quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Treze

Somos quatro: eu, Carlos, Reno e Artemisa. Juntos e apertados dentro do pequeno cubículo a que chamámos “escritório” formávamos a “Sonhos de Infância”. O conceito original foi do Reno. Morrera-lhe uma tia emigrante rica que, na sua senilidade, deixara tudo ao sobrinho que mal conhecia. Reno andou uns tempos a evitar as ameaças de morte dos restantes membros da família, e foi numa das noites em que não dormiu em casa com medo de ser abordado por terroristas armados (sempre fora um exagerado) que teve uma ideia.
- Reparem: seremos uma empresa especializada em sonhos. Realizamos os sonhos mais loucos de todos. Festas de anos debaixo de água, elefantes no Rossio, um vestido de noiva de diamantes, etc. Coisas assim. Que acham?
Todos achámos uma excelente ideia. Reno entraria com o capital e nós com a mão de obra. Cada um tinha a sua especialidade: eu conhecia gente no mundo das artes performativas, porque o meu primo era um dos anões do “Trio Admira”, que corria o país a disparar anões por um canhão e a fazer acrobacias com espadas árabes. Artemisa era artista plástica, e traria consigo a frescura das novas geração e seria a “directora criativa”. Quanto a Carlos, trabalhava num call-center de uma empresa de telecomunicações, e tinha acesso a bases de dados enormes com contactos de todo o tipo que podiam ser roubados sem ninguém dar por nada. A união faria a força. Eramos uns PowerRangers.
A coisa só descambou no quarto mês de actividade. Até aí o meu primo anão e o “Trio Admira” faziam todas as festividades que lhes pedíamos, e nós ainda ganhávamos a comissão; mas há medida que o conceito da empresa foi sendo publicitado graças a Artemisa, que pintou murais alusivos por toda a cidade sem arranjar problemas com a polícia, os pedidos mais extravagantes começaram a chegar. 
- O meu marido faz cinquenta anos. É um militar. Gostaria de lhe dedicar uma batalha. Queria que encenassem a Batalha de Aljubarrota – a mulher do militar abriu o livro de cheques – Quanto?
- Porque não dá uma olhadela no nosso catálogo enquanto eu discuto alguns pormenores com o meu sócio? – Reno estendeu uma folha de papel com fotografias do “Trio Admira” à mulher do militar e veio ter comigo ao “outro lado” do cubículo que era o nosso escritório.
- A senhora quer que encenemos a Batalha de Aljubarrota.
- Isso é praticamente impossível.
- Como, impossível? Arranjamos uns fatos, chamamos uns quantos amigos. Quantas pessoas havia na batalha original?
- E os cavalos, onde vamos buscar os cavalos?
- E as espadas, as armaduras...
- O “Trio Admira” tem um canhão, não te esqueças.
- Acho que em Aljubarrota ainda não havia canhões.
Reno regressou para junto da senhora, falou-lhe dos nosso preços, que funcionavam a nível diário, e assegurou-a que estávamos a trabalhar no seu caso. A mulher do militar assinou o contrato, despediu-se com uma continência e saiu.
Durante a semana seguinte trabalhámos incansavelmente  no primeiro projecto verdadeiramente épico da “Sonhos de Infância”. Chegámos a encontrar um sósia do D. Afonso Henriques, um carregamento de setenta e seis espadas de metal e um pónei branco. Depois veio o balanço de contas: a mulher do militar fizera os pagamentos diários com um rigor, bem, militar. Reno, que de todos nós era o maior capitalista, retirou as suas conclusões:
-Ora bem, não cabe na cabeça de ninguém encenarmos a batalha de Aljubarrota. Sejamos objectivos: um pónei? Mas já lucrámos à conta da senhora. Pelos vistos as pessoas pagam tanto pela promessa de sonho como pela sua concretização! Aproveitemo-lo; a partir de hoje, aceitaremos os sonhos mais impossíveis de realizar. Durante uns dias fingimos andar de um lado para o outro, a reunir aqui e ali os elementos necessários. Depois pedimos muitas desculpas, que é impossível, está fora das nossas possibilidades ou porque um fornecedor falhou, ou porque o elefante adoeceu, ou porque rebentou o quadro na nossa fábrica marroquina. Devolvemos a entrada que o cliente dá, amealhamos a comissão diária, ele sai com um pedido de desculpas e nós com margem de lucro. Que pensam disto?
- E quanto durará isso? A má fama espalha-se – lembrou Artemisa.
- Uns meses, talvez mais. Não podemos subestimar a capacidade de ignorância da população da cidade.
Soava bem; siga a marinha. Assim foi que escolhemos, de entre os potenciais clientes, aqueles com os sonhos mais irreais. Um queria casar-se no Sahara, outro dormir com uma actriz famosa, um terceiro andar de camelo no Cacém para impressionar a namorada árabe e uma esposa desejava dar ao marido um desfile de virgens semi-nuas como prenda de vinte cinto anos de casamento liberal; e como estes havia dezenas. A todos respondemos positivamente, declarando que estávamos a reunir a nossa equipa com o intuito de concretizar aquele que era, a partir daquele dia, também o nosso sonho; e que a propósito, o preço diário para cobrir custos de transportes, comunicação e recursos humanos era de 85 euros mais IVA.
Num desses dias estava a fingir que conseguia reunir os setenta e dois milhões de rolos de serpentinas necessários para que uma cliente demente pudesse cobrir a Torre de Belém quando nos entrou pelo escritório um homem minúsculo, de cabelo penteado para o lado como é tradição dos parvalhões, e um fato impecavelmente passado a ferro. Sentou-se na cadeira à frente da secretaria de Reno, o nosso “recepcionista” dessa semana (íamos rodando) depois de nos cumprimentar a todos com um aceno e um boa tarde. Tipo simpático, apesar do cabelo.
- Em que lhe podemos ser úteis? –perguntou Reno, preparando o contrato por assinar debaixo da mesa.
- O meu filho tem doze anos e está a morrer – disse o homem, e o ar dentro do “escritório” tornou-se pomada quente. Olhámos uns para os outros. Reno engoliu em seco e manteve a compostura de forma impecável.
- Os nossos mais profundos sentimentos.
- Profundos sentimentos? Ele ainda não morreu...! –o homem esboçou um sorriso sincero e os seus olhos, vermelhos, foram aos próprios dedos nervosos e depois à cara de Reno - Desejava oferecer-lhe uma última prenda. Compreende?
Até Carlos, de entre todos nós o mais misantropo, estava à escuta.
- O meu filho queria ser piloto e...  – houve uma pausa, e o homem sorriu outra vez um sorriso derrotado – Caramba, como “queria”? Quer! O meu filho quer ser piloto e gostaria de sobrevoar Lisboa.
Deixou de sorrir e afundou a cara nas mãos, soluçando.  Reno olhou em volta, implorando assistência. Artemisa tinha os olhos inchados. Carlos parecia não estar aborrecido, o que é por si só uma vitória emocional da sua parte. Eu não sabia o que fazer. Até ali estivera concentrado em serpentinas.
- Podem fazê-lo? – perguntou-nos o homem.
A empresa foi à falência à conta da pequena extravagância, mas valeu a pena. Deviam ter visto a cara do rapazinho quando viu o helicóptero. Disse-nos que queria pilotar aviões comerciais, mas que não havia problema. Não havia problema! Um miúdo com um tumor gigante não sei onde a dizer-nos que não havia problema! Artemisa queria quase levá-lo para casa, como se fosse um cachorro recém-nascido. O pai aproximou-se, cumprimentou-nos um a um, e nem sequer estava a chorar. Estava a rir como o filho. A alegria nos olhos de uma criança, não é? 

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