque e as portas fecharam-se. O quiosque olhou timidamente para Jovial e para o capitão, que acabara de se limpar.

- Têm de desculpar... ele é assim mesmo desde pequeno. Um dia deu-lhe para ler o Don Quixote e desde aí... - o quiosque deitou a língua de fora e fez algo parecido com “Pruff”. As suas portas abriram-se de novo e o homem reapareceu, com um bocado de papel nas mãos.

- Ai ai, rogarei todas as noites e dias aos Deuses que me abençoaram, e agradecerei por este maravilhoso momento! Aqui tendes, valoroso cavaleiro, a lista dos loucos! - o homem estendeu a Jovial uma lista de nomes - Aí espero que esteja o maldito que procurais, cavaleiro, pois pareceis um bom homem e desejo que encontres aquilo que buscais! Sobe, cavaleiro, sobe às mais altas montanhas, desce aos mais escondidos subterrâneos do Mundo velho e antigo, mas quando a tua odisseia terminar e te encontrares no paraíso com os Criadores, imploro que intercedeis em minha beneficência! Pedi-lhes que me guardem um lugar com eles, nos seus tronos de ouro e marfim importado! Dizeis-lhes que sou bom, virtuoso e justo. Contai-lhes de como a minha humilde ajuda te conduziu pelo caminho de rocha, areia e pó, um caminho que só os valorosos como vós caminham, e que graças a esta minha submissa achega vós haveis encontrado o que procurais! Ai, Deuses, atendam a este glorioso cavaleiro, de quem sou servil criado, para toda a mais profunda eternidade! - o homem do quiosque fez uma vénia, e os transeuntes pararam para aplaudir, atirar flores e gritar “Bravo!”. O homem do quiosque rodopiou, fez outra vénia, agradeceu com um aceno e mergulhou para dentro do quiosque, fechando as portas atrás de si.

- Fantástico, uma lista! - entusiasmou-se o capitão - Aposto que o nome do nosso assassino está aqui no meio!

- Quanto? - perguntou o peru de Jovial, a extrair o porta-moedas do bolso.

- Como assim?

- Quanto é que aposta?

- Apostar com um peru?

- Sim, qual é o problema?

- Gosto de desafios; cá vai! - disse o capitão, também a tirar o porta moedas do bolço - Três moedas em como o nome está aqui nesta listinha!

- Três moedas em como o assassino está fora dessa lista - disse o peru.

- Apostado!

Cumprimentaram-se, para soldar a posta. O capitão subiu para cima do seu porco, que falhou por pouco a tentativa de lhe dar uma marrada. O capitão pediu-lhe desculpas mais uma vez, mas o porco relinchou que não. Jovial montou no seu peru, e os agentes da autoridade regressaram da sua brincadeira com os seus perus, um deles com um grande galo perto do bico, por ter sido golpeado por um boomerang em pleno voo.

- Vamos lá então, amigos! - disse o capitão. Fez uma continência, e os agentes responderam-lhe com a mesma moeda - O que devemos fazer a seguir? - berrou. Os agentes da autoridade contorceram-se em cima dos seus perus, como que a ajeitar o rabo no cimo da ave.

- Devemos claramente visitar cada um desses clientes e investigar onde estiveram no momento dos crimes - disse um dos agentes da autoridade, e o outro acenou rápida e afirmativamente com a cabeça.

- Muito bem! - exclamou o capitão - Jovial, alguma ideia?

Jovial sorriu de contentamente. Toda aquela história policial estava a entusiasmá-lo, e talvez por isso teve uma brilhante ideia. Limpou a garganta com uma fungadela sonora, penteou-se ligeiramente e deixou os agentes da autoridade em suspence mais alguns segundos.

- Capitão - disse, finalmente - Proponho que procuremos o dentista da região!

Os agentes da autoridade soltaram um “Ah!” de admiração, mas a sua cara de incompreensão não se alterou; e os seus perus pararam de pastar por momentos para ouvir Jovial.

- O dentista? - perguntou o capitão - Porquê?

- Repare: ontem concluímos que o assassino devia ser consumidor de cereais de baixo valor nutritivo, porque assassinara apenas caixas de cereais integrais. Portanto, se o homem que procuramos consome cereais pouco saudáveis e come com faqueiros promocionais de baixa qualidade, podemos ter quase a certeza que não dá grande valor a uma alimentação saudável, e que quase de certeza visitou um dentista pelo menos no último ano com qualquer tipo de cáries ou inflamações! - Jovial sentia um orgulho acutilante, e o discurso saíra-lhe tão bem que os transeuntes paravam e aplaudiam; um até atirou uma moedinha aos pés de Jovial, enquanto outro lhe pedia para este lhe autografar a testa com um marcador.

- Genial, Jovial! - disse o capitão - Para o dentista, então!

E o capitão deu com o chicote no porco, que reclamou em oinc oincs, e subiu a rua, Jovial e os agentes da autoridade atrás de si.

(continua)

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O Cereal Killer (9 de 12)

Jovial cavalgava o seu peru pela rua abaixo ao lado do capitão, que oferecia ritmadas chicoteadas ao porco, fazendo-o avançar.

- Meu amigo - dizia o capitão - já sei onde vamos começar a investigação.

- Deveras? - perguntou Jovial, que reparara que o capitão gostava muito desta palavra.

- Sim. Pensei que, se o assassino está a usar um faqueiro de má qualidade da revista “Caramba”, a única forma de o encontrar será descobrir onde é que ele comprou a “Caramba” na altura em que estava a coleccionar o faqueiro. Por isso, fiz uma lista de quiosques que vendem a “Caramba” por aqui. Tome - O capitão equilibrou o chicote no cimo da cabeça com cuidado e tirou de dentro do bolso um pedaço de papel, que estendeu a Jovial.

- São apenas quatro! - disse Jovial - Começamos por onde?

- Aí é que está o melhor, amigo Jovial! Um deles ardeu há pouco tempo, e outro fugiu com a mulher do seu proprietário. Por isso, só temos dois para visitar!

- Genial, capitão!

- Digo-lhe, Jovial, com o meu faro e a sua inteligência, este assassino não pode dormir descansado!

Chegaram ao primeiro quiosque, que lhes fechou as portas e disse que não tinha nada a declarar.

- Isto é uma investigação policial! - exclamou o capitão, enfurecido. Nunca gostara de quiosques, muito menos de quiosques engraçadinhos como este.

- Têm um mandato? - perguntou o quiosque.

- Não, mas só queremos fazer umas perguntas! - disse Jovial, tentando acalmá-lo.

- Não!

- Por favor, precisamos da sua colaboração! Estamos a tentar apanhar o assassino dos cereais! - disse Jovial. Em resposta, o quiosque fechou ainda mais as portas, e agitou-se, virando-lhes as costas.

- Não tenho nada a dizer!

O capitão, danado, deu um incrível chuto no ar e, sem querer, acertou no focinho do porco, que relinchou. O capitão pediu-lhe desculpas, mas o porco virou-lhe as costas, como o quiosque, e começou a roer os atacadores de um senhor que por ali passava.

- Nada feito, temos de tentar o segundo quiosque! - disse Jovial, a subir para o seu peru.

- Malandro! - berrou o capitão, agitando um punho no ar, e o quiosque fingiu não ouvir.

(continua)

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domingo, 25 de outubro de 2009

O Cereal Killer (8 de 12)

No dia seguinte, Jovial Trestonho acordou no meio da rua, estendido à beira de uma grande imundície de cão. Ao tentar, na noite anterior, entrar em casa, a porta recusara abrir-se, e aconselhou-o a procurar um advogado, pois todos os objectos de sua casa iam levá-lo a tribunal. Que remédio senão dormir na rua? Acordava agora com uma imundice de cão ao lado da cabeça, e quase a agarrou pensando tratar-se da almofada. Ergueu-se, e reparou que estava com dores nas costas. O chão conseguia ser extremamente desconfortável quando queria!

- Bem feito - disse o chão.

- Porquê? - perguntou Jovial, quase a pisar a imundice de cão.

- Todos os objectos da aldeia já sabem do que fizeste! - uma pedrinha voou do chão e veio bater na testa de Jovial, desprevenido.

- Au!

- Hum!- disse o chão, e virou-lhe as costas. Por momentos, Jovial esteve de pé sobre um gigantesco vácuo, mas o chão regressou para debaixo dos seus pés para se desviar da linha de mira de um lenhador que por ali passava. Tudo indicava que o lenhador não tinha casa de banho em casa, pois aliviou-se ali no chão. Jovial fez uma careta, e encaminhou-se para o local onde combinara encontrar-se com o capitão, também ele (Jovial, não o capitão) com vontade de urinar.

Momentos depois avistou o café, e reconheceu o porco preto e os dois perus estacionados à porta. Um deles, em segunda fila, tinha um bilhetinho no bico, que Jovial identificou como sendo uma multa; e ao olhar para as orelhas do porco, reparou num folheto publicitário a uma esfregona eléctrica. Interessado, aproximou-se, leu o folheto mas desinteressou-se rapidamente. Era demasiado cara, mesmo a prestações. Entrou no café e viu o capitão e os dois agentes da autoridade que tomavam o pequeno almoço. O capitão preparava-se para atirar uma bigalha de bolo de arroz ao ar e apanhá-la com a boca. Atirou-a, deixando os agentes da autoridade no completo suspence, mas a meio do voo a migalha deu uma de sua graça, e mudou a sua trajectória, indo aterrar dentro de uma chávena de chá. Riu à gargalhada, enquanto se afogava no chá, assim como os agentes da autoridade. O capitão corou de embaraço, e avistou Jovial a entrar.

- Jovial, bom dia! - disse, a limpar a boca com um daqueles guardanapos de papel de má qualidade que há nos cafés.

- Bom dia, capitão.

- Toma alguma coisa?

- Um café seria o ideal.

- Só?

- Com natas.

- Claro, claro... - disse o capitão, e aproximou-se do balcão para fazer o pedido. O empregado ouviu atentamente, e começou a chorar. O capitão perguntou-lhe o que se passava, e Jovial percebeu que se tinham acabado as natas.

- Deixe lá isso, não há de ser nada...- dizia o capitão, consolando o empregado com palmadinhas nas costas.

- Eu tomo um café simples, não há problema...- disse Jovial ao empregado. Este limpou as lágrimas e preparou um café normal, mas ao ver que se tinham acabado os pacotes de açúcar cometeu suicídio dentro do lava-louça.

- Pobre coitado... - disse o capitão - Devia estar numa carga de nervos...

- Ele só queria servir o cliente o melhor que podia - disse outro empregado, a olhar tristemente para o cadáver do colega - Era um bom rapaz.

- Sinto-me culpado... - disse Jovial, a sentar-se num banco. A migalha de bolo de arroz continuou a sua natação sincronizada dentro do chá, mas pouco tempo demorou até que se desfizesse.

- Incrível, só mortes! - exclamou o capitão, quando uma senhora de idade e sem dentadura bebeu o chá de uma vez.

- Vamos para um sítio mais calmo, Jovial. A nossa investigação começará hoje!

Saíram do café, e os agentes da autoridade subiram para os seus perus.

- Caramba! - disse Jovial. – Esqueci-me do peru!

O capitão olhou para ele de cima do seu porco.

- Deixe lá, eu dou-lhe boleia.

Mas, para surpresa de Jovial, o seu peru com defeito saiu de dentro do bolço detrás das calças.

- Bom dia a todos - disse, a mastigar um pouco de erva do dia anterior.

- Fantástico! - disse um dos agentes da autoridade, a rasgar a multa que o seu peru tinha no bico.

- Fala e cabe dentro dos bolsos das calças! - disse o outro agente da autoridade - Quem me dera ter um peru desses...

- Também eu... - disse o outro agente da autoridade. O seu peru começara a pastar.

- Quando acabarmos esta investigação tentaremos arranjar uns perus novos... - disse o capitão, e um sorriso iluminou-se na cara dos agentes da autoridade.

- Já tirou os restos de banana do posterior? - perguntou o peru de Jovial, e os agentes da autoridade riram a bom rir.

- Ah... cof... hum... bem... ah... vamos a isso, então! - resmungou o capitão, envergonhado. Deu com o chicote que trazia sempre consigo no rabo do porco, que relinchou e começou a correr. Os agentes da autoridade seguiram-no, a bordo dos seus perus, e Jovial montou o seu peru e seguiu-o também.

(continua)

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Cartas para Andrómeda



Querida Tia,


Cheguei bem, e estou confortavelmente instalado numa casa tipicamente humana. A aterragem foi bastante complicada, mas tudo se resolveu. Finalmente tenho algum tempo para lhe escrever, apesar de estar bastante ocupado com o Curso.

Gostava tanto que aqui estivesse! Tenho a certeza que ia adorar os terráqueos. São criaturas fascinantes. Tinha lido muito sobre eles, mas não o suficiente para me preparar para um choque tão grande. Tia, imagine só: têm dois olhos! Não estou a brincar, é verdade! Ao que parece os seus olhos são umas bolas brancas cheias de pus, com a qual observam o mundo. Parece que também vêem cores e texturas e todas essas coisas, mas captar radiações não é com eles. É engraçado vê-los de tão perto, com todas as suas limitações físicas e mesmo assim tão felizes!

Eu explico-lhe, Tia: os terráqueos, quando estão felizes, dobram os músculos de uma coisa chamada “boca”, que é um buraco por onde falam, comem e vomitam. Se o fazem tudo ao mesmo tempo é uma boa pergunta, tenho de colocar esta questão ao meu professor de Cultura Humana. De qualquer forma, quando estão felizes, os terráqueos dobram a boca e esticam-lhe os cantos, e a isso se chama sorriso. Pelo que me explicaram é um bom sinal, se sorrirem para nós. A sua boca tem uma forma estranha e é cor de rosa. Parece um daqueles ghljkos, que lhe estão sempre a entrar no estábulo e a assustar os animais!

De qualquer forma os terráqueos sorriem bastantes vezes, por tudo e por nada. Têm uma coisa ridícula chamada televisão, que parece uma fgnjta só que com uma janelinha à frente e sem os cheiros todos. É como estar a ver para dentro de um aquário. Os humanos sorriem imenso com essa coisa da televisão, e passam horas agarrados àquilo. Como ainda estou com algumas dificuldades em Linguagem Humana, ainda não consigo traduzir grande parte do que dizem. Basicamente falam muito dos políticos, que são os seus governantes. Ora aí está mais uma coisa engraçada!

Sabe, tia, os terráqueos têm uma forma de governo estranhíssima. Primeiro todos os humanos, durante um dia inteiro, vão votar. Ao votar, estão a dizer a um papelinho qual o governante que querem. No entanto, ao que já consegui perceber, não só ganham sempre os mesmos como ganham sempre aqueles que os terráqueos parecem gostar menos. Assim, há vários nomes para os governantes: político, primeiro ministro, ladrões, e outro que não me lembro. No entanto isto é estranho, porque segundo o meu Dicionário de Linguagem terráquea, “ladrão” significa uma coisa totalmente diferente. Aliás, é um conceito que eu não consigo perceber. Ao que parece, os terráqueos tiram as coisas uns dos outros, e o que tira a coisa chama-se ladrão. Então um governante tira coisas aos humanos? Tenho de perguntar ao professor de Cultura Humana.

Bem, mas não cheguei a descrever os terráqueos. De certeza que a tia já viu imagens deles, com aquelas pernas estranhíssimas que se dobram e uma coisa esquisita com tentáculos na ponta com que agarram nas coisas. Mas há uma coisa ainda mais estranha: sabe, tia, aqui os humanos dividem-se em dois grupos principais: os homens e as mulheres. O meu professor de Cultura Humana explicou-me que um homem e uma mulher têm de acasalar para ter uma criança, e esperar 9 meses enquanto a criança é feita. E pior, a criança é feita dentro da barriga da mulher! Perguntei ao professor onde estavam os pântanos para o acasalamento, mas ele riu-se e explicou-me que os terráqueos acasalam preferencialmente na cama, que é um sítio mole onde dormem, ou então nos carros ou nas festas com muito álcool. Imagine, tia, acasalar no mesmo sítio que dorme! É de loucos!

Para além disso (estudei hoje em Cultura Humana, por isso está fresco na memória), os humanos têm um acasalamento estranhíssimo: o homem tem de fazer todo o tipo de favores à mulher, como levá-la a alimentar-se a um local especial ou dar-lhe flores (que são uns paus verdes com cores na ponta horríveis, e que deitam um pó chamado pólen que me faz alergias). Depois, a mulher tem de aceitar o homem e deixá-lo entrar em sua casa. Aí, o homem e a mulher tiram a roupa (ainda não lhe contem que os terráqueos andam sempre fardados? É estranho, porque nunca nenhum terráqueo mostra ao outro como é na realidade, e se um terráqueo tem de se despir à frente do outro é motivo de vergonha; a não ser para acasalar). Depois de tirarem a roupa, deitam-se na cama (a tal coisa mole onde dormem e acasalam) e começam a agarrar-se. Há uma reacção química qualquer, que faz com que uma parte do homem se comece a entusiasmar. A isto chamamos “erecção”. Essa parte do homem é estranhamente parecida com o nosso ghfjy. Está a ver, tia? Aquele que o nosso vizinho tem, e que no mês passado lhe furou o telhado porque estava zangado? É tal e qual.

Depois, o ghfjy do homem entra num buraco que a mulher tem, e eles começam a gritar. Abrem a boca, e em vez de sorrir berram que se fartam. O nosso professor mostrou-nos um filme chamado “Noite Escaldante Parte I” que ilustrava aquilo na perfeição. Espero que possamos ver os outros filmes da mesma série, porque foi muito interessante.

Depois da gritaria, o homem solta um pus horrendo para dentro do buraco da mulher, e ficam os dois a dormir juntos. No dia seguinte a mulher está grávida, o que significa que se não tomar um comprimido azul vai ter uma cria dali a nove meses. O nosso professor explicou-nos que é nesta fase que o homem pode casar-se com a mulher, que é uma forma de união entre eles para poderem pagar menos aos governantes, ou então fugir para outra cidade.


Portanto, imagine estar encostada ao tio durante uns 10 minutos e depois esperar nove meses por UMA cria. Uma! Como é que os terráqueos conseguem aguentar-se a ter crias de 9 em 9 meses? O professor de Cultura Humana explicou-nos que isto pode ser-nos estranho, mas que realmente eles cá não têm nem os pântanos nem os wrgh, pelo que assim não podem ter logo 20 crias como nós. É uma daquelas limitações biológicas estranhas, os terráqueos estão cheios delas. Outra coisa engraçada: sabia que as crias quando nascem não conseguem nem falar, nem andar, e que se der com a cabeça de uma cria na esquina de um armário ela pode morrer? Com tanto tempo de gestação seria de esperar uma cria mais resistente, mas é assim.

Eu perguntei ao meu professor como raio podiam ter sobrevivido os terráqueos durante estes anos todos sem terem muitas crias, e tendo crias tão fracas. Ele respondem que os humanos são muito protectores em relação às suas crias, e que sentem amor por elas. Eu perguntei-lhe o que é isso do amor, e ele explicou-me que é um conceito muito difícil de definir porque é um sentimento. Isso é matéria para a próxima aula, por isso logo se vê. Pode ser que lhe fale nisso noutra altura!

Como vai a quinta? De certeza que os campos estão lindos à medida que os frklyhj vão florescendo. Tenho muitas saudades de a ver, a si e aos animais. O Fglh já saiu de dentro do ovo? Mal posso esperar por vê-lo cuspir fogo finalmente!

Mando notícias em breve,
Sobrinho

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Micro conto #5

E a bala saiu de dentro da pistola com um estalo, voou até à cara dele e entrou-lhe pelo crânio adentro, alojando-se no seu cérebro de onde só viria a sair na mesa de autópsia. Haverá forma mais eficaz de ensinar alguém a não se meter com a máfia italiana?

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sábado, 24 de outubro de 2009

O Cereal Killer (7 de 12)

O médico legista chegou pouco depois, montado no porco com o capitão. Jovial reparou que este último mudara de calças. O médico legista era um velhinho curvado, de longos bigodes, cartola e uma bata branca cheia de manchas vermelhas suspeitas; parecia um talhante.

- Ora boa noite! - disse o médico legista, jovial, para Jovial. De seguida, colocou duas luvas de látex, que, pela textura, pareciam de fabrico caseiro.

- A minha mulher cozinha-as no forno - explicou o médico legista a Jovial.

- Fantático.

- Vamos lá então ver este pobrezinho... - disse o médico legista. Olhou para o cadáver da caixa de cereais estendida no chão e retirou, de um saco de plástico que trazia consigo, um pacote de leite e uma tijela. Pegou em alguns cerais que saiam da caixa aberta e meteu-os na tigela. A seguir, encheu a tigela de leite, tirou uma colher detrás da orelha e provou os cereais.

- Crunch, crunch, crunch...

- E então, senhor doutor? - perguntou o capitão, visivelmente orgulhoso das suas calças novas.

- Crunch, crunch, crunch - o médico apanhou mais uns cereais do chão e desta vez provou-os a seco - Bem, os cereais estão dentro do prazo de validade, e ainda estão estaladiços, por isso diria que o crime foi há menos de seis horas...

- Sim... e que mais? - perguntou, impaciente, o capitão, a limpar a testa com uma toalhita higiénica. Jovial reparou que o capitão tinha um pequeno resto de pudim no queixo, e concluiu que este teria ido jantar.

- O garfo tem restos de cereais no cabo, e se reparar há cereais espalhados à volta do cadáver. Acredito que foi um crime violento. Talvez até violentíssimo!

- Ah! - fez um dos perus, e continuou a pastar.

- Diga-me, doutor... é o mesmo assassino da outra caixa de cereais?

- Sim, sem dúvida. Repare, ele deixou um autógrafo.

Jovial olhou para baixo e viu, escrito em letras de massinha: “FUI EU”.

- Ah!- fez o porco, e relinchou.

- E com certeza que o assassino tem um faqueiro de má qualidade. Repare que... - começou o médico, a apontar para o garfo.

- Isso já sabemos, doutor. Apresento-lhe Jovial Trestonho, o nosso novo detective.

- A sério? - perguntou o médico, a mergulhar a colher na tijela e a elevá-la à boca, mastigando mais uns cereais. Cumprimentou Jovial - É servido?

- Não, obrigado.

- Não sabe o que perde. Estes cereais são do mais saudável que há. Crunch crunch crunch...

- Jovial vai ajudar-nos na investigação. Ele é inteligentíssimo! - disse o capitão, e piscou o olho a Jovial comprometedoramente. Por momentos, Jovial pensou que o capitão podia ser homossexual, e passou desde aí a ter mais cuidado ao elogiá-lo.

- A sério? Ainda b... UAU, o brinde! - o médico legista retirou com a ponta dos dedos um pacotinho de dentro da tigela, e abriu-o com evidente curiosidade – Bolas... já tenho... - disse, desapontado. O boneco saltou-lhe das mãos, berrou uma indecência em chinês, visto que era MADE IN CHINA, e correu pela rua abaixo, ou rua acima, dependendo da perspectiva.

- Bem, não vos posso ajudar mais - disse o médico legista - Podem dar-me uma boleia?

O capitão, prestável, conduziu-o a casa a bordo do porco preto, e regressou pouco depois, com outro bocado de pudim no queixo.

- Meu capitão, tem andado a comer pudim? - perguntou um dos agentes da autoridade, enquanto jogava com o seu peru ao boomerang.

- Ah... bem... ah... hum... Jovial! Alguma ideia?

Jovial pegou no garfo e olhou para ele. O garfo olhou para Jovial, e por momentos jogaram ao sério.

- Ahaha! - riu-se Jovial.

- Perdeste! - exclamou o garfo.

- Não valeu, o capitão estava a fazer caretas atrás de ti! - queixou-se Jovial. O capitão afastou-se, desentortou os olhos e meteu a língua para dentro.

- Bem... - disse Jovial - O médico disse que o faqueiro seria de má qualidade... E repare, capitão, que o garfo tem um relevo que diz “Caramba”... caramba?

- “Caramba” é uma revista feminina, senhor Jovial! Mas... o que é que isto tudo significa?

- O assassino tem um faqueiro da “Caramba”! - disse Jovial - Ou seja...

- Ele gosta de revistas femininas! - exclamou o capitão, e começou a dançar de alegria.

- Caramba! - gritaram os agentes da autoridade, e voltaram a lançar os boomerangs e a brincar com os perus.

- Amanhã continuaremos a investigação, Jovial - disse o capitão - estou cá com uma larica... - montou o seu porco preto e foi-se embora, e os agentes da autoridade continuaram a brincar com os seus perus (atiravam o boomerang, os perus corriam para apanhá-lo e antes de o conseguirem, o boomerang dava meia volta e voltava para as mãos dos agentes, que se riam alarvemente da figura de idiotas dos perus) e Jovial regressou a casa, lutando para que as suas calças não o atirassem com violência de nariz ao chão.

(continua)

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O Cereal Killer (6 de 12)

Jovial Trestonho caminhava sem convicção pela aldeia, tentando controlar as calças que insistiam em tentar fugir-lhe das pernas.

- Parem quietas! - dizia ocasionalmente.

Era já noite, e Jovial decidiu regressar a casa para comer qualquer coisa. Por isso, entrou pela rua que descia e subia, conforme o seu estado de espírito, que o levaria à rua de sua casa. No caminhou, parou para ver um padeiro tropeçar numa carcaça e estatelar-se no chão, o que lhe aumentou o bom humor. Mas a meio da rua, uma pequena multidão juntava-se. Jovial aproximou-se, ainda a debater-se contra as calças que teimavam em pregar-lhe rasteiras, e viu uma caixa de cereais estendida no chão. À sua volta estava o agricultor da beterraba pendurada no nariz, o caçador da medalha no sovaco, o velhinho da baguete, que agora se apoiava a um cão de cerâmica daqueles que se põem no jardim, um senhor com compridos bigodes que chegavam até ao chão e uma senhora vestida com uma fronha de almofada.

- É terrível! - dizia o agricultor, com a beterraba pendurada no nariz a oscilar perigosamente.

- Já é a segunda caixa de cereais a ser assassinada hoje! - lembrou a senhora da fronha, para depois se assoar ao vestido de uma transeunte.

- Chamem as autoridades! - exclamava o caçador, com a medalha a badalar. Via-se que estava nervoso pois, como se percebeu mais tarde, a caixa de cereais assassinada era sua amante. Ao saltitar pela rua enquanto chamava pelas autoridades, o caçador deixou cair a caçadeira de debaixo do braço e esta disparou um tiro certeiro que lhe furou a barriga.

- Golo! - gritaram os transeuntes, enquanto o caçador corria atrás do seu abdómen pela rua abaixo.

Entretanto, os agentes da autoridade viraram a esquina. Dois deles, montados em perus, abriam caminho por entre a multidão à sapatada. Atrás deles vinha o capitão, montado no seu possante porco preto, que relinchava a olhos vistos. Os agentes da autoridade aproximaram-se da caixa de cereais assassinada, e o capitão saltou de cima do porco, desta vez não aterrando em nenhuma banana. Jovial olhou para o seu traseiro, e reparou numa obstinada nódoa de banana que de certo ainda incomodava o capitão.

- Olhe, capitão! - disse um dos agentes da autoridade, a descer do seu peru - É um cadávere!

- Deveras! O segundo! - exclamou o capitão, com uma acrobacia de pernas que o fez desequilibrar-se e quase cair para cima de uma velhinha de muletas.

- Capitão, as autoridades têm de fazer alguma coisa! - disse o caçador, enquanto tentava recolocar o abdómen no devido lugar com fita-cola.

- Por favor, mantenham a calma! - disse o capitão, a coçar a cabeça com o chicote - Temos um terrível caso para desvendar, e aldeia nunca será segura até apanharmos o culpado!

Os transeuntes bateram palmas. O capitão continuou.

- Reparem! - baixou-se na direcção da caixa de cereais, expondo ainda mais a nódoa de banana no rabiosque, e apanhou um garfo cheio de sangue e restos de um qualquer enchido - O assassino usou uma faca no primeiro crime, e desta feita escolheu um garfo!
A multidão aplaudiu, mas parou logo a seguir por não perceber o que é que aquilo queria dizer.

- O assassino tem um faqueiro! - exclamou Jovial. Todos os transeuntes olharam para ele com admiração, e o velhinho do cão de cerâmica caiu de rabo no chão, tal foi a surpresa. O capitão olhou para Jovial.

- Deveras! - exclamou - Amigo, venha cá!

Jovial furou por entre a multidão, e quase bateu com a testa na beterraba do agricultor.

- Tenha mais cuidado! - disse o agricultor, ameaçando-o com uma enxada que retirou do bolço detrás das calças.

Jovial chegou perto do capitão.

- Como sabe que o assassino tem um faqueiro? - perguntou o capitão, encostando o seu nariz ao nariz de Jovial, perigosamente. Nesse momento, um pequeno pirilampo entrou pela narina esquerda do capitão, e ele espirrou com fogosidade. Um bocadinho de muco voou aerodinamicamente de encontro ao nariz de Jovial. A multidão riu. O capitão tirou uma toalhita higiénica de dentro do chapéu, limpou-se e de seguida limpou o ranho da cara de Jovial.

- Mil perdões... mas diga-me! Como adivinhou?

- Bem... no primeiro crime foi uma faca, agora um garfo... talvez no próximo seja uma colher! - a multidão soltou uma pequena exclamação de surpresa, e o capitão voltou a encostar o seu nariz ao de Jovial, desta feita com alguma distância.

- O senhor é esperto! Diga-me, o que faz na vida?

- Estou desempregado - disse Jovial.

- Deveras?

- Deveras! E olhe para isto - Jovial mostrou-lhe o pano de cozinha enrolado na mão.

- Como está? - cumprimentou o pano de cozinha, com um sotaque tailandês.

- Bem, mas a sua inteligência é deveras impressionante... Diga-me, o que sabe mais sobre este assassino?

- Bem... parece-me que gosta de matar cereais...

- Ah! - fez a multidão, surpreendia.

- Estamos portanto a lidar com um lunático!

- Repare, capitão... - observou Jovial. Aquela sua recentemente descoberta veia de detective estava a entusiasmá-lo – O assassino deve gostar de cereais pouco saudáveis, porque as suas duas vítimas foram caixas de cereais integrais!

- AH! - fez a multidão. Uma caixa de cereais integral que entretanto se aproximara desmaiou.

- Deveras impressionante! Amigo, proponho-lhe que me ajude a desvendar este crime! - disse o capitão.

Jovial ficou felicíssimo.

- Que honra, capitão!

- Sim, a honra é minha... - disse o capitão, a sorrir sarcasticamente para Jovial - Agente! Traga imediatamente um peru para este nosso novo detective! - ordenou o capitão, e um dos agentes montou o seu peru e desapareceu por uma esquina.

- Como se chama, amigo? - perguntou o capitão.

- Jovial Trestonho.

- Jovial, bem-vindo às Autoridades!

A multidão aplaudiu, e começou a dispersar. Fazia-se tarde. O agente da autoridade apareceu pouco depois montado num peru, e trazendo um embrulho debaixo do braço. Aproximou-se, colocou o embrulho nas mãos de Jovial e disse.

- Abra, abra!

Jovial rasgou o papel de embrulho e saltou lá de dentro um peru.

- Ena! - exclamaram os dois agentes da autoridade, a atirar serpentinas para cima de Jovial.

- Obrigado, também estou muito contente – agradeceu Jovial. Na verdade, começava a ficar com alguma larica.

- Amigo, este peru será o seu melhor companheiro! Por isso, dê-lhe comida, banho e presentes no Natal. Entendeu? - disse o capitão.

- Claro, capitão - Jovial tentou subir para cima do peru, mas este sacudiu-se e começou a pastar, enquanto cantava.

- The hills are alive, with the sound of gluglugluglusic! - e fez uma careta - Este pasto está rançoso!

- Oh! - fizeram os agentes da autoridade, e um deles quase caiu do peru.

- O seu peru está com defeito! - disse o capitão, surpreendido.

- E repare, capitão! As suas penas são a preto e branco!

Jovial olhou para as penas do peru e constatou que eram mesmo a preto e branco.

- Não se preocupem, eu adoro filmes antigos! - disse o peru, para ainda maior surpresa dos agentes da autoridade.

- Parece-me um belo peru - disse Jovial - No final da investigação poderei pô-lo no forno?

- Se quiseres uma refeição a preto e branco... - resmungou o peru, ameaçando Jovial com uma bicada.

- Amigo, podemos mandar trocar esse peru por outro em condições! - disse o capitão.

- Não, não, parece-me perfeito!

O peru de Jovial olhou para o capitão.

- Permita-me que lhe diga que tem banana seca no posterior.

O capitão corou com intensidade.

- Ah... hum... onde?

- No posterior - disse o peru outra vez - Ou nas nádegas, é como quiser.

- Bem, hum... cof cof... - o capitão continuou, retirando outra toalhita higiénica de dentro do chapéu e tentando limpar a banana das calças - Jovial, ah... então... bem... chamarei o médico legista e... começaremos a investigação...- e, sem mais demoras, subiu para cima do porco preto, deu-lhe com o chicote no rabo e acelerou dali para fora, enquanto removia com dificuldade a banana seca das calças com a toalhita.

(continua)

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quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Cereal Killer (5 de 12)

Jovial Trestonho chegou a casa com visível desconforto. Ia mal sentado no papagaio de papel, que reclamava estar sempre estacionado em segunda fila; para além disso, o dedo (ou falta dele) doía-lhe, e a memória do terrível assassinato do candeeiro e da caixa de cereais ainda o atormentavam. Aterrou à porta de casa com violência, esfregando o rabo na pedra da calçada e rasgando as calças; uma vizinha riu-se da sua roupa interior, desavergonhadamente exposta por entre a calça rasgada, e Jovial entrou em casa ainda mais irado. O cadáver do candeeiro lá permanecia, sem se mexer, já que era um cadáver. Seria necessário informar a família e pagar o funeral, mas Jovial não queria pensar muito nisso. Precisava urgentemente de um novo pano de cozinha, porque o que lhe tinham dado no hospital já resmungava.

- Não gosto de alturas! – dizia - E odeio o cheiro a sangue, deixa-me nauseado.

Jovial tentou abrir uma gaveta para retirar um novo pano de cozinha, mas esta recusou-se. Tentou a do lado, que também não se mostrou prestável.

- Caramba! - disse Jovial, com o rabo a doer-lhe da queda. Tentou abrir uma terceira gaveta, e consegui-o; tirou um pano lavado do seu interior, mas antes de poder tirar a mão, a gaveta fechou-se e abriu-se rapidamente.

- Mordeste-me! - zurrou Jovial, a tentar aliviar a dor na mão com uma mezinha que sua avó lhe ensinara. Depois de curar a mordedura da gaveta, enrolou o pano de cozinha lavado, e depositou o outro usado no lava-louça.

- Nunca te perdoarei por o que fizeste ao candeeiro! - exclamou a voz fininha da caixa de fósforos. Jovial olhou para a caixa dos fósforos e deitou-lhe a língua de fora. De seguida, subiu ao primeiro andar, para ir mudar de calças, e reparou que todos os objectos da casa o olhavam com pouca confiança.

Retirou um par de calças lavadas de uma das gavetas, que o mordeu como a da cozinha, e tentou despir as calças rasgadas. Elas saíram suavemente, e correram para fora do quarto, ofendidas.

- Bagh... - fez Jovial, e tentou enfiar as calças lavadas, que se recusavam a ser vestidas.

- Assassino! - disseram elas, e forneceram a Jovial um valente pontapé na canela.

- Au! - urrou Jovial. Caiu para cima da cama, que lhe deu um empurrão e o atirou para o chão. Entretando, as calças lavadas já tinham saído do quarto, e Jovial perceguiu-as pela casa. Os objectos soltavam gritos de vitória e triunfo, enquanto Jovial, de roupa interior, saltitava pela casa a tentar agarrar nas calças fugitivas. Finalmente conseguiu agarrá-las, e vestiu-as com violência.

- Vou-me embora daqui! - disse para a casa.

- Assassino! - gritou uma pantufa.

- Homicida! - berrou um pé de mesa.

Jovial saiu de casa furioso, e durante a sua ausência os objectos fizeram uma festa com muito álcool e música rock.

(continua)

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Reflexões sobre o queijo

Ia fazer uma sandes de queijo. Fui até ao frigorífico, abri a porta, tirei o pacote de queijinhos e abri-o. Foi com isto que me deparei:



O denso silêncio na caixa de cartão. O solitário queijinho da Vaca que Ri. Que contraste, entre o sorriso da vaca e o que o queijinho deverá estar a sentir. Fico a olhar para esta triste imagem, e paro por momentos. Adio a sandes de queijo só para tirar esta fotografia, porque acho comovente. Um abandonado queijinho, que viu todos os queijinhos irem-se embora e agora ali está sem saber o que lhe vai acontecer. Queijinho a queijinho, eles foram desaparecendo; e todos desaparecerão dentro do prazo de validade, uma vez que prezo a saúde e estabilidade do meu sistema intestinal. Se este queijinho tivesse consciência, o que estaria a pensar neste momento? Estaria com saudades dos outros queijinhos, ou a aproveitar o facto de estar sozinho na caixa e poder andar de um lado para o outro livremente? Estaria a reflectir sobre a diferença entre a alegria de uma caixa apertada ou a liberdade de uma caixa só para si? Será que é assim que pensam aqueles que partilham o quarto com os irmãos, ou vivem numa grande casa de família?

E de que forma verá este queijinho a ida dos outros queijinhos quando sabe que só resta a sua? Sentirá medo? Terá criado para si uma crença artificial que o ajude a compreender, na sua limitada consciência de queijinho, o que vem depois da Ida? Como se sentirá agora, sabendo que os outros queijinhos já sabem muito mais do que ele em relação a isso? E pior, que sentirá ele ao olhar para a caixa vazia e constatar que irá sozinho enfrentar o que quer que acredite que aí vem?

O que pensará ele sobre o sentido da sua existência? Sentirá, talvez, que a vida na caixa foi boa, mas que agora está na altura de ir embora; ou quererá talvez ficar mais tempo, com medo do que possa aí vir. Sentir-se-á realizado? Será que um dos queijinhos era seu amigo, sua namorada, seu confidente? Como terá sido a estranha despedida?

E principalmente: terá o queijinho o sentimento de que a sua vida de queijinho, dentro do mundo dos queijinhos, foi uma vida tão gozada e repleta de sentido como a vida que qualquer outro queijinho viveu dentro da caixa?

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quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O Cereal Killer (4 de 12)

Jovial Trestonho aterrou com o seu papagaio à porta do hospital, na esperança de receber tratamento. Sentia uma estranha comichão na mão, e o sangue jorrava-lhe para cima da bata acabada de sair da lavandaria, o que lhe causava grande transtorno, visto que a lavandaria não era barata. Entrou pela porta do serviço de urgência e gritou:

- Socorro, por favor, caiu-me um polegar! - o que provocou uma onda de riso na sala de espera; um idoso caiu da cadeira a rir, e uma senhora volumosa e com uma batedeira presa num dos ouvidos soluçou de tanta gargalhada. Jovial não achou piada nenhuma, e correu para dentro de uma das salas de tratamento, deixando atrás de si toda a sala de espera a rir com gosto. Lá dentro, estava uma maca com um homem deitado, e uma série de médicos, enfermeiras e até um cozinheiro italiano, que se enganara no comboio, rodeavam-no.

- Por favor, ajudem-me! - guinchava o paciente, com visível desconforto.

- Não se preocupe, estamos a tratar de si - disse um dos médicos, enquanto comia uma sandes mista e fazia malabarismo com dois bisturis, para grande alegria do pessoal médico.

- Por favor, estou com dores horríveis! - disse o homem, e olhou para Jovial - Amigo! Também está a sangrar?

- Sim, veja-me só isto! - disse Jovial, aproximando-se da maca e mostrando ao paciente a sua mão ensanguentada.

- Realmente é uma chatice - disse o paciente - Eu estou aqui cheio de dores desde as sete e meia e ainda ninguém me atendeu. Ia na rua a descascar uma banana quando a matreira me escapou das mãos, saltou para o meio da rua e começou a despir-se em frente a duas meninas que por ali andavam. Ao tentar travá-la, atravessei a correr a rua e um carro apanhou-me em cheio no cotovelo. Veja! - o paciente mostrou o cotovelo, que chorava com dores e sangrava abundantemente, comovido - E você?

- Acertaram-me com um pepino.- disse Jovial.

- Ah, que aborrecimento...

Entretanto, o medico juntou mais dois bisturis ao malabarismo, e o pessoal hospitalar aplaudiu; o cozinheiro italiano, compreendendo que se enganara na porta, saiu do hospital para ir apanhar o comboio de volta ao restaurante, enquanto gritava algumas indecências em italiano. Jovial decidiu tentar a sua sorte numa outra sala de tratamento, e por isso despediu-se do paciente com o cotovelo comovido e, aplaudindo o malabarismo do médico, entrou para outra sala.

Outra maca, com outro doente, que ria em alto e bom som. Os médicos, todos eles perto da reforma, enviava-lhe tubos pela guela, e resmungavam qualquer coisa.

- Por favor, preciso que me faça um curativo... - disse Jovial, a sujar o chão com sangue.

- Vai ter de esperar, temos um traumatizado muito grave!- disse um dos médicos, de todos o mais barbudo. O paciente contorcia-se com gosto, como se tivesse cócegas, e vomitou um polvo amarelado, que caiu da maca a seu lado.

- Conseguimos! - disse o médico mais cabeludo, e toda a equipa bateu palmas. O polvo vez uma vénia e pediu uma aspirina, porque estava com dores de cabeça, e foi colocado por duas enfermeiras dentro de uma incubadora para observação.

- E agora, já me podem tratar do dedo? - implorou Jovial, sentido. Um médico, de todos o mais perneta, pois não tinha uma perna, pé-coxinhou até Jovial, e observou o buraco deixado pelo dedo.

- Como é que fez isto?- perguntou o médico.

- Atiraram-me com um pepino.

- Um pepino?

- Sim, senhor doutor.

- Doutor? Não, doutora! - o médico tirou a barba postiça e revelou as feições de uma mulher idosa, mas sem dúvida uma mulher. Jovial exclamou “Ah!”, e a doutora voltou a colocar a barba postiça.

- Um pepino é raro... trouxe o dedo consigo?

- Bem, achei que não precisaria mais dele...

- Então teremos de encontrar um dedo para si. Venha cá - a doutora guiou Jovial até um a outra sala, onde lhe estendeu um grande livro de capa preta.

- Esse é o nosso catálogo de Inverno. Escolha o que mais lhe agradar, enquanto eu lhe faço um curativo.

Jovial abriu catálogo e maravilhou-se com os vários modelos disponíveis, mas um chamou-lhe a atenção.

- Doutora... acho que vou escolher este aqui...- era um maravilhoso modelo canivete-suíço, com tesoura, alicate, corta-unhas, saca-roulhas e isqueiro.

- Fantástica escolha, é o nosso modelo mais pedido - disse a doutora, a pé-coxinhar até uma mesa de onde trouxe um pano de cozinha - Acabaram-se os adesivos, por isso enrole isto na mão e vá á recepção pagar o dedo.

Jovial enrolou o pano na mão. Era um pano alegre, com galinhas e bordados de uma quinta.

- É muito caro?

- Sim, um pouco. Repare, é um dedo/canivete-suíço último modelo...

- É que hoje mesmo fui despedido e não me ia nada em conta...

- A não ser que queria ficar com esse papel de cozinha enrolado na mão durante o resto da vida... - disse a doutora, a piscar-lhe o olho por detrás da barba postiça.

- Não me dava muito jeito, mas se for muito caro...

- Sim, é.

- Então fico-me pelo pano de cozinha. Posso levá-lo para casa?

- Bem, pode, mas terá de o devolver. Tem panos de cozinha em casa?

- Sim, sou coleccionador.

- Ainda bem. Quando chegar a casa, troque de pano e quando puder traga-me esse de volta, pode ser?

- Vou andar um quanto ocupado, mas pronto.

- Boa sorte a encontrar emprego! - disse a doutora, a pé-coxinhar até à porta da sala de tratamento para se despedir de Jovial.

Ao chegar ao parque de estacionamento do hospital, Jovial reparou que se esquecera de estacionar devidamente o papagaio-de-papel, e por isso tinha uma multa bem grande numa das asas.

- Ora bolas! - exclamou. Subiu para cima do papagaio e levantou voou, constrangido.

(continua)

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Polémica: José Saramago tem opiniões!

A notícia do dia é esta mesmo: Saramago tem uma opinião. Numa entrevista (e, mais tarde, numa conferência de imprensa dada hoje ao início da tarde), José Saramago opinou sobre Deus no contexto do seu novo livro, “Caim”. Chamou-o vingativo e “má pessoa”, e disse que a Bíblia é um catálogo de maus costumes.

Claro que o país está em alvoroço, cheio de gritos de ofensa contra José Saramago. Um eurodeputado, infelizmente eleito pelos processos democráticos que deviam enviar para Bruxelas aqueles que melhor nos representam, disse mesmo que José Saramago devia mudar de nacionalidade; o que é um conselho engraçado, especialmente quando falamos de uma figura tão micheruca do panorama da literatura portuguesa.

Os programas de opinião pública da tarde deram largo espaço de emissão a esta discussão, convidando teólogos e padres a se pronunciarem. Todos eles deram a típica desculpa de que Saramago não percebe nada do que está a falar. Todos os participantes nestes fóruns aproveitavam o tempo de antena para pregar uns quantos minutos, e um dos espectadores disse mesmo com toda a calma que o senhor Saramago vai parar ao Inferno (e, implicitamente, que é muito bem feito).

Falo aqui disto porque, como já devem saber, sou um grande fã de discussões sobre este tipo de coisas, e há meses que espero por algum tipo de “escândalo” religioso no nosso país. Ele aí está. Permitem-me que opine (se isso não ofender ninguém, claro).

José Saramago pode ter a opinião que quiser. Pode dizer o que lhe apetece, e tem direito não só às suas opiniões como também a expressá-las da forma que mais gostar; mesmo quando essas opiniões vão contra a maioria dos seus compatriotas. José Saramago, por acaso, até tem bastante razão naquilo que diz. Não só concordo com ele, como desafio qualquer dos ofendidos a ler as primeiras cinquenta páginas da Bíblia e encontrar-me mais concelhos morais do que descrições de mortes ou chacinas generalizadas. Mas a questão aqui não é se Deus é vingativo, egocêntrico ou cruel ou não; a questão está em que toda a gente está ofendidíssima com aquilo que Saramago disse pensar do seu Deus.

Lembro-me agora com bastante gozo a questão já passada dos cartoons dinamarqueses, em que Alá aparecia com uma bomba no turbante. Lembram-se? Qual foi o problema nesse caso? Foi um dinamarquês com a mania das grandezas ter criticado um Deus? Não senhor; foi a reacção desproporcionada da comunidade islâmica, com as típicas ameaças de morte e queima de bandeiras pelas ruas.

E agora, meus amigos? Neste caso, o que se passa? Não terá Saramago direito a fazer o seu cartoon, sem se preocupar com o que alguns de vós possam achar ofensivo? Estão ofendidos; e depois? Isso está acima da liberdade de expressão? Um dos comentadores escolhidos por um dos programas da tarde dizia mesmo: “Saramago não tem o direito de criticar as crenças dos outros, nem de os ofender”. Ai não? Quem disse? A mim ofendem-me as pipocas no cinema. Juro (por Deus) que me ofendem. Se pudesse, proibia-as; mas não o faço. As outras pessoas têm todo o direito de comer pipocas, e se vou ao cinema tenho de ter em consideração as regras que regem os cinemas. Por isso não ponho os pés em cima das cadeiras, nem deixo lixo no chão; e se a liberdade que os outros têm de comer pipocas me ofende a sensibilidade, não tenho outro remédio senão aguentar-me e apreciar o filme, ou voltar noutro dia com uma sala mais vazia.

Estou ofendido; e depois? A mim pouco me importa que para os crentes Deus seja perfeito e incriticável; para mim não é, e para Saramago também não. Não seremos os únicos, aliás. Há muito boa gente que concorda com Saramago, mas a esses não os ouço. Ouço, sim, os crentes ofendidos, fazendo lembrar a estúpida polémica à volta do “Código DaVinci”. Ouço os teólogos em delírio, dizendo disparates como “A Bíblia é um livro que se pode ler às crianças”. Desafio qualquer destes teólogos a deixar-me ler umas quantas passagens da Bíblia à frente dos seus filhos pequenos. Passagens cheias de amor e moralidade, como (é a primeira que me vem à cabeça) aquela em que dois ursos chacinam 42 crianças por terem chamado careca a um homem; ou a história em que duas filhas fazem sexo com o seu próprio pai depois de o embebedarem, para darem continuidade à família.

Ouço, sim, a Igreja Católica, sempre avançada e coerente, cujas declarações e comentários irão multiplicar as vendas do livro em vez de as reduzir. Chamar “golpe publicitário” à opinião de Saramago é dar-lhe ainda mais publicidade do que ele alguma vez poderia arranjar com as palavras que proferiu sobre Deus (aliás, é uma teria que faz todo o sentido; se há alguém que precisa de vender mais livros é José Saramago).

Espero que esta situação aumente as vendas dos dois livros, quer do “Caim” quer da Bíblia. Afinal, um romance histórico com genocídios, perseguições, apedrejamentos, incestos e uma personagem principal omnipotente com uma estranha tara por circuncisões tem um potencial enorme em termos de vendas. Desejo todo o sucesso ao livro de Saramago, e a ele também. Se este Deus for verdadeiro, lá nos encontraremos no Inferno. Até lá, por este mundo, vamos continuando a dizer aquilo que quisermos que é para isso que inventaram uma coisa chamada liberdade de expressão.

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terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Cereal Killer (3 de 12)

Jovial trabalhava numa fábrica de meias como investigador, estando actualmente a desenvolver um tecido anti-chulé que, esperava, o levasse à fama internacional. E o seu candeeiro, a caixa de cereais e o pintainho escolheram um mau dia para morrer, pensou Jovial, ao olhar para o calendário à porta da fábrica e constatar que hoje, dia 34, seria dia de testes.

- Ora bolas!- resmungou para com os seus botões.- Logo hoje que me morreu um candeeiro em casa!

- Oh!- disse um dos botões da bata que vestia sempre antes de entrar no laboratório - Tenho muita pena!

- Também eu! - disse um segundo botão - os meus pêsames.

- Obrigado - disse Jovial, enquanto mostrava a identificação à porta do laboratório. A porta sorriu-lhe timidamente; toda a gente da fábrica sabia que ela tinha um fraquinho pelo Doutor Jovial.

- Bom dia, Doutor - disse a porta, a corar ligeiramente junto à ombreira.

- Bom dia- disse Jovial, e entrou pela porta para o laboratório. Era uma sala metade rectangular, metade redonda, e havia uma discussão pendente entre os cientistas se a terceira metade era triangular ou não. Jovial caminhou até à sua secretária, cumprimentando com um cântico tradicional, como era tradição no laboratório, cada um dos seus colegas cientistas, e finalmente sentou-se à sua secretária, ligou o computador, e começou um jogo online com gatinhos e bolinhas coloridas, para tentar esquecer a terrível e traumatizante imagem do candeeiro, da caixa de cereais e do pintainho mortos.

De súbito, uma sirene encheu o laboratório de puns de surpresa, e Jovial soltou numa flatulência fora do normal, aplaudida pelos seus colegas cientistas. Depois dos aplausos, seguiram por um corredor para a zona de testes, onde, no centro de uma sala redonda e cheia de posters de bandas famosas, estava uma cadeira com um par de meias delicadamente colocado sobre ela. Os cientistas pagaram o bilhete, à entrada, e alguns deles caíram na infelicidade de não ter ali trocos, e assim terem de ficar lá fora. Depois de todos os bilhetes terem sido vendidos e depois dos cientistas sem trocos serem pontapeados para fora do recinto do espectáculo, os cientistas com bilhete procuraram os seus lugares, calhando a Jovial o D-13. Sentou-se e viu, com alegria, que a plateia não estava muito ocupada, e que por isso talvez tivesse a sorte de arranjar um lugar com maior visibilidade. Levantou-se, desceu pelas escadinhas do recinto e encontrou, na fila H, um lugar vago. Cantarolando de contentamento, atravessou a fila em direcção ao lugar, pisando alguns cientistas já sentados, que lhe resmungaram obscenidades entre-dentes. Sentou-se no lugar vago, constatando que, dali, via muito melhor. As luzes da sala apagaram-se lentamente, e uma voz feminina pediu-lhes para desligarem os telemóveis, e informou ainda que era proibida qualquer tipo de gravação, áudio ou vídeo, do espetáculo. Os cientistas aplaudiram quando a mensagem acabou, porque a qualidade do som era fenomenal, e o espectáculo começou.

Um indivíduo completamente desconhecido entrou para o palco, com certeza o voluntário para a experiência. Era um homem pequeno, com barba por fazer, cabelos grisalhos e mal penteados (notava-se que houvera uma louvável tentativa de os amaciar, mas tal fora impossível), pés descalços, camisa suada e calças puxadas para cima, exibindo com orgulho os pés sujos e unhas acastanhadas, e por momentos Jovial pensou que o homem tinha pé-de-atleta, ou urticária. Mas mal ele estendeu o pé esquerdo, de longe o mais porco, na direcção da assistência, fazendo vários cientistas desmaiar, Jovial reconheceu os sintomas de um caso profundo e preocupante de chulé. O público aplaudiu com gosto, enquanto os cientistas inconscientes eram levados para fora da sala numa maca. O homem sentou-se na cadeira, pegou nas meias que ali estavam, e começou a calçá-las. Um percussionista apareceu detrás do palco, com um tambor e duas baquetas, e iniciou um impressionante rufo. O homem calçou uma das meias, depois a outra, e quando colocou os dois pés no chão e se ergueu, o percussionista parou o rufo e atirou um prato ao chão. O público começou a aplaudir, extasiado.

- Preciso de um voluntário! - disse o homem, a apontar sugestivamente para os seus pés, agora dentro das meias. Os aplausos cessaram, e ninguém se ofereceu. Ao ver que o seu espectáculo ia por água abaixo, o voluntário agarrou no percussionista e fez uma complicada pirueta. O seu pé esquerdo estava agora equilibrado num dos ombros do percussionista que, em pânico, os cheirou. O público esperava uma reacção. O percussionista sorriu, aliviado.

- Não cheira a chulé! - disse, e a assistência explodiu numa onda de aplausos. Os cientistas levantaram-se e assobiaram, alguns gritando “Bis! Bis” e outros “Bravo!”. Jovial também aplaudiu; era fantástico, realmente. O voluntário e o percussionista fizeram uma vénia, e uma mulher de fato de banho entrou no palco com dois ramos de flores, um para cada um. Os cientistas aplaudiram sem parar, até que o voluntário e o percussionista se retiraram. Jovial estava contentíssimo, e sentiu-se feliz por trazer sempre alguns trocos no bolso.

De seguida, entrou e palco o cientista-chefe, que liderava as investigações.

- Caros colegas, as nossas investigações deram finalmente frutos! Como puderam ver ao vivo e em exclusivo, conseguimos encontrar um tecido macio e resistente ao cheiro de chulé!- os cientistas aplaudiram, e o cientista- chefe continuou - Mas tal não seria possível sem a ajuda de um dos maiores cérebros vivos do planeta no que toca à ciência da meia. Por favor, um aplauso para o Doutor Jovial Tristenho!

Jovial ergueu-se com um sorriso, e todos os cientistas aplaudiram. Foi então que um dos homens dos bilhetes olhou para Jovial.

- Por favor, o seu bilhete- pediu delicadamente.

Jovial estendeu-lho, e o homem olhou para o bilhete, e depois para Jovial, alarmado.

- Você não está no seu lugar!

Os aplausos diminuíram, e Jovial corou. Fora apanhado!

- Repare -continuou o homem dos bilhetes - O seu lugar é o D-13, e não o H-5!

Os cientistas pararam de aplaudir e soltaram um “AAHH!” de surpresa.

- Isso é impossível! - disse o cientista - chefe, saltando do palco com uma pirueta e aproximando-se em bicos de pés, como uma bailarina - Eu trabalho com o Jovial há vários anos e sei que ele seria incapaz de... - o cientista - chefe olhou para o bilhete de Jovial, e empalideceu. De seguida, soltou uma flatulência, como era tradição em momentos de surpresa, e olhou para Jovial.

- Como foi capaz, doutor? Como?

Os cientistas, alarmados, nada disseram; alguns, amigos de Jovial, deram mesmo puns de surpresa.

- Está despedido! - disse o cientista - chefe.

- Mas doutor... aqui via-se melhor! - disse Jovial.

- Não importa, doutor! Como posso depositar toda esta investigação num homem como o senhor? Se foi capaz de trocar de lugares assim, com este descaramento, o que fará com as meias?

Os cientistas apuparam Jovial, que teve de sair da sala a correr. Os cientistas perseguiram-no, atirando-lhe com frutos podres. O voluntário também saltitava atrás de Jovial, com cara de quem lhe queria dar um valente pontapé. Ao sair do laboratório, Jovial recebeu com um grande splash um tomate mesmo na cara, que lhe incapacitou a vista. Subiu para o papagaio-de-papel, estacionado em segunda fila, e levantou voou, sem antes um pepino lhe acertar na mão esquerda, arrancando-lhe o polegar com violência. Voou dali para fora, cheio de medo, enquanto os cientistas e o voluntário com chulé continuaram a perseguir o seu polegar rua abaixo.

(continua)

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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O Cereal Killer (2 de 12)

No dia seguinte, Jovial acordou esfomeado, despenteado e com hálito de almofada. Levantou-se para ir lavar os dentes e reparou no cadáver imóvel do candeeiro, estendido em cima da mesa.

- Oh, que fui eu fazer!- cantarolou Jovial, abraçando o corpo inerte do velho candeeiro.

- Deixa lá- disse-lhe uma maçaneta- ele já era velho, não podia durar muito...

- Mentiras!- rosnou uma vela, que se esquecera de barbear e por isso tinha a boca escondida atrás de uma longa barba de Pai Natal - Eu bem vi o que aconteceu! Jovial Tristenho matou o candeeiro!

Rapidamente os objectos da sala começaram uma acesa discussão. Um livro concordava com a vela, mas ninguém lhe ligo nenhuma porque todos sabiam que era comunista; uma jarra de flores concordou com Jovial, que se defendia dizendo ter sido um inocente esquecimento. Uma vassoura acusava Jovial de tortura, maus-tratos e negligência, e uma mesa oferecia-se para defender Jovial em tribunal, se a tal chegasse.

Depressa a confusão alastrou às outras divisões da casa, mas como a comunicação era limitada ninguém sabia do que estavam a discutir os objectos da sala;, na casa de banho falava-se de política e no quarto de hóspedes discutia-se a relação ciência/religião.

Jovial, agora com uma forte dor de cabeça e comichão na virilha, correu à cozinha, fez um batido de cenoura, e bebeu-o de uma vez só; como é sabido, a cenoura faz bem aos olhos, e por largos minutos, Jovial pôde ver no escuro, tudo verde, claro, mas nunca o descobriu porque todas as luzes da casa estavam ligadas, e para além disso um par de sóis brilhava economicamente lá fora.

Saiu de casa a correr, para não ter de ouvir os seus próprios objectos acusarem-no de assassinato, e começou a cantarolar, para afastar as mágoas. Preparou-se para entrar no papagaio de papel que todos os dias o levava ao emprego, mas um monte de pessoas reunidas no centro do largo da aldeia chamou-lhe a atenção. Aproximou-se, apreensivo, porque, tanto quanto sabia, podiam estar a discutir o que fazer com ele, o assassino-de-candeeiros, mas uma onda de felicidade molhou-o da cabeça aos pés quando viu que todos olhavam para baixo, onde o cadáver de uma caixa de cereais jazia no chão da aldeia.

- Pobre coitado, deixou três filhos cerealzinhos!- dizia uma senhora tão idosa que caminhava dentro de um caixão, com a sua vozinha a sair de um buraquinho. O caixão não tinha ar condicionado, e por isso a senhora tinha muito calor.

- Mas quem terá feito uma coisa destas?- perguntou um agricultor, com uma beterraba pendurada no nariz.

- Desculpe, amigo, mas tem uma coisa no nariz... - disse Jovial.

- Deixe-se de coisas, não vê que temos aqui um assassinato? - disse o agricultor com a beterraba no nariz.

- Temos de participar às autoridades - aconselhou um pintainho.

- Volta para a quinta, pintainho!- berrou o agricultor da beterraba, que olhava para ele acusatoriamente assim como toda a gente no largo.

- Não posso, hoje é o meu dia de folga - respondeu habilmente o pintainho, e Jovial percebeu logo que não era verdade o que dizia o bichano, eram balelas de pinto; mesmo assim, as outras pessoas acreditaram, e voltaram-se de novo para o cadáver da caixa de cereais.

- Alguém tem um telefone?- perguntou um velhinho que, aparentemente, se enganara ao sair de casa, e que por isso se apoiava a uma baguete em vez de a uma bengala.

- Não, mas eu tenho aqui um pombo correio- disse um caçador, que acidentalmente abatera um pâncreas que fugira às autoridades, e que por isso recebera uma medalha de mérito que exibia sem modéstia, pendurada num dos sovacos.

- Não serve, terá de ser mais rápido.- disse o agricultor da beterraba.

- Olhem!- disse o caçador, a apontar para o fundo da rua, a medalha a tilintar debaixo do sovaco.

Ao fundo da rua, aproximava-se alguma coisa. Jovial reparou que era um agente da autoridade montado num peru, depois outro agente da autoridade, desta feita montado num porco preto, e depois um terceiro agente da autoridade, montado num segundo peru. O segundo agente da autoridade, montado no porco preto, deu com um chicote no traseiro do animal, que uivou autoritariamente, como que a avisar os transeuntes de que era de boas famílias. O terceiro agente da autoridade montado no segundo peru tomou a dianteira, e o primeiro agente da autoridade montado no primeiro peru a retaguarda. Rapidamente rodearam o cadáver da caixa de cereais, e o agente da autoridade montado no porco saltou para o chão, bateu com os pés numa casca de banana, escorregou, caiu com o rabo em cima do cadáver da caixa de cereais, e voltou a levantar-se. A banana afastou-se, ofendida, e todos os transeuntes riram com gosto. O agente da autoridade, ainda com restos de banana no traseiro, fez sinal ao porco preto, que relinchou, e os transeuntes pararam de rir, como que sujeitos a levar uma porcada se continuassem.

- Meu capitão, é um cadáver!- disse, surpreendido, um dos agentes da autoridade montados nos perus.

- Deveras, meu jovem, deveras que é! - rosnou o agente da autoridade que tropeçara para cima do cadáver da caixa de cereais, enquanto tentava limpar os restos de banana discretamente - Quem encontrou este cadávere?- perguntou ele. Todos os transeuntes apontaram para o pintainho, que relinchou de medo.

- Fui eu, senhor capitão. Estava a regressar a casa depois de uma noitada de folia num galinheiro de um familiar, quando tropecei neste pobre coitado.

- Quer dizer que tocou no cadávere? - rosnou o capitão, inclinando-se perigosamente na direcção do pintainho, de maneira que o seu grande nariz quase lhe tocava no bico. Jovial reparou que o capitão, visto de perto, era muito diferente dos outros dois agentes da autoridade. Tal como o caçador, exibia várias medalhas debaixo dos socados, ferrugentas certamente por causa da transpiração a que eram sujeitas. Tinha uma bóina que dizia “Capitão” à frente, e “100% fibra de linho” atrás. As pernas eram curtas, tão curtas que mal aguentavam o resto do corpo, e numa mão segurava o chicote e noutra uma toalhita higiénica com que continuava a tentar limpar os resíduos de banana no rabiosque.

- Sim, senhor capitão...- disse o pintainho, e Jovial quase sentiu pena dele. O capitão levantou a cabeça e olhou para todos os transeuntes, incluindo para Jovial.

- Ninguém viu o assassino?- perguntou. Todos acenaram negativamente, e a beringela no nariz do agricultor oscilou de um lado para o outro.

- Capitão, olhe!- disse outro agente da autoridade, a descer desajeitadamente de cima do peru, que começou a pastar, e a apontar para o cadáver da caixa de cereais - É uma faca!

- Deveras, se é!- disse o capitão, entusiasmado. Pegou na faca com a ponta da toalhita higiénica, sujando-a com banana.- A arma do crime! De certo haverão impressões digitais nesta faca, e assim descobriremos o assassino! - o capitão sorriu triunfante, e ficou à espera de uma salva de palmas pela sua mentes genial, mas nenhum dos transeuntes bateu palmas.

Constrangido, o capitão colocou a faca no bolso, atirou a toalhita higiénica para cima do pintainho, cobrindo-o, e montou o porco.

- Chamem um médico-legista para analisar o cadávere, agentes! - disse ele.

- Sim, senhor capitão! - disseram os agentes da autoridade em cima dos seus perus, e rapidamente desapareceram atrás de duas esquinas, uma para a direita e outra para a esquerda, esforçando os seus perus ao máximo.

- O assassino - disse o capitão, misteriosamente - está entre nós!

Os transeuntes entreolharam-se. Jovial olhou para o caçador e para os seus sovacos, depois para o caixão com a velhinha lá dentro, depois para a baguete do velhinho, depois para a beterraba do agricultor, e finalmente para o pintainho, que entretanto falecera asfixiado debaixo da toalhita higiénica. Quem seria o assassino? E estaria ele ali, no local do crime? O capitão deu com o chicote no traseiro do porco preto, e acelerou por uma esquina, e os transeuntes dispersaram, cada um para as suas vidas. Jovial, moralmente constrangido por deixar ali o cadáver da caixa de cereais, ficou-se mais alguns momentos, mas depois lembrou-se de que tinha de ir para o emprego e trepou ao seu papagaio de papel, estacionado à porta de sua casa, e que o levou a voar dali para fora.

(continua)

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domingo, 18 de outubro de 2009

O Cereal Killer (Estreia!)

O Trajectória Aleatória estreia a sua primeira série. Um capítulo por dia, 12 capítulos ao todo, começando hoje e terminando no último dia do mês. A história? Um policial chocante e sem qualquer regra.

O exercício já foi apresentado aqui no blog: uma história escrita de seguida, sem parar para pensar no que se escreve nem nas consequências do que é escrito. Esta tem mais de 3 anos (foi escrita em Agosto de 2006!), pelo que no que toca ao meu património literário é uma espécie de relíquia com cheiro a bafio. Segue a primeira parte. Espreita absoluta!


1

Jovial Tristenho desceu a rua da aldeia aos pulinhos, como se de um insuflável se tratasse. Estava bêbado, é certo, mas ainda sabia distinguir um poste de um pauzinho de chupa-chupa, pelo menos pelo tamanho; a cantarolar, saltitou, virou algumas esquinas, quer à esquerda quer à direita, mas sentiu-se rotineiro, e por isso atirou-se para dentro de um poço que por ali passava.

- AI!- berrou o poço, a sentir uma coisa a entrar-lhe pela garganta. Seria uma espinha do peixe que comera ao almoço? Não lhe parecia, porque a dor era característica de outra coisa, e para além disso não almoçara peixe naquele dia. Começou, portanto, a meter as mãos pela boca adentro, á procura do invasor, e por pouco não lhe escapava das mãos a figura bêbeda e cantarolante de Jovial.

- Que faz você dentro da minha garganta?- perguntou o poço com maus modos.
Jovial disse-lhe boa noite, e recomeçou a cantarolar, desaparecendo por uma ruela; mais tarde, o poço foi atropelado por uma carroça, devidamente multada por excesso de velocidade.

Jovial entrou em casa, e o candeeiro que deixara ligado antes de sair comprimentou-o com um alegre:

- Como vai a vida?

Jovial cantarolou “As pombinhas da Catrina”, atirou-se para cima do sofá e adormeceu, sem se dar conta que o candeeiro o insultava violentamente pela sua falta de educação para com os candeeiros; o candeeiro acabou por perecer ao calor por ele próprio produzido, pois Jovial esquecera-se de o desligar antes de adormecer descabidamente no sofá.

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Iberia, um momento divertido




Foto tirada numa viagem Madrir-Lisboa. Fico contente que a simpática companhia aérea tenha como slogan a garantia que a minha viagem dura do princípio ao fim. Seria problemático só me acompanharem até metade... o que quer que isso signifique...
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O vermelho fica-te bem

O top vermelho ficava-lhe bem. Não era bem pelo decote algo atrevido, nem por fazê-la parecer mais alta; era mesmo porque se gostava de ver com aquela cor.

As calças eram normalíssimas, de ganga azul. Não queria ir de pernas de fora até ao lar, logicamente. A mão dizia-lhe sempre a mesma coisa quando iam visitar a avó. Uma vez apanhara um senhor de idade a olhar-lhe para as pernas, e apesar de no momento ter achado piada mais tarde arrependeu-se. A avó era toda puritana, e não lhe ficava nada bem ir de mini-saia visitá-la.
Naquele dia, por acaso, não lhe dava muito jeito ir visitar a avó. Tinha combinado com umas amigas ir até ao centro comercial que abrira a alguns quarteirões de sua casa, onde abrira uma loja de roupa absolutamente fantástica. Paciência. Se despachasse o que tinha a fazer até às 4 ainda podia chegar a tempo ao compromisso.

Desceu até à sala de estar, onde o irmão estava sentado no sofá com a televisão aos berros. Uns bonecos extremamente violentos estavam a gritar numa língua oriental qualquer, enquanto se matavam uns aos outros. A mãe estava a passar a ferro, e assim que a viu largou o ferro de engomar e foi buscar um tupperware.

- Vais e voltas num instante, não te custa nada. Ainda por cima os bolos ainda estão quentinhos – dizia-lhe a mãe, enquanto tentava que o tupperware coubesse dentro de um saco de papel.

- Eu levo isso na mão, vá…

- Não levas nada, que senão arrefecem. Levas aqui dentro de um saco.

O tupperware entrou finalmente, e a mãe estendeu-lhe o saco.

- Espera só mais um bocadinho – disse ela, e desapareceu na cozinha.

- Ai, o que é agora… ?

- Espera só dois minutos, se fazes favor! – respondeu-lhe a voz da mãe detrás da porta do frigorífico.

No televisor, os bonecos orientais atacavam-se à machadada. Um deles, uma rapariga com uma mini-saia curtíssima, estava a gritar histericamente.

- Epa, põe isso mais baixo.

O irmão ignorou-a, concentrando as suas atenções na rapariga da mini-saia. A mãe voltou.

- Levas aqui também estes iogurtes que ela adora. Estão fresquinhos.

“Bolinhos quentinhos, iogurtinhos fresquinhos”, pensou ela.

- Porque é que vais com um top tão descapotável?

- Mãe, estou de calças e estão 28 graus lá fora…

- Estou a falar do top. Filho, põe isso mais baixo, por favor!

O rapazinho não ouviu.

- O que é que tem?

- Tem um decote um bocado exagerado, não achas? Se o teu pai te vê com isso…

- Posso ir andando ou não?

- Podes. Fica lá 10 minutinhos com ela, só para lhe fazeres companhia. Se ela começar a chorar tenta acalmá-la e depois diz-lhe que tens trabalhos da escola para fazer.

- Sim, mãe…

- Filho, põe lá isso mais baixo…

Já ela tinha saído de casa e ainda conseguia ouvir os berros da rapariga oriental.


O lar ficava muito perto dali, mesmo ao lado do jardim zoológico, mas não tardou a sentir-se arrependida por ter vindo de calças. Estava um calor sufocante, e o sol parecia furioso. Era um dia de praia perfeito. Todas as superfícies pareciam mais douradas e brilhantes. Os espelhos e as janelas dos carros reflectiam o sol. Toda a gente conduzia com as janelas puxadas para baixo, e com as mangas puxadas para cima. Metade das pessoas que passeavam pela rua ou estavam a comer um gelado ou a contar os trocos para o ir comprar. As crianças corriam de um lado para o outro, com bonés na cabeça.

Ela seguia apressadamente pela rua, com o seu top vermelho e o saco de papel cheio de bolos e iogurtes para avó. Queria despachar-se. Não ia perder uma tarde de Verão por causa daquilo. O lar era já naquela esquina. Atravessou com o sinal já vermelho e chegou à porta do lar ao mesmo tempo que alguém saía de lá a correr. Entrou.

A recepção tinha uma decoração muito simples e relaxante, cheia de plantas em vasos enormes e tapetes de cores alegres. O ar condicionado e a música ambiente estavam ligados. Havia um recipiente com rebuçados em cima da bancada da recepção, que estava vazia. À esquerda havia uma porta, à direita umas escadas. Não se via ninguém.

Ela foi até à recepção, olhou em volta, ainda esperou um bocado mas não apareceu ninguém. Agarrou em meia dúzia de rebuçados e meteu-os no bolso.

Subiu as escadas em direcção aos quartos, passando por estátuas e pequenas árvores em vasos. Havia um silêncio estranhíssimo pelas escadas acima, como se estivesse a entrar num prédio vazio. Subiu até ao segundo andar sem encontrar ninguém, e partiu para o corredor principal.

Os quartos dos dois lados tinham as portas fechadas. Num dos quartos alguém estava choramingar, com a voz meio apagada pela porta fechada. As solas dos sapatos dela faziam um barulho estridente no linóleo à medida que avançava. “Onde estarão as enfermeiras?”, pensava ela. Foi então que virou uma esquina e encontrou a enfermeira do piso; e depois ela gritou, e o saco dos bolinhos caiu ao chão.

A enfermeira estava a alguns passos de uma cadeira tombada, de costas para cima. Havia uma enorme poça vermelha ao lado da cabeça dela, e o seu uniforme branco estava manchado com os mesmos tons de vermelho. A meia dúzia de metros, mais ao fundo no corredor, estava uma parte do seu braço direito.

Ela levou as mãos à boca e gritou, mas o grito foi abafado pela palma da mão. Ficou a olhar para o corpo mutilado da enfermeira até se dar conta de que aquilo era demasiado forte para aguentar, e por isso fechou os olhos e desviou a cabeça. Permaneceu quieta por momentos a gemer, recompondo-se. Só depois começou a pensar no que podia ter provocado aquilo e aí é que ficou mesmo assustada.

“Anda um maluco aqui à solta”, pensou.

Calou-se logo. Dobrou os joelhos com alguma dificuldade, pois tremiam incontrolavelmente. Apanhou o saco dos bolinhos, como se fosse algo realmente importante naquele momento, e voltou a levantar-se. Desviou o olhar da enfermeira despedaçada, e contornou-a pelo maior trajecto possível e que mesmo assim lhe pareceu curto demais. Contornou também o braço abandonado, e aí começou a correr. As solas voltaram a chiar, e ela parou subitamente. Silêncio absoluto. Continuou pelo corredor, só que com muito mais cuidado.

O quarto da avó era a apenas algumas portas de distância, mas uma delas estava aberta. Espreitou quase involuntariamente. Atrás de uma cama tombada distinguiu a forma de duas pernas deitadas, com um dos pés descalços e o outro ainda com a pantufa equilibrada em cima dos dedos. As pernas não se mexiam. Os lençóis estavam estendidos pelo chão, com enormes marcas a vermelho, e desde os lençóis até à entrada do quarto corriam duas filas de marcas vermelhas, em fila indiana. Ela seguiu as marcas desde a cama até à entrada do quarto, mesmo ao lado dos seus pés. As marcas faziam depois uma curva e seguiam pelo corredor fora, desaparecendo mais à frente. Vistas de perto, reconheceu-as.

“O que é que um cão anda aqui a fazer?” pensou ela. Mas seriam mesmo de um cão? Pareciam; mas nesse caso o cão seria enorme.

Com o coração na garganta e o suor a escorrer-lhe pela testa, ela continuou corredor abaixo, cuidadosamente, com o saco de bolinhos numa das mãos. Queria sair dali, e queria sair dali rapidamente; mas não podia deixar a avó. Não se podia ir embora sem saber onde ela estava, e se estava bem.

A porta do quarto da avó estava aberta. Aproximou-se. Espreitou.

O quarto estava escurecido, com as persianas para baixo; apenas um pequeno raio de sol atravessava o quarto na diagonal. A cama não estava revirada, mas os lençóis sim. O candeeiro em cima da mesinha de cabeceira estava tombado, e havia vidros pelo chão. No canto mais escuro estava uma sombra pesada e quente, a mexer-se tranquilamente. Ela teve o cuidado de não fazer barulho absolutamente nenhum. A sombra estremeceu mais uma vez, e ela ouviu um som molhado e pegajoso de mastigação. Tentou dar um passo atrás para sair dali, finalmente poder respirar e gritar por ajuda. Pôs um pé atrás, trocou o peso do corpo de uma perna para a outra. A sola das sandálias chiou no linóleo. A mastigação parou.

A sombra contorceu-se, e do meio daquela forma indistinta surgiram dois pequenos pontos amarelos e brilhantes. Um ronronar ameaçador substituiu o silêncio do quarto, e por baixo dos pontos brilhantes apareceu uma fileira de dentes brancos e afiados. A sombra mudou de posição e ganhou forma, com os olhos brilhantes fixados nela. O vulto avançou, enorme, escuro e entroncado. Ela deu um passo atrás muito, muito devagar. O vulto deu um passo em frente e atravessou o raio luminoso. Ela não deu por nada, mas uma lágrima pequena e acelerada desceu-lhe pela bochecha e foi cair no top vermelho.

A cabeça do lobo era inacreditável. A fila de dentes parecia agora mais brilhante, mais real. O seu focinho estava cheio de uma matéria vermelha que lhe sujava também as patas; e os olhos, aqueles olhos amarelos e brilhantes, pareciam querer… devorá-la. Sim. Devorá-la era a palavra certa naquela situação.

O ronronar começou a aumentar de volume, até se transformar num rosnar constante. As patas avançavam com toda a confiança, deixando marcas a vermelho atrás de si. E os olhos… Ela recuava lentamente, pé ante pé. O lobo avançava, pata ante pata. Aquele jogo de recuos e avanços durou o suficiente para ela perceber que se ali ficasse ia acontecer uma tragédia, e se começasse a fugir não iria demorar até que aqueles dentes lhe fizessem o mesmo que àquela enfermeira.

- Não se mexa. – disse uma voz atrás dela.

Claro que ela se mexeu, revirando os olhos e tentando espreitar por cima do ombro sem mexer a cabeça.

- Eu disse, não se mexa – repetiu a voz, mais áspera. Ela parou completamente.

O que quer que estivesse atrás dela fez o lobo rosnar ainda mais, e arreganhar a boca para mostrar a dentição afiada. Começou a dobrar as patas, a baixar a cabeça, e pregou os olhos nela outra vez. Era agora. Ela fechou os olhos e esperou.

Houve um silvo atrás de si e o lobo parou de rosnar. Ela abriu os olhos. Um dardo cilíndrico e amarelado estava pendurado pelo pescoço do lobo. Os dentes pareceram maiores, o lobo ladrou violentamente, furioso, cedendo sobre as próprias patas. Continuou a ladrar activamente como se estivesse ofendido, e finalmente tombou para o lado.

- A senhora está bem? – perguntou a voz atrás dela. Duas mãos agarraram-na e puxaram-na para fora do quarto, enquanto três figuras de uniformes vestidos entravam no quarto e agarravam o lobo estendido no chão.

- A senhora está bem? Consegue ouvir-me? – perguntou a pessoa que a segurava. Ela não respondeu. As suas bochechas eram duas auto-estradas de lágrimas grossas e apressadas, que iam cair no top vermelho. Atrás do lobo reconheceu um pijama desfeito, e deu por si a largar o saco com os bolinhos no chão: a avó já não os ia comer.

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