quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Cento e seis


Estava a caminhar pela praia quando o meu dedo do pé bateu num objecto rijo: era uma lâmpada árabe, brilhante e exótica, semi-enterrada na areia da costa vicentina. “Isto faz sentido”, pensei; e recordando-me de uma certa história infantil pensei em pegar-lhe e esfregá-la e esperar pelo génio. Tinha as vacinas em dia, e a lâmpada não parecia ter nenhum resíduo suspeito que me pudesse infectar de qualquer maneira. Peguei-lhe. Senti um calafrio; o metal dourado estava ao sol com certeza há algumas horas mas a superfície da lâmpada estava gelada. Passei as mãos por cima da tampinha e uma explosão de cor atirou-me para a areia. Abri os olhos. De dentro da lâmpada saíra um enorme árabe musculado, de colete verde e turbante lilás. Previsível.
- Estava à espera que fosses azul e tivesses sotaque brasileiro – disse ao génio. Ele olhou-me com maus modos.
- Tu e toda a gente. Os filmes da Disney contaminam o imaginário popular e criam-se mitos. Tu sabias que o Pinóquio original era um filho da mãe?
- No filme ele é bonzinho.
- Exactamente – o génio cruzou os braços e olhou em volta. As pessoas da praia estavam a tirar fotografias, e uma delas parecia ligar à polícia – Despachemo-nos. Tens três desejos. Siga.
Antes que pudesse abrir a boca o génio impediu-me com um gesto e acrescentou:
- Não vale pedires desejos infinitos.
- Oh.
- Tu e todos os outros engraçadinhos pensam que encontraram um buraco lógico no sistema e querem aproveitar-se. A única pessoa verdadeiramente omnipotente sou eu e deus nosso senhor.
- Tu és omnipotente?
- Por isso posso tornar tudo realidade.
- O génio do filme do Aladino explica que...
- Três desejos.
- Ok, fácil. Paz no mundo...
- Define paz.
- Paz – desenhei um círculo com as mãos – Total.
- Isso inclui fim dos conflitos armados?
- Sim.
- Fim das divergências políticas e ideológicas?
- Certo.
- Fim das injustiças sociais.
- Concordo.
- Só aí tens três desejos diferentes.
- Não. Paz no mundo, no geral.
- Sendo assim posso dar a cada pessoa do mundo uma sensação crónica de alegria e equilíbrio emocional, mas isso não vai resolver o problema.
- Não é isso que eu quero.
- Queres paz no mundo, assim, tipo, no total – gozou o génio.
- Deixemos este para o fim. Segundo desejo: dinheiro infinito. Assim poderei comprar medicamentos, alimentar África, subornar as farmacêuticas para acabar com a corrupção, financiar coisas bonitas...
- No can do.
- O quê?
- É a expressão inglesa para “não posso fazer isso”.
- Eu sei o que noucandú significa, só não percebo qual é o problema.
- Dinheiro posso dar-te, mas não infinito.
- Pensei que eras omnipotente.
- E sou; mas o conceito de infinito ultrapassa a minha omnipotência. E se me pedisses para ser infinitamente mais poderoso que eu?
- Tem de haver uma escala?
- Sim. Não pode ser assim, tipo, infinito – gozou o génio outra vez.
- É uma questão de transformares a minha conta bancária numa conta sem fim. Em vez de ter lá um 23,45, tem lá aquele oito deitado.
- Isso é um conceito matemático teórico.
- E então?
- E então não o posso concretizar.
- E a tua omnipotência?
- O próprio conceito de omnipotência tem problemas sérios quando aplicamos a lógica desta realidade.
- Estás a desviar a conversa. Em que ficamos quanto ao dinheiro infinito?
- Tem de haver um valor.
Revirei os olhos.
- Desejo ter sete mil e oitocentos mil biliões de euros na minha conta bancária.
- Agora sim – o génio sorriu. O ar pareceu contrair-se por momentos e expandir-se logo de seguida. Um “clic” soou vindo de todos os átomos do Universo e as pessoas na praia olharam em volta como se a própria realidade tivesse sido remexida.
- Voltemos à paz no mundo.
- Voltemos.
- O meu desejo é que deixem de haver injustiças e guerras no mundo.
- O teu problema não é o conflito ideológico ou teórico mas sim o conflito físico.
- Ora aí está. Afinal, é esse que mata pessoas.
- Posso fazer com que todas as guerras sejam impossíveis.
- Isso inclui bombardeamentos, refugiados a fugir com crianças ao colo, armas químicas, etc?
- Etc.
- Então é isso que eu quero.
- Óptimo. Só tens de encontrar uma forma de o formular como deve ser.
Pensei por momentos.
- Desejo que nunca mais na história do mundo se resolva um conflito através de violência física.
O génio pensou por momentos:
- Rés-vés Campo de Ourique. Suficientemente palpável e pragmático para ser concretizável.
O ar voltou a contrair-se e a expandir-se levemente.
- Último desejo – disse o génio.
- Ui... – pensei.
- Permite-me uma sugestão. Até agora parece que os teus desejos foram totalmente altruístas. E que tal pedires algo para ti?
- Não há nada que eu queira assim de repente...
- Diz-me coisas que gostes de fazer.
- Ah... Sei lá... Ler. Ver filmes.
- Não me vais pedir DVD’s infinitos pois não?
- Sou supra-milionário, recordas-te? Posso comprar tudo e mais alguma coisa, tanto salvo meninos em África como adquiro a filmografia do Bergman.
- Parece-me que estás servido nesse aspecto.
- Sabes que mais? Depois de salvar o mundo da guerra e de garantir que possuo dinheiro para mudar a Humanidade, não há mais nada que me importe. Tudo o resto será consequência destes dois primeiros desejos. Sejamos inteligentes, então – passei a língua pelos lábios secos e levantei o peito, orgulhoso – Desejo que a tua lâmpada venha sempre a ser encontrada por pessoas que vão aproveitar os três desejos para o bem.
- Define “bem”.
- Pelo amor de deus...
- É um conceito demasiado aberto a interpretações.
- Bem é evitar a dor a todo o custo.
- Define dor.
- Dor é a ausência de felicidade.
O génio riu-se:
- Define felicidade.
- Ok – cruzei os braços – Desejo que a tua lâmpada venha sempre a ser encontrada por pessoas que vão aproveitar os três desejos para colocar em prática a minha noção de “bem”.
- Isso soa muito melhor – o génio também cruzou os braços – mas como sabes que a tua noção de bem é a correcta?
- Não sei. Mas...
O génio olhou para mim e piscou-me o olho. Percebi. Enchi o peito de ar, solene:
- Desejo saber o que é o Bem.
O génio estalou os dedos e a realidade alterou-se outra vez. 

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